Análises

Licuri, a coroa da Caatinga

O licuri consegue florescer onde há pedra, calor e pouca água. É ali, nessa terra de sol imenso, que se tornam visíveis os detalhes de sua grandeza

Fred Rahal Mauro ·
18 de junho de 2025
Belo é quando o seco,
rígido, severo
esplende em flor.
— Waly Salomão

No Semiárido brasileiro, o que à primeira vista parece seco, áspero e escasso revela, aos poucos, uma profusão de vida que aprendeu a brotar no limite. Na Caatinga – esse bioma de resistência, engenho e beleza – ergue-se, elegante, a palmeira coroada. No emaranhado típico da vegetação, ela finca seu tronco na terra pedregosa e insiste em florescer. É o licuri (Syagrus coronata), também chamado de ouricuri, aricuri, nicuri – ou, simplesmente, por quem dela depende, “a palmeira salvadora da vida”.

O nome científico carrega uma descrição lírica e precisa. Coronata vem do latim e alude à copa de folhas que se abre em forma de coroa, como um gesto silencioso de soberania. Já Syagrus, termo de origem grega, era usado para evocar o vigor das florestas e da vida selvagem – uma nobreza bruta, ancestral. De fato, o licuri é realeza na Caatinga: por tudo o que oferece – sustento, memória e continuidade.

Suas raízes retorcidas mergulham fundo em solos secos, onde outras plantas pelejam. O licuri consegue florescer onde há pedra, calor e pouca água. É ali, nessa terra de sol imenso, que se tornam visíveis os detalhes de sua grandeza. Um tronco, muitas vezes solitário, que pode alcançar até dez metros de altura; cachos repletos de frutos ovais – que adquirem cor de ouro quando maduros –, de polpa fina e casca fibrosa, que se abrem para revelar uma amêndoa: o núcleo de um coco oleoso e saboroso. Alimento de gente, ração de animais de cria, das aves e de um ecossistema inteiro.

Quem conhece o licuri no cotidiano sabe que ele não vive sozinho. De fato, o licuri cumpre uma função ecológica diversa e indispensável. Considerada uma espécie-chave da Caatinga, sua presença sustenta relações vitais para o equilíbrio do bioma. Todas as espécies de abelhas – mandaçaia, jataí, arapuá – se alimentam em suas flores. Em seus frutos dourados, aves e mamíferos encontram sustento durante quase todo o ano, entre eles, a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie endêmica e ameaçada de extinção, que tem na amêndoa do licuri uma de suas principais fontes de alimento. Ao se nutrir dos frutos e dispersar suas sementes, as araras ajudam a perpetuar o ciclo da palmeira.

Outros animais também participam dessa teia: roedores como mocós, cotias e punarés enterram os cocos, que acabam germinando; emas e caititus os engolem inteiros e devolvem as sementes ao solo em suas fezes. Até os bois, cabras, cavalos e jumentos nos pastos fazem parte do circuito – o boi prefere a palha verde, o jegue e o burro, só a seca.

Ao redor do tronco, a palmeira serve de abrigo e de plataforma para uma diversidade impressionante de plantas epífitas — orquídeas, bromélias, cactos e samambaias que, sem extrair nutrientes da árvore, vivem agarradas ao seu corpo e florescem ali como numa floresta suspensa. Estudiosos já identificaram mais de 25 espécies associadas ao licuri em áreas de pastagem, mostrando como ela atua como um refúgio em ambientes alterados. Ora, o licuri carrega uma floresta em si.

Sob sua copa coroada, o chão se transforma. A sombra suave protege o solo do sol direto, favorece o acúmulo de matéria orgânica e acolhe uma rica comunidade de microrganismos, que sobrevivem ali, ao abrigo do seu frescor. Ao redor de um único pé de licuri, a terra fica macia, forte, cheia de vida.

Sementes do Licuri. Foto: Fred Rahal/COOPES

E, como se não bastasse, a palmeira convive — não disputa. Ao seu redor crescem pés de umbuzeiro, aroeira e angico, árvores nativas com as quais compartilha o tempo e o solo. Não há concorrência: há relatos de que ela pode viver assim, em harmonia, por mais de cem anos.

