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Vale o mais restritivo?

É errado defender que, em casos ambientais, a Justiça deve seguir a norma mais restritiva. Além de não ter base legal, a tese pode prejudicar o meio ambiente.

24 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Sempre que normas jurídicas ditas “ambientais” se encontram em aparente conflito, o “defensor” do meio ambiente mais próximo dá logo o berro: “Aplica-se a mais restritiva!”. Foram tantas as vezes que tal grito foi gritado que mesmo pessoas esclarecidas sustentam essa tese “jurídica”. Olhando a questão com um pouco mais de calma e desapaixonadamente faz-se necessário afirmar que não é bem assim que as coisas se passam.

A primeira indagação para compreender o problema é a seguinte: Qual é o conceito de mais restritivo? Aparentemente, mais restritivosignifica a menor intervenção ambiental quando comparadas as normas que estejam em um suposto conflito positivo. De acordo com os princípios da precaução e tantos outros quanto a criatividade humana possa vir a criar, deve ser privilegiada a norma que admita a intervenção mais light sobre o meio ambiente.

Do ponto de vista puramente ambiental, nem sempre a intervenção mais suave sobre o meio ambiente é a melhor ou necessária. Muitas vezes, em função de intervenções muito pequenas sobre o meio ambiente surgem situações de profundo desequilíbrio ambiental. Aqui nesta folha já se falou muito sobre gatos. Logo, não vou voltar ao tema. Mas, cá para nós, os adoráveis coelhinhos da Páscoa fizeram uma verdadeira confusão ambiental na Austrália. A pesquisadora Selma Giorgio dá um exemplo do método utilizado para a contenção do número de coelhos, lá no país down under.

“Dois dos exemplos mais utilizados pelos que acreditam que a virulência é um estágio primitivo da associação parasita-hospedeiro são os da dispersão da mixomatose em coelhos da Austrália e da infecção de ruminantes com tripanossomatídios. A mixomatose é uma doença devida a vírus que ocorre naturalmente em coelhos (Sylvilagus brasiliensis) na América do Sul, provocando uma infecção relativamente benigna (pequenos tumores e mortalidade muito baixa). Em coelhos europeus e australianos esse vírus provoca doença letal com lesões graves. Na década de cinqüenta a população de coelhos na Austrália (Orytolagus cuniculus, descendentes de indivíduos trazidos da Inglaterra) era estimada em centenas de milhões. Como medida de controle populacional, foi introduzido o vírus da mixomatose naquele País. Após alguns anos da dispersão do vírus a população de coelhos reduziu-se a cerca de 1% do seu tamanho anterior. No caso do tripanossomatídio, este parasita provoca uma infecção moderada, com taxas de mortalidade muito baixas em ruminantes nativos da região Leste da África, mas torna-se extremamente virulento, ocasionando doença fatal em ruminantes domésticos, recentemente introduzidos naquela região. (1)”

Ora, caso existisse uma lei que não autorizasse a intervenção promovida sobre a população de coelhos, segundo a tese do “mais restritivo” ela deveria ter sido utilizada e talvez o representante australiano na ONU fosse Roger Rabbit ou o coelho Ricochete. Pensando bem, talvez o mais adequado fosse dar a chefia da delegação ao Pernalonga, visto que mais antigo e experiente. De longe, seria a delegação mais amada pelas crianças. Na verdade, muitas vezes o manejo ambiental precisa ser drástico com algumas situações-limite. Entretanto, está inteiramente fora da minha pouca competência falar sobre manejo de fauna ou flora, motivo pelo qual jogo a toalha e retomo o ponto central do artigo.

Não há qualquer base legal ou constitucional para a afirmação de que “vale o mais restritivo”, parafraseando o consagrado “vale o escrito” tão prestigiado no jogo imortalizado pelo Barão de Drummond. A ordem jurídica, como se sabe, organiza-se em um escala hierárquica, encimada pela Constituição Federal, que, dentre outras coisas, dispõe sobre a competência dos diversos organismos políticos e administrativos que formam o Estado. Pouco importa que uma lei seja mais restritiva e, apenas para argumentar, seja mais benéfica para o meio ambiente se o ente político que a produziu não é dotado de competência para produzi-la. A questão central que deve ser enfrentada é a que se refere à competência legal do órgão que elaborou a norma. Naturalmente, espera-se que os diferentes entes políticos produzam boas leis, na esfera de suas competências.

