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Antígona e o meio ambiente

Prefeito do interior paulista cria lei que proíbe cidadãos de morrer. Falta espaço no cemitério, e uma resolução absurda do Conama impede a construção de outro.

9 de dezembro de 2005 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

“Não foi Zeus quem a ditou nem foi a que vive com os deuses subterrâneos, a justiça que aos homens deu tais normas. Nem nas tuas ordens reconheço força que a um mortal permita violar aquelas não inscritas e intangíveis leis dos deuses. Estas não são de hoje ou de ontem, são de sempre. Ninguém sabe quando fora promulgadas”.
(Sófocles, Antígona)

A Cultura Ocidental, da qual fazemos parte tanto para o bem, como para o mal, muito embora haja, nos “círculos bem pensantes”(?), uma certa vergonha da tradição cultural do ocidente, encontra firmes raízes na Grécia Clássica. Um dos momentos culminantes da Cultura Helênica é, sem dúvida, a obra de Sófocles (1), com especial ênfase para a Trilogia Tebana. Antígona, a extraordinária heroína construída pela genialidade do autor, diante da morte de seu irmão Polinício e do édito de Creonte (rei de Tebas), que proibia o sepultamento do rapaz, rebelou-se contra o Estado, então personificado na pessoa de Creonte, afirmando o direito ao sepultamento do corpo de seu irmão. Este é um dos maiores momentos do Direito em todos os tempos. Na defesa de seus argumentos ela invoca a proteção de leis superiores àquelas produzidas pelo Estado e que, por eternas, não se sujeitavam às vontades deste ou daquele governante episódico. Não há como esconder a forte denúncia do relativismo e da legislação feita para atender interesses momentâneos e menores, no repto fundamental que ela lançou. Esta notável passagem da literatura universal marca a construção do conceito de direito natural que tanta importância tem para o combate à tirania. Os analistas apressados podem pensar que o Direito é uma construção romana e que a Grécia não desenvolveu as artes jurídicas de forma notável. Isto não é verdade: as concepções gregas de ordem jurídica foram apresentadas em seu teatro. A trilogia tebana, no particular, é um local maravilhoso e delicioso para estudo da temática. Devemos aos gregos o conceito de Natureza e das leis universais. É na obra do “grego obscuro”, do qual falara Leo Strauss, que encontramos as raízes profundas de nosso modo de pensar. A própria ecologia e a crise ecológica da velha Helade podem ser vistas em Críto de Platão.

Mas, voltemos à dura realidade tupiniquim que, mais uma vez, deu um show de bola na ficção e na própria Filosofia Grega, para surpresa de todos nós. O memorável feito foi realizado na progressista cidade de Biritiba Mirim, situada no interior de São Paulo, e mostrou que a criatividade humana não tem limites. Lá, o Odorico Paraguassú aggiornatto, tal como Fausto tropicalizado, ocupando o honroso e valoroso cargo de alcaide local, enviou Projeto de Lei para a Câmara de Vereadores, a nossa Ágora, proibindo a morte. Sorry periferia, apenas isto. Vejamos o noticiário a respeito:

O prefeito Roberto Pereira da Silva (PSDB) enviou a Câmara Municipal um projeto de lei dispondo sobre a proibição de morrer no Município de Biritiba Mirim. O projeto de lei trata-se na verdade de um protesto com o objetivo de chamar a atenção da opinião pública para o problema da superlotação do Cemitério Municipal e a proibição da construção de um novo local para sepultamentos.

Na mensagem enviada a Câmara Municipal o prefeito explica que não é sua intenção desmerecer a ação do Legislativo e dos vereadores ao enviar o projeto de lei. “Pode parecer um absurdo o envio deste Projeto de Lei a esta Nobre Casa de Leis, no entanto, absurdo maior é a Resolução 335/03, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) que nos proíbe de construir um novo cemitério no Município, alegando prejudicar o meio ambiente”, informou o prefeito num dos trechos da mensagem. O Cemitério Municipal está superlotado. Enquanto as autoridades estaduais e federais não agem oferecendo a solução para a construção de um novo cemitério municipal, o povo biritibano deverá cuidar da saúde para não falecer. Devido a Lei de Proteção aos Mananciais a Prefeitura Municipal está proibida de tomar as providências para a construção de um novo cemitério municipal.