O ciclo do licuri também é o ciclo do ser humano que sempre viveu pela Caatinga: indígenas, quilombolas, vaqueiros, lavradores, rezadeiras, quebradeiras, camponeses, sertanejos, agricultores, extrativistas — povos que aprenderam a fazer do seco, sustento e caminho. Seu tempo marca o tempo de muita gente. Das mãos que colhem no chão aos braços que quebram o coco com ritmo e precisão aprendidos desde criança. A cultura da “cata” e da quebra do licuri é trabalho, sustento, tradição e cuidado.

Suas amêndoas são consumidas cruas, torradas, cozidas, transformadas em leite, azeite, farinhas, doces ou paçocas. Suas folhas viram teto, esteira, vassoura, chapéu, arte. Seu sumo já foi colírio e unguento; seu caule, chama; sua presença, altar. Das festas de São João ao fogão de lenha, do saber das parteiras às receitas escolares, o licuri está realmente por toda parte. E quando se pensa que acabou, há ainda mais: o bicho-do-coco – ou morotó –, larva que vive dentro da amêndoa, é também alimento e medicina, com alto valor financeiro agregado.

Esse povo, com sua sabedoria, nunca viu no licuri um recurso isolado, mas sim um modo para a vida. É convivência. Um pacto. O que a ciência hoje reconhece como “espécie-chave do bioma Caatinga”, as comunidades já chamavam, há muito tempo, de sagrada.

Mas esse ciclo virtuoso vem sendo rompido, há décadas, pelo avanço desenfreado daquilo que já estamos carecas de saber – o tal “progresso”. A sanha pelas práticas agropecuárias extensivas, monotemáticas, as queimadas, a mineração e até o puro e simples corte predatório têm feito os licurizais envelhecerem sem se renovar. E não é preciso muito esforço pra entender: sem a palmeira, tudo isso que falamos até agora corre o risco de desaparecer.

Com mãos firmes, as mulheres da comunidade quilombola de Alto Capim, em Quixabeira, na Bahia, colhem o fruto que a palmeira deixa cair. Foto: Fred Rahal/COOPES

Em algumas regiões, como no Raso da Catarina, no norte da Bahia, há registros de declínio acelerado. A regeneração natural é quase inexistente. Resta, muitas vezes, um tronco solitário, carregando nas palhas secas as últimas lembranças de uma ecologia vibrante.

A resposta a esse risco, no entanto, já floresce em mãos comunitárias. A Coopes, Cooperativa de Produção da Região do Piemonte da Diamantina, com sede em Capim Grosso, Bahia, é hoje uma das guardiãs mais expressivas do licuri. Sua história começa quando um grupo de pessoas da região se deparou com o desvalor imposto a este fruto abundante. O que era vendido por quase nada, destinado à fabricação de sabão, passou a ser transformado em produtos alimentícios e cosméticos. Esses produtos já chegaram a escolas, feiras internacionais e, sobretudo, à mesa das famílias sertanejas. Mais do que gerar renda, o trabalho da cooperativa tem resgatado o valor simbólico e ecológico do licuri. 

Aliás, a Coopes teve papel fundamental na articulação que resultou na criação da Lei Estadual nº 13.908/2018, que reconhece o licuri como patrimônio biocultural do povo baiano. A lei protege essas espécies contra a supressão e promove seu cultivo dentro de práticas agroecológicas, associando biodiversidade, cultura alimentar e formas de uso tradicional. Também determina que o poder público incentive a criação de unidades de conservação, a inclusão do tema nos currículos escolares e o apoio técnico aos agricultores familiares.

Se o ser humano ajudar, com a autorização da natureza e a paciência do tempo, quem sabe a palmeira coroada possa, enfim, repousar em seu palácio de lagedos, araras, mandacarus e pôres do sol.

Repousar, ainda assim, servindo à vida.

E por entre os troncos da Caatinga e nas folhas longas e curvadas do licuri, talvez ainda se perceba essa vida — esperando cuidado.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Fred Rahal Mauro

    É documentarista, fotógrafo e articulador de projetos culturais e socioambientais.

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