O Brasil é organizado politicamente sob a forma de um Estado Federal com três níveis de governo. Cada um desses níveis tem uma esfera de atribuição própria que deve ser respeitada pelos demais níveis de governo e, evidentemente, por cada um deles em relação às suas próprias atribuições. Assim, um governo não deve dispor além, muito menos aquém, de suas prerrogativas constitucionais. Hipoteticamente raciocinando, o Estado do Rio de Janeiro poderia proibir instalações nucleares em seu território. Ora, como a União permite instalações nucleares no Brasil, é evidente que a lei estadual seria mais restritiva e, portanto, admitindo-se a tese que vem sendo debatida, a lei local deveria prevalecer sobre a lei federal. O raciocínio peca, todavia, devido ao fato de que os estados não têm competência em matéria nuclear. Os contrários à tese que estou defendendo poderão argumentar que o nuclear é uma competência exclusiva da União e, portanto, o exemplo não caberia. Diriam que, em se tratando de competência concorrente, aí sim a aplicação da norma “mais restritiva” encontra o seu lócus privilegiado de existência.

Embora o canto de Circe seja sedutor, não devemos nos deixar levar por ele, pois as conseqüências podem ser trágicas. Reconheço que a nossa Constituição Cidadã não é nenhum exemplo de coerência e de clareza. Ao contrário, ela é bastante complexa e pouco clara. No tema obscuridade, a repartição de competências nada de braçada, pois é de longe a principal dificuldade para o nosso federalismo dito “cooperativo”. A força avassaladora que a União detém, seja do ponto de vista dos recursos econômicos, seja do ponto de vista do arsenal de competências legislativas e administrativas que lhes foram outorgadas pela própria Constituição, faz com que a própria União defina quais são os limites de sua legislação geral. Assim, os Estados devem – como rotina – conformar-se com a produção de normas cosméticas e de pouca relevância prática. Não havendo uma definição clara sobre o conceito de norma geral, esta será aquilo que a União quiser que seja.

A restrição que o Estado está autorizando legitimamente opor a uma atividade submetida à competência concorrente não pode ir ao ponto de descaracterizar as normas federais. Trocando em miúdos, um Estado não pode, por exemplo, proibir em seu território um produto que esteja autorizado pela União, ainda que sob o pretexto de estar exercendo a sua competência concorrente em matéria de proteção ao meio ambiente.

Como todo regime federal, a constante fricção entre os diferentes entes federativos no que se refere à definição precisa dos limites de sua competência, sobretudo legislativa, se faz pelo chamado controle de constitucionalidade das leis. Controlar a constitucionalidade das leis é uma tarefa atribuída ao Poder Judiciário, que a exerce por dois caminhos básicos: (i) o concentrado e (ii) o difuso. O controle concentrado, no que se refere à constitucionalidade de uma norma em relação ao Texto Constitucional Federal, é exercido pelo Supremo Tribunal Federal. É controle essencialmente político, no sentido elevado do termo, e pode ser considerado como a pedra angular do federalismo. Já o controle difuso é aquele realizado por qualquer juiz em uma situação concreta. É importante assinalar o fato de que, na via concentrada, a decisão é obrigatória e geral, o que não ocorre quando a declaração de inconstitucionalidade é fruto de controle difuso. A Corte Constitucional, ao examinar a lei concretamente considerada, não indagará se ela é mais ou menos restritiva. Indagará, isto sim, se ela está, ou não, compreendida na esfera de competências do órgão que a introduziu no universo jurídico.

Logo, como espero ter demonstrado, a idéia da aplicação da lei mais restritiva é mais um dos diversos mitos que povoam o nosso direito ambiental, tal como praticado no Brasil.

(1) SciELO Library

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