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Um país de bacharéis

No País dos Bacharéis, a realidade ambiental pouco importa. A retórica das leis e processos jurídicos é um mundo à parte, que só faz sentido nos tribunais.

11 de novembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando‑se mutuamente, chamava‑se nesse tempo – O canto dos meirinhos-; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando‑se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.

Daí sua influência moral.

(Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias)

Não se imagina o rebuliço que tal coisa foi causar lá. Que língua era? Consultou-se o doutor Rocha, o homem mais hábil da secretaria, a respeito do assunto. O funcionário limpou o pince-nez, agarrou o papel, voltou-o de trás para diante, pô-lo de pernas para o ar e concluiu que era grego, por causa do “y”.
O doutor Rocha tinha na secretaria a fama de sábio, porque era bacharel em direito e não dizia coisa alguma.

(Lima Barreto, O triste fim de Policarpo Quaresma)

Era uma vez, há muito tempo, em um lugar muito longe daqui, um País de Bacharéis. Lá, nada acontecia, nada se passava se não fosse intermediado pelos bacharéis. Na linguagem popular, termos como data vênia, meritíssimo, rebus sic stantibus, propter rem e outros, eram expressões coloquiais que, à moda de interjeições, freqüentavam papos nos botequins e cafés daquele feliz país, no qual reinavam os bacharéis. Alcançar o bacharelato era entrar em uma casta que gozava as maravilhas do Nirvana intelectual, pairando sobre os meros mortais.

O chamado “bacharelismo” era uma das mais arraigadas tradições daquela nação que, de tão forte, acabou se transformando no próprio nome do país: República Federativa dos Bacharéis. Aliás, eu mesmo, como Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, sinto uma profunda depressão por não ser cidadão daquele maravilhoso país, no qual gozaria das benesses de participar da classe dirigente. Aqui, no Brasil, não passo de um mero “operador do direito”, como é a moderna expressão politicamente correta usada para designar aqueles que ganham a vida como profissionais do direito, os antigos juízes, promotores, advogados e outros menos votados.

No País dos Bacharéis, o sistema político era o chamado Bacharelismo que se caracterizava por ser uma supervalorização das profissões jurídicas e, em especial de um linguajar hermético, confuso e, no fundo, vazio. O bacharelismo, naquele longínquo país, se caracteriza, também, por uma predominância de bacharéis em todas as instituições e por um fetichismo da forma jurídica. Ainda que, por um descuido eleitoral, tenham passado por um período no qual o semi-analfabetismo tenha sido altamente valorizado – uma reação natural daqueles que não integram a classe dos bacharéis.

Está ótimo. Mas, a final de contas, o que o bacharelismo tem a ver com meio ambiente? Em princípio nada. Porém, no País dos Bacharéis, as questões de meio ambiente passaram todas ao implacável controle dos brâmanes bacharelescos. Um ou outro incauto tentava argumentar quanto à impertinência de um excesso de bacharéis nas discussões sobre DBO, DBQ, limites de material particulado no ar, efeito estufa, poluição por produtos químicos. A tais heréticas dúvidas, a casta de bacharéis retorquia: “— Somos ou não somos o País dos Bacharéis?” Logo, o bacharelismo tem muito a ver com meio ambiente.

Bacharelismo ambiental

A primeira constatação da forte presença do bacharelismo nas questões ambientais no País dos Bacharéis é a crença – tipicamente bacharelesca – de que normas e leis resolvem problemas ambientais. Tal crença só é superada por uma outra, igualmente filha do bacharelismo, de que as “comissões” são aptas para solucionar problemas. Assim, firmes na tradição patrimonialista e bacharelesca eles seguem legislando, cada vez mais, e resolvendo os problemas cada vez menos.

Um bom exemplo do bacharelismo foi quando o Cobama (Conselho Bacharelesco do Meio Ambiente) resolveu discutir uma Resolução – mais uma – sobre as Áreas de Preservação Permanente (APPs). Depois de idas e vindas, recursos ao Poder Judiciário, 102 emendas, tricas e futricas, nada ficou resolvido. Os debates, entretanto, foram estupendos, os oradores se sucederam com espetacular regularidade, precisão de relógio suíço e todos exercitando as capacidades retóricas de variar sobre o mesmo ponto. Mas como o importante é a discussão em si própria em acirradíssimas disputas retóricas, discursos, hipérboles verbais e tudo mais que a tradição bacharelesca possa oferecer como instrumento para os embates parnasianos, o problema real de definir os usos permitidos nas APPs continuou como um corpo insepulto jazendo sobre as arenas dos duelos verbais. Muito embora, comenta-se nos corredores dos palácios bacharelescos, os debates tenham sido memoráveis e já se vislumbrasse a possibilidade do lançamento de um DVD com imagens de todas as audiências públicas, making of e tudo aquilo que potencialmente pode levar ao sucesso do novo produto, cuja renda será revertida para a compra de novos carimbos para o Cobama. Há, inclusive, quem tema pela saúde de determinados conselheiros se a questão for resolvida.

