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Queimada

O Brasil sempre queimou seus campos e matas. Continuamos a queimar e cada vez temos menos o que destruir. Está na hora de escolher entre boas e más tradições.

9 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Morei em Brasília a minha infância e um bom pedaço da minha juventude. Tenho gravado fundo na memória, as imagens, os sons e os cheiros das queimadas. Frequentemente atravessávamos de carro um corredor de labaredas, pois o fogo havia tomado as duas margens das estradas. Mesmo dentro da cidade, lembro-me de ir do iate Clube ao campus da Universidade de Brasília, por uma rua, então deserta, quase todo o tempo dentro do fogo. Meus amigos e eu costumávamos fazer longas caminhadas, cerrado adentro, em áreas hoje inteiramente tomadas por construções. Passávamos por grandes extensões de cerrado primário. Nos períodos de seca, a adrenalina aumentava, pois entravamos no mato, sem saber se iríamos dar com alguma queimada. Lá, misturado àquela geração de pioneiros, aprendemos que existe, realmente, queimada espontânea, provocada por raios ou pelo calor. Mas vimos, também, com nossos olhos curiosos e atentos, que a maioria das queimadas era proposital. No Plano Piloto, o centro de Brasília, ateava-se fogo para ver o mato queimar.

Quem conheceu o cerrado como eu, caminhando por dentro dele, sabe como ele é rico. Conhece a beleza esplendorosa de suas flores. Tem noção da quantidade de aves e mamíferos que ele era capaz de abrigar. Encontrávamos emas e veados, por exemplo, com grande facilidade. A última vez em que passei de carro por aquelas estradas, onde nunca passara sem avistar várias emas e, vez ou outra, veados adultos, não avistei um só animal.

Andei pela terra calcinada, com a fumaça ainda saindo do mato e das árvores queimadas. Senti aquele cheiro de queimado, por horas seguidas. Nunca deixamos de nos espantar com aquele cenário de desolação, que marcava o compasso de nossas outras angústias. Víamos na queimada o símbolo daqueles tempos, de sonhos juvenis, de raiva com a falta de liberdade, o fogo ideológico queimava em nós cada vez mais forte, quanto mais avançávamos na noite escura da ditadura militar. Aquele chão de cinzas, preto/branco/plúmbeo, ficou em mim como o retrato do Brasil que eu vivia com intensidade, perplexidade e desespero. O arbítrio queimava nossas esperanças e o fogo devastava o nosso campo.

Essas memórias das cinzas do cerrado de minha infância e juventude me assaltaram a mente, ao ver o Parque das Emas ardendo, novamente. Uma grande parte do que deveriam ser áreas de reserva, na Terra do Meio, também foi consumida pelo fogo criminoso, da exploração ilegal, da grilagem impune. As matas do Acre e da Rondônia também estão sendo tragadas pelo fogo. Acidente ou queima deliberada? Nas Emas, parece ter sido fogo natural, causado por raios no capim seco. Em uma reportagem, pelo menos, informavam que as chamas começaram nas proximidades da estrada. Se foi, aposto que, no mínimo, ao fogo natural, somou-se a queimada criminosa.

A queimada, sim, é uma velha praga, e não o caboclo, como disse Monteiro Lobato, em texto com este título, no volume Urupês, sobre a queimada de 1914, na Serra da Mantiqueira. Lobato conta o seguinte: “terrível ano de seca foi aquele! O fogo lavrou dos meses a fio, com fúria infernal. O céu toldado, o ar espesso, o crepitar permanente das matas em chama, a fumarada invadindo a casa, os olhos a arderem… Um fim de mundo. E sempre notícias más, a toda hora”. Mais adiante, conta ele que a “Serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa” (referindo-se à guerra) “e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro”.

Quem vá, nos próximos dias ao Parque das Emas, verá um cinzeiro muito semelhante a este descrito. Quem fizer esta viagem, ou vir essas áreas agora calcinadas na TV deveria dar um momento de reflexão ao alerta de Monteiro Lobato: “ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para pior do clima com a agravação crescente das secas… Isto bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar, ninguém soma…”

Não foi só Lobato que se indignou com esse espetáculo que o Brasil vem patrocinando repetidamente em seus sertões. Muito antes dele, em Inocência, obra de 1872, o Visconde Taunay já falava da queimada e não da espontânea, mas da intencional. “Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do Sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro. Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição. Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir de todo, deixando como sinal da avassaladora passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos. Através da atmosfera enublada mal pode então coar a luz do Sol. A incineração é completa, o calor intenso, e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas de encontro às outras. Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas”.

Este cerrado que arde na pena de Taunay já está lá para as bandas de Goiás e Mato Grosso, depois dos “campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai”. Ali, onde, segundo ele, “começa o sertão chamado bruto”. Depois do fogo, “nessas aflitas paragens, não mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão freqüente antes do incêndio. Só de vez em quando ecoa o arrastado guincho de algum gavião, que paira lá em cima ou bordeja ao chegar-se à terra, a fim de agarrar um ou outro réptil chamuscado do fogo que lavrou”.

