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1491

Livro escrito por norte-americano explora a ocupação das Américas antes da chegada dos europeus. O conteúdo é bom, mas ignora detalhes importantes da natureza desse passado.

28 de junho de 2007 · 17 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Muitos, especialmente nos EUA, parecem acreditar que antes de os europeus chegarem à América por aqui tinha pouca gente e quase nada de cultura e nem tampouco desenvolvimento. Segundo eles apenas havia selvagens, dos “bons e dos “maus”. Para ilustrar os seus compatriotas, Charles C. Mann, um conhecido jornalista científico estadunidense, escreveu o livro “1491: New revelations of the Americas before Columbus” (2005, Vintage Books, New York). Nele, o autor procura salientar não só o que já se sabe, ou seja, que pelo menos três grandes centros culturais existiram no México, América Central e no Peru, mas, que os tais selvagens do Norte e do Sul do continente, assim como os da Amazônia e outros locais, eram bem mais numerosos e desenvolvidos do que os colonizadores pretenderam.

Este livro, cujo breve título faz referência ao ano anterior à chegada de Cristóvão Colombo, foi e ainda é um muito merecido “national best seller”. Certamente não chega nem perto do livro “Armas, germes e aço” de Jared Diammond (1997) do qual emprestou muitas idéias, mas deverá ser lembrado como uma obra de divulgação excepcionalmente importante, atrevida e útil, acompanhando outras como “O macaco nu” de Desmond Morris ou “Primavera silenciosa” de Rachel Carson. Nenhum americano, do norte ou do sul, deveria deixar de ler este livro para compreender melhor a sua realidade. Mas, alguns aspectos do livro de Mann merecem ressalvas.

Para muitos será realmente novidade saber, por exemplo, que os índios do leste norte americano não só tinham um estilo de vida perfeitamente adaptado à realidade local com uso de tecnologias agrícolas, navais, militares e de construção sumamente engenhosas, mas que, assim mesmo, tinham uma população elevada, completamente diferente à de alguns dos seus irmãos nômades do interior do continente. Do mesmo modo, o autor lembra as descobertas feitas no Beni boliviano, que replicam e multiplicam sobre dúzias de milhares de hectares as técnicas de cultivo intensivo dos Mayas, que implicavam em elevar porções de terreno separadas por cursos de água que serviam para o transporte e para a criação de peixes. Isso, diga-se de passagem, também é conhecido das antigas culturas do sudeste asiático, especialmente nos arredores de Angkor, na Camboja. Já faz algum tempo que assim mesmo, se fala das culturas das várzeas do vale do Amazonas, no território atual do Brasil e, em especial, daquelas que ocuparam as ilhas do seu delta.

Em essência, a mensagem do autor é que a população americana pré-colombiana era muito maior do que se acreditava e que seu nível de desenvolvimento era em geral surpreendentemente elevado, embora ostentasse enormes diferenças entre um grupo e outro. Existiam muitos núcleos humanos de níveis culturais superiores que foram tão ou mais importantes que os mais famosos do mundo e que, além disso, eram muito mais originais devido a seu isolamento. E também existiam grupos que se mantiveram com baixas populações e que, por serem essencialmente caçadores, não se desenvolveram tanto como outros. O mais interessante do livro, neste aspecto, é que revela uma infinidade de culturas não encontradas nos locais mais conhecidos das Américas e que tiveram assim mesmo níveis de desenvolvimento consideráveis, como no caso das mencionadas no leste dos EUA e nas planícies bolivianas e amazônicas.

Mann, corretamente, outorga muita importância aos dados que parecem demonstrar que o povoamento da América é muito mais antigo e complexo que a simples explicação da passagem de grupos de caçadores primitivos pelo Estreito de Behring. Estes, progressivamente, haveriam chegado até o extremo sul do continente, levando a antiguidade da população americana pré-colombiana há apenas uns 15.000 anos e a da América do Sul a muito menos. Como ele bem coloca, se o povoamento americano foi tão recente como a teoria dos Clovis (nome dado pelo local do Novo México, EUA, onde essa teoria teve seu sustento inicial), os americanos pré-colombianos foram os seres humanos mais engenhosos do planeta. Com efeito, enquanto as culturas do velho mundo desfrutaram todas elas de conhecimentos desenvolvidos desde o mais remoto origem do ser humano, potenciados pela acumulação dos que são provenientes da África, Ásia e Europa, os geograficamente isolados americanos apenas contaram com conhecimentos próprios. E, não só não ficaram atrás, mas em muitos campos, dentre eles a agricultura e a engenharia, progrediram muito mais que os demais habitantes do planeta. De outro modo tampouco poder-se-ia explicar a existência de cidades tão grandes e de construção tão sofisticada como as de Caral, no Peru, com mais de 5.000 anos de antiguidade. Tão antigas como as mais antigas do velho mundo.

