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Guias?

Visitar parques com guias, além de chato, é uma imposição absurda, típica de país que não enxerga o potencial turistico e econômico de suas unidades de conservação.

24 de março de 2005 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Alguma vez vocês se depararam com a obrigação de visitar um parque nacional ou alguma outra área natural com um guia imposto? Eu sim! E foi uma experiência muito desagradável. Era uma área que conhecíamos bem, com boas trilhas, sem risco de nos perdermos. A nossa intenção era passar um dia caminhando no nosso ritmo, fotografando e observando a natureza com toda calma, tomando banho no rio ou nas cachoeiras, fazendo uma merenda campestre e, porque não, tirando uma soneca antes de voltar. Quando chegamos à portaria, ao pagar o ingresso, fomos informados que o parque não podia ser visitado sem um guia. Os poucos guias disponíveis nesse momento não queriam levar apenas um casal, pois claro, conduzir um grupo é mais lucrativo. Finalmente, aceitando um preço maior que o normal, ele nos levou.

Caminhava rápido, evidentemente querendo liquidar o “tour” em pouco tempo para procurar outros clientes. Ele cumpria sua função de falar sobre a geologia, as plantas e os animais. Mas, quando nós desejávamos olhar com detalhe alguma coisa, demonstrava impaciência. O mais incômodo foi chegar a um ponto onde o calor nos obrigou a tomar um banho numa cachoeira. Entramos na água sob o olhar atento do guia nos atributos da minha esposa. Nem pensamos em fazer uma merenda e muito menos uma sesta. O guia, sem cerimônia, bebeu nossos refrigerantes e comeu nossos sanduíches. Apressamos o passo para voltar. Apesar da nossa boa educação, nos sentimos perfeitos idiotas agradecendo o guia. Apenas não demos gorjeta, que ele evidentemente também esperava.

Essa experiência está sendo cada dia mais comum no Brasil, onde as autoridades de unidades de conservação estão obrigando os cidadãos que as visitam a contratar guias. Existem várias razões para isso, algumas procedentes e outras nem tanto, que vamos procurar resumir brevemente. As unidades de conservação que podem ser visitadas, em especial os parques nacionais e estaduais, carecem de recursos orçamentários suficientes para a sua implantação e manejo. Em outras palavras, a maior parte não tem boa infra-estrutura de visitação (por exemplo, centro de visitantes, trilhas demonstrativas, sinalização), nem pessoal (biólogos e, em especial, guarda-parques). Por isso, a visitação nessas condições pode criar muitos problemas aos administradores dos parques: visitantes que provocam incêndios, que deixam lixo nas trilhas, que se perdem ou se acidentam, que coletam plantas ou que prejudicam a fauna.

A falta de trilhas bem feitas e de guarda-parques se resolve, em grande medida, com os guias. Devido ao abandono das unidades de conservação pelo poder público, seus vizinhos estão em geral muito descontentes. Ao invés de desenvolver a unidade de conservação para que seja, como em outros países, um pólo de desenvolvimento econômico, se opta pela simplista solução de dar emprego indireto a pessoas da localidade aceitando que os guias tenham direitos exclusivos sobre a visitação nas áreas protegidas. A outra razão, atrás desta “solução” de guias obrigatórios, é o mal entendido sobre o papel de unidades de conservação. Imagina-se que elas sirvam para educar quando, na verdade, sua função principal com relação aos visitantes é a recreação em ambiente natural. Finalmente, os guias, nem lerdos, nem preguiçosos, já estão organizados em associações e sindicatos e exercem sua pressão sobre as autoridades ambientais para manter a exclusividade sobre os visitantes.

Nada pode ser pior para o futuro das áreas protegidas, no que concerne à visitação, que a obrigação de contratar guias ou condutores para se freqüentar uma área natural. A gente vai a esses lugares para se comunicar com a natureza, não para escutar indesejadas aulas de biologia. O objetivo dos visitantes é o espairecimento, através da observação das paisagens e dos fenômenos naturais, da flora e da fauna. Esses estão lá para fazer fotografias, pintar ou simplesmente descansar aspirando o ar puro ou os odores peculiares da floresta. Outros querem apenas fazer exercício físico, caminhando ou nadando, ou em bicicletas ou canoas, quando permitido. Não estão lá para prestar atenção aos comentários dos guias nem, muito menos, a suas piadinhas sem graça. Muitos dos melhores e mais freqüentes clientes das áreas protegidas deixarão de usá-las se os guias lhes forem impostos.

