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O xis do problema

Cenário da energia elétrica no Brasil aponta para discussão diferente da hoje dominante no governo, mercado e imprensa. A questão não está no licenciamento ambiental.

25 de maio de 2007 · 17 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

“Sair do Estácio é que é o xis do problema”. (Noel Rosa)

É velha, mas é muito boa, essa música de Noel, que fixou para sempre essa idéia chave de identificar o “xis do problema”, o miolo do argumento, o ponto central. Qualquer profissional que lide com informação e conhecimento sabe que essa é a questão chave. Diante de um problema, um impasse, uma história, a pergunta é qual é o xis do problema? Muitas vezes é fundamental olhar para trás, na raiz de uma controvérsia e determinar qual era o verdadeiro ponto central do problema, o “xis”. Como ensinou Noel, até no plano existencial, é bom saber qual é o “xis do problema”.

Se lembrarmos bem, na discussão dominante no governo, no mercado econômico e na imprensa sobre energia, algumas semanas, um mês atrás, todo o impasse era causado pela intransigência do IBAMA. Ainda esta semana, O Estado de São Paulo fez um editorial chamando de molecagem o relatório do Ibama sobre as hidrelétricas do rio Madeira. Há uns dois meses, representantes de grandes empresas me procuraram para me falar de suas preocupações e também dizer que o “xis” do impasse energético no Brasil estava no licenciamento ambiental.

O principal ponto de concordância e convergência que existe hoje a respeito de energia no Brasil é de que precisamos dela. Mesmo os mais céticos, porém com credenciais profissionais e/ou acadêmicas sólidas, concordam, também, atualmente, que é preciso melhorar o padrão ambiental das hidrelétricas brasileiras e que é irresponsável o aumento da participação do carvão e do diesel em nossa matriz energética. Só na Casa Branca e no Planalto ainda se fala a sério nessa hipótese. O resto sai de fontes como Chávez, Arábia Saudita e que tais.

Vamos descrever o cenário atual: o ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau, deixa o cargo, cinco meses após tomar posse, implicado nas investigações de uma vasta rede de corrupção descoberta pela Polícia Federal, envolvendo empreiteiras, funcionários públicos de alto escalão, governadores e parlamentares. Não era ministro por suas credenciais técnicas, mas por causa do apadrinhamento do senador José Sarney, secundado pelo senador Renan Calheiros. Além do ministro, caíram vários assessores seus.

Cinco estatais do setor elétrico estão acéfalas, tocadas por interinos, à espera da solução da disputa entre facções partidárias por suas diretorias. O presidente não tem autoridade para resolver o impasse político criado pela demanda por cargos que, em qualquer país sério seriam técnicos e jamais submetidos ao leilão político entre lideranças partidárias desejosas de atender sua clientela. Evidentemente, essa clientela está interessada em tudo, menos geração futura de eletricidade. Alguns, se não a maioria, entra nesses cambalachos só para gerar caixa.

O marco regulatório do setor elétrico inibe investimentos, desencoraja o mercado livre de energia, desincentiva PCHs e a auto-geração. As regras são ruins, a ANEEL sempre foi considerada a mais mal desenhada de todas as agências regulatórias. O projeto enviado pelo governo Fernando Henrique ao Congresso era péssimo: burocratizante e estatizante. O presidente, diante do conflito entre o setor elétrico do governo e a área econômica, que desejava um desenho regulatório mais moderno e ágil, pediu a seus aliados na Câmara que refizessem o projeto, enviado a eles do jeito que saiu do ministério das Minas e Energia. O então presidente da Câmara, Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA), pediu ao deputado José Carlos Aleluia (PFL-BA) que cuidasse de reescrevê-lo. O deputado, justiça seja feita, fez o melhor que pôde. Mas o Congresso não é e nunca será um espaço de formulação de políticas. É uma arena para acomodação de interesses e, na melhor das hipóteses, para validar politicamente as políticas formuladas pelo Executivo. Saiu melhor que entrou, mas muito longe das necessidades de governança regulatória do setor elétrico.