O excesso de bacharelização das questões ambientais é uma das mais contundentes provas do bacharelismo. Não me acuse de estar subalternizando o Poder Judiciário ou de querer “subtrair à apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito.” Não é disto que estou falando, muito menos estou me referindo às mazelas do regime democrático como uma carpideira do regime ditatorial. Não, sai pra lá urubu. É que mesmo para mim, como bacharel, fica difícil entender que o problema da transposição do rio Santo Ivo [1] não fosse discutida por este ou aquele critério hidrológico, pedológico, geológico, ou seja lá o que for. Discutiu-se o tautológico em um processo ilógico que gerou o que um bacharel chamaria de insegurança jurídica, visto que não se sabe, no País dos Bacharéis, se os investimentos poderão ou não se realizar, e se a obra será implementada ou não. Embora bacharel, talvez eu ainda não tenha compreendido a essência do bacharelismo. Comprometo-me, contudo, a envidar os meus profundos esforços para fazê-lo.

Para quê um bacharel

A grande estrela da gestão ambiental moderna no País dos Bacharéis, como não poderia deixar de ser, é o bacharel. Seja ele um bacharel que atua no privado, ou que atue no público. As equipes interdisciplinares organizadas para elaborar estudos ambientais, nada produzem, nada redigem sem que o bacharel que as “fiscaliza” aponha o seu “imprimatur” nos documentos que elaboram. Uma vez impresso, o estudo ambiental é analisado por um órgão ambiental, no qual pontifica o bacharel encarapitado na assessoria jurídica que, independentemente de qualquer conceito técnico ou científico que esteja presente no estudo ambiental, sem se indagar se existe uma adequação técnica e científica, esquecerá as repercussões do empreendimento sobre o efeito estufa e, com ágil lupa, buscará qual a sub-portaria contrariada pelo estudo ambiental, perquirindo as novíssimas normas que, esquecidas nos diários oficiais, encontram-se prontas para atravancar qualquer empreendimento um pouco mais ousado. Assim, o nihil obstat da assessoria jurídica é o graal cuja busca é cada vez mais incessante.

Sim, mas todo este movimento entre bacharéis é, nada mais nada menos, do que o preâmbulo para os momentos realmente eletrizantes que se avizinham. Sim, pois bacharéis de alto coturno se encontram às espreitas e prontos para fazerem com que o peso da lei caia sobre a cabeça daqueles que não cumpriram esta ou aquela resolução, ignoraram as portarias e, por fim, pecaram contra as leis, sacrossantas na República dos Bacharéis. Refiro-me aos bacharéis que se encontram nas funções públicas: os promotores, procuradores, juízes, delegados, peritos e tantos outros. É no Poder Judiciário que, de fato, são decididas as questões mais relevantes da gestão ambiental do País dos Bacharéis. Não há grande projeto ou empreendimento que, de uma forma ou de outra, não tenha – no mínimo – tangenciado o Poder Judiciário, que não tenha ido às barras dos tribunais.

Sim, nos tribunais. Aqui está a glória suprema do País dos Bacharéis. É no processo, este grande embate entre gigantes da dialética, que se chega ao clímax de uma carreira. É aqui que, ao longo dos anos, os motivos que fundamentaram o petitório inicial, a causa petendi e outros elementos que fundamentam a tríplice condição das ações, vão desaparecendo e, subitamente, o empreendimento em tela – como que em um passe de mágica – desaparece e o duelo entre os bacharéis restringe-se ao que há de mais sublime e essencial: o processo. O direito em pé de guerra. Chega-se ao êxtase nos cafés do fórum ao se discutir qual é o processo mais antigo, qual o que ostenta o maior número de páginas, quem interpôs mais recursos. Neste momento, solenemente, todos reconhecem e agradecem a felicidade de poder viver no País dos Bacharéis.

A transposição do Rio Santo Ivo, o problema dos organismos geneticamente modificados, a construção de hidroelétricas, no País dos Bacharéis são considerados assuntos menores quando comparados à forma jurídica, aos formulários à moda de Yara Muller que, multiplicando-se pelos fora, conformam aquela nação. Há, inclusive, a disputa para saber qual será a medida judicial mais bonita tomada contra este ou aquele empreendimento. Assim, o bacharelesco concurso, faz com que Gregor Samsa se sinta um felizardo e veja o ridículo de suas críticas ao processo judicial. Na disputa entre os poderes, o Executivo do País dos Bacharéis, enciumado com as perfomances do Judiciário local, deu o troco quando pôde. E realmente, foi genial. Pensavam os bacharéis em resolver os problemas ambientais de lá com uma lei criminal. Sim. A lei resolveria tudo. Ante argumento tão contundente, e decisivo, o Executivo teve que se submeter, ainda que a contragosto. A resposta, no entanto, foi cruel. O artigo 1º da tal foi vetado. Assim, a perfeição técnica daquela verdadeira obra de arte foi descaracterizada, fato que até hoje gera controvérsia no País dos Bacharéis. E assim, naquele distante país, as coisas vão se passando, sempre sob o crivo deste ou daquele bacharel, novas leis, novos documentos, portarias, e tudo o mais. Felizmente, no Brasil, não padecemos dos males do País dos Bacharéis e podemos dizer que estamos imunes aos excessos que lá são cometidos. E nos rimos com os estranhos modos e hábitos de tão exótica nação.

Há esperanças, só não para nós.
Franz Kafka

1. Comemorado no dia 19 de maio, padroeiro dos advogados.

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Comentários 1

  1. Carlos Peixoto diz:

    Lapidar. Esplêndido, se não fosse tão tristte.