Tenho lido defesas das queimadas, seja por sua suposta funcionalidade, como substituto barato de outras formas de limpeza e manejo de pastos; seja porque faz parte da tradição campesina. Escutei pessoas com sensibilidade ambiental, dizer que não há alternativa, no Pantanal, se não queimar os caronais secos, até para evitar que o fogo tome as outras partes dos campos e cerrados. O próprio ministério do Meio Ambiente, fez uma cartilha, ensinando como queimar com segurança. Tradicional, é. Ouvi uma descrição do peão pantaneiro tradicional, assim: “ele é pirotécnico, sai pelo campo, com o fósforo na mão, e, se deixar, ateia fogo em tudo”. Daí a idéia de que é preciso, no mínimo, ensiná-lo a queimar sem por em risco toda a vegetação.

Mas quando vejo as chamas acuando os veados e os lobos guarás no Parque das Emas, ou me ponho a pensar sobre a quantidade de espécies que estão morrendo no fogo dos grileiros do Pará, ou subo até o topo da reserva do Brejo Novo e diviso a morraria do comecinho da Mantiqueira e a frase de Lobato me soca o peito – “a Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa” – não posso concordar com essa defesa das queimadas.

A primeira vez que ouvi um argumento contra as queimadas, eu era um foca muito jovem, tinha menos de 18 anos, aprendendo um ofício que nunca abracei inteiramente, na sucursal de O Estado de São Paulo, em Brasília. Fui cobrir a Operação Rondon, na Belém-Brasília e alguém me disse que diziam que o fogo era bom, mas que a experiência em outros paises mostrava que ele empobrecia a terra. Era preciso ensinar alternativas, para evitar que se queimassem. Minha jovem cabeça de pretendente a repórter concordou. Não fiquei na profissão, tornei-me um sociólogo. Continuei contra as queimadas e a mitificação da “sabedoria popular”, mas fiquei mais cético. Não basta educar o caboclo ou o peão. É preciso que a sociedade como um todo tenha regras e as cumpra. É preciso que o Brasil comece a escolher que tradições devemos preservar e que tradições abandonar. Ando com o sentimento de que estamos preservando o que temos de pior e depreciando, abandonando e esquecendo o que temos de melhor.

Semana passada, dirigindo pela Br-040, no finzinho da tarde, ao chegar à região de Posse, entre o Rio de Janeiro e Petrópolis, a serra ardia toda. Ao longo da estrada vários focos de fogo. Na maioria dos casos dava para ver que começara na beira da estrada. Fogo proposital, gratuito, irresponsável. Naquelas labaredas, não pude deixar de ver estampada a frase estarrecedora do Presidente Luiz Inácio da Silva, desculpando a corrupção eleitoral de seu partido porque “todo mundo faz, sistematicamente”. É este o problema que o Brasil terá que enfrentar, se quiser escolher um caminho de sucesso, desenvolvimento. Êxito civilizatório, eu diria. Não teremos êxito, se continuarmos com desculpas para todos os nossos erros e acusando o passado por nossa insensatez contemporânea. Com essa idéia de que desobedecemos a lei, porque ela não pegou mesmo, ninguém obedece. Essa tolerância com o erro, o crime, o desgoverno sistemáticos, está calcinando nossas referências, nossos valores, nossos princípios e desertificando o caminho de nosso futuro.

Há coisas que devem ser preservadas e outras que devem ser erradicadas. Nesta lista estão queimadas, grilagem, trabalho escravo, racismo, corrupção, desmatamento, contrabando. Coisas que não se pode tolerar e toleramos.

A idéia de que é possível ter controle sobre as queimadas é apenas uma forma branda de conivência. Além disso, vamos falar sério: nenhuma fiscalização ou regulação funcionam no setor público brasileiro, devastado pela dissolução da autoridade pública pela crise fiscal estrutural, pela deterioração dos serviços e queimada na fogueira de sua própria irresponsabilidade. Portanto, não estou, também, pedindo uma nova lei que proíba queimadas, nem demandando que alguma autoridade apure responsabilidades. Seria chover no molhado, ou melhor, queimar o queimado.

O que está claro, é que a sociedade brasileira, nós todos, estamos chegando a um ponto em que não poderemos mais fingir que não temos responsabilidade no que vem acontecendo com o Brasil. Diante dessa triste figura do presidente da Câmara, da alienação festiva do Presidente da República, cercado por uma crise de corrupção por todos os lados, dos animais desesperados fugindo das chamas nos parques e reservas, é preciso ter mais perspectiva. Não dá para achar que todo o problema é de Brasília, que alguém, abstrato e externo a nós, tem que tomar providências. Esse retrato melancólico, é o retrato do brasileiro, de todos os brasileiros, nosso retrato, que aceitamos o inaceitável e não nos reconhecemos nos erros do Brasil, nem nos decidimos a queimar no fogo santo da indignação todas as nossas más tradições, más práticas e maus costumes.

Dá até para fazer poesia com o fogo que lambe os sertões, Guimarães Rosa, fez, mas é de uma tristeza imensa. Como naquele poema de Drummond, como dói:

No campo seco, a crepitar em brasas,
dançam as últimas chamas da queimada,
tão quente, que o sol pende no ocaso,
bicado pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura…
(Guimarães Rosa – Alaranjado)

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