Não são poucas, nem desconhecidas, as empresas privadas que fingem que não vêem a ação venal das empreiteiras – não por acaso, em toda confusão aparece o nome das contumazes produtoras de EIA-RIMAs duvidosos – fazem vista grossa para as irregularidades, os sobrepreços, as comissões por fora, a falta de planejamento, a irracionalidade de certas soluções. São raríssimos os empresários, independentemente de seu poderio econômico, que têm a coragem de se contrapor aos desmandos do governo, denunciar os erros, as arbitrariedades, as falcatruas. São capazes de passar horas, em coquetéis fechados, reclamando, manifestando indignação e lamentando o país em que operam, mas em “on”, só sabem elogiar, pedir e calar.

Em toda a discussão sobre energia, na qual se fala sempre na ameaça dos apagões, nem o governo, nem as autoridades do setor energético, nem os responsáveis pela administração do parque elétrico brasileiro, nem os distribuidores falam uma só palavra sobre economia de energia, racionalização do gasto de energia, eficiência, manutenção, modernização. Só obra nova parece interessar e ser capaz de gerar energia no Brasil.

O PROINFA, programa criado para estimular energia de fontes alternativas, em cinco anos não realizou nem 40% das suas metas originais, relativamente banais, diga-se de passagem, de conseguir gerar 1,3 GWh de eletricidade de biomassa, eólica e hídrica com base em PCHs, (hidrelétricas de pequeno porte), totalizando 3,3 GWh. Mas, ao mesmo tempo, é bem sucedida a expansão da geração de eletricidade por termoelétricas a diesel ou carvão.

Especialistas indicam que só o bagaço de cana disponível na produção atual de álcool permitiria gerar 7 GWh de bioeletricidade, o total da energia firme prometida pelas usinas do rio Madeira e de Belo Monte. No Nordeste, a capacidade de geração eólica é, no mínimo, equivalente a 5 usinas de Itaipu, algo como 35 GWh. As estimativas mais otimistas falam em um potencial de 75 GWh, o que equivaleria a quase 11 usinas de Itaipu. Tanto a eólica, quanto a bioenergia, teriam seus períodos de pico exatamente na seca, quando os reservatórios estão baixos e, portanto, na sua capacidade mínima. São portanto, altamente complementares, numa matriz racional de energia. Agora, descobre-se que essas energias têm ainda uma outra vantagem no caso brasileiro: geram menos obras, não pertencem ao setor público e não são, pelo menos no momento, valorizadas pelos empreiteiros.

Outro dia, antes que a operação Navalha colocasse sob suspeição todos os grandes projetos do ministério das Minas e Energia, em campanha pelas usinas do rio Madeira a ministra Dilma Roussef, em entrevista ao Bom Dia Brasil, da TV Globo, demonstrou seu desprezo pelas energias renováveis e grande dose de ignorância sobre o debate energético contemporâneo. Perguntou se alguém pensava seriamente que as energias alternativas poderiam ser uma solução para o Brasil. Pois podem sim. A matriz elétrica brasileira deve estabilizar em torno de 70% de energia hídrica. Os outros 30% podem ser perfeitamente adicionados por fontes renováveis, especialmente biomassa, eólica e solar – que nem foi incluída no PROINFA. No Brasil, as fontes renováveis são alternativas à hidroeletricidade. Podemos fechar todas as termoelétricas. Ainda temos potencial hídrico, embora muito mais limitado, porque ninguém deveria seriamente pensar em fazer hidrelétricas como eram feitas no passado, sem qualquer cálculo ambiental. Certamente não queremos outras Balbinas, o que seria “uma insanidade”, como disse o presidente Lula recentemente, em viagem ao Chile.

Diante desse cenário, onde está o “xis do problema”? No licenciamento ambiental ou na licenciosidade com que vem sendo tratado o setor energético no Brasil? Na intransigência ambientalista ou na corrupção? Na preocupação com os peixes (bagres ou não) e com as plantinhas, ou na falta de planejamento estratégico? Privarei os leitores do óbvio ululante.

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