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Pedal Feliz

Sem medo de ser bairrista, o Rio de Janeiro oferece uma malha cicloviária bem decente a quem pedala de casa ao trabalho. Desde que possa tomar uma chuveirada por lá.

24 de agosto de 2007 · 17 anos atrás

Saí de Nairobi, cidade em que até recentemente morava, para a Brasília de onde, antes de enviarem-me a Lisboa para onde fui transferido, pediram-me para vir ao Rio de Janeiro a trabalho. Vou ficar em terras Fluminenses durante cerca de um mês, organizando a parte logística de uma reunião internacional. Estou albergado em Ipanema, mas meu escritório fica no Centro da Cidade há cerca de 20 quilômetros de distância, o que normalmente toma uma hora de deslocamento no período do rush. Normalmente, mas nem sempre. Existem opções.

Uma forma de escapar ao pára-anda-pára que caracteriza o tráfego veicular carioca é pegar o metrô. Outro jeito mais saudável, embora menos usual, é pedalar de casa ao trabalho. Essa tem sido minha alternativa desde a adolescência. Comecei a usar a bicicleta como meio de transporte em 1980, quando ganhei uma calói 10 de meu pai. Com ela fiquei independente de caronas e da grana do ônibus. Na época, morava em Laranjeiras. Ao colégio e ao Fluminense ia a pé. O resto era de bicicleta. Pedalava à praia, ao cinema, ao curso de inglês, à casa da namorada.

À medida que fui envelhecendo vi a cidade se aparelhar para o ciclista. No início as únicas ciclovias que tínhamos eram a da Lagoa Rodrigo de Freitas e a do Aterro do Flamengo. Lembro bem da alegria que senti quando o Prefeito Marcello Alencar reformou a Avenida Atlântica e construiu uma ciclovia junto às areias de Copacabana, logo acrescida de outra na praia de Ipanema. Também me recordo do esforço de Alfredo Sirkis e Roberto Aibinder para convencer a corrente rodoviarista da Prefeitura à transformar uma das passarelas de pedestres do túnel novo em faixa destinada exclusivamente às bicicletas. Aplaudi a luta vitoriosa do Município para tirar os carros que insistiam em invadir a ciclovia João Saldanha. Testemunhei com prazer imenso as obras que permitiram a ligação entre as ciclovias de Flamengo e Botafogo; Botafogo e Copacabana e Copacabana e Ipanema. Também acompanhei a expansão para a Barra, São Conrado, Jardim de Alá, Maracanã, Gávea e Bangu. Pessoalmente planejei e gestionei junto ao Prefeito Conde a instalação da ciclovia da Floresta da Tijuca.

Mas nem tudo eram flores. Quando trabalhei na Secretaria de Meio Ambiente do Município, em 1998, fui barrado pelo segurança do prédio da Prefeitura, cujo regulamento impedia a entrada de bermudas. Mais uma vez foi necessária a intervenção do próprio Prefeito para que o órgão que constrói ciclovias e desenvolve uma política cicloviária permitisse que seus servidores usassem a bicicleta como meio de transporte até o trabalho! Essa pequena batalha foi ganha. No final o prédio foi dotado de bicicletário, chuveiros e armários, infraestrutura indispensável para quem poreja a caminho do serviço.

Outras guerras não tiveram desfecho tão feliz. As ciclovias projetadas para ligar o Museu de Arte Moderna à Praça Quinze e o Aterro à Cidade Nova jamais saíram do papel. As ciclovias Tricolor e a de ligação entre Botafogo e Lagoa foram projetadas sem levar em consideração os trajetos consagrados pelos ciclistas e, uma vez concluídas, são de muito pouca utilidade prática. As ciclovias de ligação da Lagoa ao Parque da Catacumba e a ciclovia da rua Pacheco Leão virtualmente desapareceram, vítimas de uma manutenção para lá de rarefeita.

Saí do Rio em 2001. A serviço, viajei pelos quatro cantos do mundo. Vi malhas cicloviárias de sonhos, como são os casos de Amsterdã, Berlim, Brisbane, Canberra, Melbourne, Perth, Bogotá e Boulder no Colorado. Morei em Lima, Sydney e Nairobi. Em todas essas cidades, com maiores ou menores facilidades, continuei usando a bicicleta para ir ao trabalho. Assim não é de espantar que, de volta ao Rio, ainda que por apenas um mês, eu esteja mais uma vez me deslocando diariamente de Ipanema ao Centro de bicicleta.

A impressão que tenho é que os cariocas aderiram de vez ao uso da magrela. Até o Governador Sérgio Cabral já foi flagrado pedalando. Por outro lado, trafegar nas ciclovias do Rio hoje é muito menos prazeroso do que antigamente. A vista continua deslumbrante e o pavimento das ciclovias ainda é bom. Mas há muito mais bicicletas no caminho. Contemplar a paisagem não é recomendável. Há que se prestar atenção o tempo todo ao intenso trânsito ciclístico, sob o risco de se envolver em uma colisão. Também visivelmente aumentou o número de pessoas que estão se transportando sobre duas rodas. Se antigamente as ciclovias eram áreas de lazer, hoje, já não me sinto solitário no meu traslado diário casa-trabalho-casa. Outros ciclistas com mochilas às costas ou bagageiros carregados são já bastante comuns. O que não mudou foi a deseducação do público em geral. Pedestres e corredores na contramão e ciclistas que avançam todos os sinais, continuam tão onipresentes quanto o eram há alguns anos atrás. Ainda assim, tendo pedalado em cidades dos quatro continentes, posso dizer sem medo de estar sendo bairrista que, para quem tem no seu destino um vestiário onde possa tomar uma chuveirada, o Rio oferece uma malha cicloviária bem decente a todos aqueles que pedalam ao serviço.

As ciclovias cariocas são protegidas dos carros, têm uma quilometragem extensa e passam por regiões de beleza ímpar. Falta algo? Com certeza. De banheiros e vestiários públicos a diversas novas rotas, ainda há muito- mas muito mesmo- o que fazer. Mas para quem acaba de chegar de Brasília- uma cidade de clima civilizadíssimo, topografia plana e traçado urbano planejado, onde não há um centímetro sequer de ciclovia decente- o Rio é inegavelmente uma cidade maravilhosa.

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