Existem situações piores fora das unidades de conservação. Por exemplo, o acesso a algumas das praias mais lindas de Itacaré (Bahia) deve ser feito atravessando setores de mata ainda densa. As trilhas são enormes, muito visíveis, porém, os guias locais propalam a notícia de que não é seguro ir sem eles, que tem muito assalto, coisa que aliás às vezes acontece. Nesse caso o serviço de guias vira pura chantagem: os “flanelinhas” do turismo, como já apontou um conhecido ambientalista. Nada mais absurdo que ver os constrangidos casais, acompanhados cada um de seu respectivo “guia”, na bela praia solitária.

Existem parques, por exemplo os africanos, onde dispor de guias é condição indiscutível para uma visita. O turista desprevenido pode realmente ser atropelado por uma manada de búfalos, atacado por uma leoa furiosa ou, se interposto no caminho de um hipopótamo, ficar esmagado pelos seus dentes ou as suas patas. Nada disso espera a um visitante no cerrado do planalto central. Guias, no Brasil, podem ser necessários nas áreas protegidas da Amazônia ou da Mata Atlântica quando as trilhas na mata não estão bem demarcadas. Nos EUA, os grandes parques nacionais podem ser visitados e neles se pode acampar, em toda a sua extensão aberta à visitação, sem guias, conforme o plano de manejo, inclusive fora das trilhas. Apenas é compulsivo cumprir as regras do parque e, caso contrário se arrisca a ser detido e preso até o julgamento, no próprio parque. Com efeito, os guarda-parques, bem equipados e treinados, sempre estão atentos a qualquer violação da segurança pessoal ou da segurança da área. Eles também brindam, graciosamente, toda a informação que os visitantes possam espontaneamente solicitar. Mas nunca impõem sua presença.

Neste ponto, é preciso deixar bem claro que nada existe contra a disponibilidade de guias ou condutores nas áreas protegidas. Até podem ser uma necessidade e, sem dúvida, muitos visitantes apreciam e apreciarão os serviços que eles ou elas oferecem. O eixo da questão é a imposição da “obrigatoriedade” desse serviço. A redundância da frase anterior pretende, exatamente, mostrar o problema. As unidades de conservação são bens públicos para servir ao público. Os usuários já pagam duas vezes por esse serviço: através dos impostos e, em cada visita, quando compram o ingresso. É ilegal e imoral exigir que paguem, pela terceira vez, pelo mesmo serviço público. Deveria ser como é nos museus. Os guias estão disponíveis, mas ninguém está obrigado a empregá-los. Quem no Louvre só quer ver as obras dos mestres italianos do Renascimento não precisa visitar a sala das aborrecidas pinturas inglesas ou as monótonas pinturas religiosas medievais.

Muitos dos guias que encontramos durante nossas peregrinações pelas áreas naturais do Brasil não são, graças a Deus, como aquele que foi descrito no primeiro parágrafo desta nota. Na sua maioria, gostam realmente da natureza, sabem muito sobre o que apresentam aos visitantes e são legitimamente cordiais e atenciosos. De outra parte, não existe dúvida que seu trabalho pode contribuir muito para preservar melhor o patrimônio natural. Para isso devem ser mais bem formados e treinados do que agora. Na atualidade a maioria é de autodidatas ou gente capacitada em cursos de baixo nível. O próprio Ibama ou responsáveis estaduais dos parques devem assumir um papel bem mais relevante na formação de guias ou condutores.

É fundamental que as unidades de conservação do Brasil recebam a prioridade que merecem do governo nacional. Se assim fosse, os magníficos parques brasileiros receberiam dezenas de milhões de visitantes ao invés de apenas um par de milhões, ou seja, pouco mais do que o número de visitantes na minúscula Costa Rica. Isso daria trabalho decente a milhares de guarda-parques locais e a outros tantos guias, sem imposições que só prejudicam o futuro e, ainda mais importante, a economia dos municípios vizinhos dos parques floresceria.

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