Mann, para sua argumentação, utiliza muitas informações cientificas, dentre elas as que se desprendem dos achados de Monte Verde, no Chile, a mais de 10.000 km do estreito de Behring e que tem, comprovadamente, 12.800 anos e provavelmente muito mais. Igualmente, dentre outras, aproveita as evidências proporcionadas pelos brasileiros Sandro Bonatto e Francisco Bolzano da Universidade Federal de Rio Grande do Sul que permitem supor que os humanos chegaram à América do Sul uns 30.000 anos atrás. Mas, surpreendentemente, nem sequer menciona os descobrimentos da Serra da Capivara (Piauí, Brasil), que são a melhor prova de que existiam humanos na América do Sul há uns 50.000 anos e quiçá antes. Não pode alegar o autor que não usou esses dados porque não são confiáveis, pois muitos dos outros que ele usa são tanto ou mais especulativos. Não usou esses dados, assim como tantos mais disponíveis em quase todos os países da América Latina, simplesmente porque ele obviamente não sabe ou não quis ler português, nem espanhol. Das ao redor de 1.200 citações bibliográficas do livro, só 55 estão escritas em outros idiomas, das quais 48 em espanhol, 4 em francês, 2 em português e só uma em alemão. É óbvio de outra parte, que muitas dessas são citações um tanto forçadas e que o autor não leu os textos e apenas desfrutou de citações de terceira ou quarta mão, apenas porque não podia deixar de citar documentos chave onde não achou traduções ao inglês.

Se Mann tivesse outorgado mais consideração aos cientistas latinos americanos que publicam nos seus idiomas originais teria descoberto que, pelo menos ao nível dos intelectuais, o que compila no seu livro não é novidade. Faz muito tempo, por exemplo, que no Peru se sabe que a população pré-colombiana foi maior, inclusive, que a população atual desse país e se sustenta, com embasamento científico, que as origens da sua população não se explicam somente com migrações pelo estreito de Behring. Tampouco é novidade, nem sequer muito antes do livro citado de Diammond, que as pestes importadas garantiram a conquista dos territórios dos impérios dominantes no México e no Peru e que, apesar delas, as ferozes guerras de conquista duraram mais de meio século antes que os europeus consolidassem seu domínio. As maravilhas tecnológicas dos antigos americanos que são “reveladas” no livro foram quase sempre descritas em publicações cientificas latino americano antes de serem re-processadas em inglês pelos que levaram a fama.

Mais preocupante é a generalização que Mann faz, nos capítulos finais, com relação ao estado da natureza das Américas, antes da chegada dos europeus. Volta à carga com a sugestão, quiçá involuntária, que a natureza pode ser usada e transformada à vontade, pois nada por aqui seria realmente natural. Fundamenta seu argumento, como tantos socioambientalistas já o fizeram, no “mito da natureza prístina” que o antropólogo William Denevan cunhou em 1992, na estreita base de suas observações no Beni e que refletem as que anos antes fizera o mexicano Arturo Gómez Pompa, com relaçao ao Yucatan dos Mayas. Mann usa os fatos sobre a elevada população americana pré-colombiana para ratificar a extrapolação de Denevan, sem levar em conta a realidade nem as conseqüências da proposta. Esqueceu, por exemplo, que as culturas das várzeas amazônicas ou do Beni, desapareceram deixando poucos rastros, precisamente pelos abusos cometidos contra a natureza. Após esses ciclos de uso intenso essas mesmas áreas tiveram séculos de abandono permitindo que a natureza recuperasse totalmente seus domínios originais. A desaparição dos Mayas, como bem foi demonstrada por Diammond no seu último livro “Colapso” (2005) foi provocada pelos mesmos fatos. Ainda, o autor esqueceu-se de deixar claro que grande parte das Américas nunca teve as populações elevadas que outras partes tiveram, como no caso da terra firme amazônica.

Em conclusão, o livro “1491”, que já foi traduzido ao português, deve ser lido. Fazê-lo vale muito a pena. Mas, como sempre, deve se levar em conta que ninguém é integralmente dono da verdade e que não existe uma verdade só.

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