Eu não quero parecer implicante, mas dava para desconfiar que o CONAMA tinha algo a ver com a história. Ora, sabemos que o genial Dias Gomes, ao escrever O Bem Amado, falou sobre a inauguração de um cemitério na deliciosa Sucupira. Entretanto, ninguém morria e o cemitério não tinha “matéria prima” para ser inaugurado. Creonte, proibiu um sepultamento. O Conama, ao menos na interpretação do Chefe do Executivo biritibano, radicalizou de vez. Proibiu a construção de cemitérios na localidade e proibiu qualquer sepultamento. Aqui podemos constatar como Sófocles foi tímido em sua ficção.

De fato, a Resolução 335/03 do Conama define as normas para o licenciamento ambiental dos cemitérios. A norma, justiça se lhe faça, é uma das jóias da coroa produzidas pelo indigitado Conama. Vejamos o seguinte artigo: “Art. 9º Os resíduos sólidos, não humanos, resultantes da exumação dos corpos deverão ter destinação ambiental e sanitariamente adequada”. O que o Conselho desejaria dizer com o “permissivo legal”? Exumar, aliás, foi objeto de definição na Resolução baixada pelo próprio Conselho, da seguinte forma: “Retirar a pessoa falecida, partes ou restos mortais do local em que se acha sepultado”. A pergunta que não quer calar é: o que seriam resíduos sólidos não humanos, resultantes da exumação? Confesso a minha mais profunda, total, ampla, geral e irrestrita ignorância sobre a matéria. Mesmo não tendo uma procuração de Antígona, não hesito em dizer que ela ficaria profundamente indignada se o Conselho de Meio Ambiente Tebano (COMATE?) atribuísse aos restos mortais de Polinício subalterna condição de “resíduo sólido não humano”. Mesmo tendo nascido de uma relação incestuosa de Édipo com Jocasta (mãe do primeiro), Polinício era humano e o seu cadáver, ou mesmo os restos mortais, não poderiam ser reduzidos à revoltante condição de “resíduo sólido não humano”. Talvez uma consultoria especializada de José Mojica Martins, conhecido popularmente como Zé do Caixão, pudesse ajudar a esclarecer tais questiúnculas. Informo que, devido à notória especialização, o nosso Zé do Caixão poderia ser contratado sem a competente licitação e que não recebi, recebo ou receberei qualquer comissão caso a contratação venha a ser efetivada e homologada pelo Tribunal de Contas.

A infeliz e lutadora Antígona limitou-se a postular uma sepultura para Polinício, mas, fosse hoje em dia, ela teria que enterrar o irmão nos moldes determinados pelo Conama: “Art. 8: Os corpos sepultados poderão estar envoltos por mantas ou urnas constituídas de materiais biodegradáveis, não sendo recomendado o emprego de plásticos, tintas, vernizes, metais pesados ou qualquer material nocivo ao meio ambiente”. Observem a elegância do artigo. Mesmo em um momento de tragédia, de dor insuportável, o toque politicamente correto se faz presente.

Enfim, diante de tantas questões complexas, o melhor é mudarmos para Biritiba, pois lá morrer é proibido. Como diria Belchior, o cantor, “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”. Francamente.

(1) Sófocles (496 a 405 a.C.) nasceu em Epidauro e, além de exercer uma brilhante carreira dramática, dedicou parte de sua vida às atividades atléticas, à música, à política, ao militarismo e, por fim, à vida religiosa (foi sacerdote do herói-curador Amino, e, nessa condição, contribuiu para a introdução do culto de Asclépio na Ática).

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