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Apagando incêndios na sala de aula

Recursos humanos para combater incêndios há por esse Brasil afora. O problema é o despreparo. É preciso treinar líderes que tenham capacidade de coordenar diferentes equipes.

2 de novembro de 2007 · 17 anos atrás

Escrevo em fins de outubro. A Califórnia arde. Os jornais noticiam que 120 mil hectares de mata já viraram cinzas. Quinhentas mil pessoas foram evacuadas e o Governo de Arnold Schwarzenegger declarou estado de emergência. No Brasil, a situação não chega a ser tão grave, mas tampouco é animadora.

Pipocam incêndios pelo país afora. No Rio de Janeiro, a situação é tão grave que o Secretário de Estado do Ambiente, Carlos Minc, chegou a ameaçar de prisão qualquer pessoa flagrada fazendo queimadas. Ao que tudo indica, com o aquecimento global e a mudança generalizada dos padrões climáticos, a tendência a grandes catástrofes incendiárias deve piorar nos próximos anos.

Nesse contexto, é necessário repensar as políticas de prevenção e combate aos incêndios florestais. Países como os Estados Unidos e a Austrália estão bastante avançados nessa seara. Têm excelentes estruturas de recursos humanos, materiais e financeiros canalizados para a prevenção e combate aos incêndios em áreas naturais. Mais do que isso, dispõem de legislação pensada para permitir o trabalho coordenado de diversas agências em situações em que é necessário mobilizar contingentes cujo efetivo extrapole a tropa disponível do Corpo de Bombeiros. Desenvolveram mesmo uma doutrina específica para o emprego conjunto de pessoal e equipamento de agências com culturas operacionais e treinamento diferentes, a que dão o nome de ICS (Incident Command System).

Talvez esses países estejam à frente da grande maioria pela própria natureza dos seus ecossistesmas. O pinus, na América do Norte, e o eucalipto australiano são extremamente comburentes. Quando se juntam grandes extensões ocupadas por essas árvores, à secura do verão australiano ou californiano, ao calor e a fortes ventos que podem carregar o fogo a velocidades espantosas, cria-se uma receita dantesca.

No Brasil, ainda não temos tamanha cobertura de eucaliptos ou de pinheiros. Mesmo o Cerrado, apesar de muito suscetível à combustão, não tem as árvores altas das florestas australianas. O eucalipto tem um caule oco que, quando aquecido, se transforma em potente canhão que projeta no ar enormes bolas de fogo. Estas são imediatamente levadas pelo vento a quilômetros de distância, fazendo o incêndio progredir a velocidades incríveis e cuja progressão é muito difícil de controlar com simples aceiros ou com combate direto.

Para nossa felicidade, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica são muito menos propensas ao fogo. São mais úmidas e mais densas, o que não cria tantas facilidades para a propagação de incêndios. Por outro lado, o Cerrado, assim como as matas de eucalipto, tem o fogo como parte de seu ciclo natural.

Eventualmente esses ecossistemas se regeneram. Muitas vezes voltam até com mais viço e força que antes de serem calcinados. Já a Amazônia e sobretudo a Mata Atlântica não têm essa vantagem natural. Nesses ecossistemas, um hectare queimado tende a se perder para todo o sempre. No caso da Mata Atlântica, cercada por espécies exóticas, dificilmente a floresta original se regenera naturalmente. Em geral, o que nasce em terreno calcinado, instalando-se definitivamente no local, é capim colonião, uma gramínea invasiva de origem africana.

Por isso mesmo a tragédia da Califórnia e, sobretudo, a forma que está sendo administrada deveria servir de estudo de caso para o Instituto Chico Mendes. Aliás não é sequer necessário ir à Califórnia para aprender em inglês o que já existe em nossa língua materna.

Experiência portuguesa

Após os trágicos incêndios dos últimos anos, Portugal implantou o seu próprio sistema de ICS. O balanço positivo já se fez sentir com menos incêndios e a consequente redução da perda de área natural e destruição de propriedades este ano em relação a períodos anteriores. A implantação do ICS requereu treinamento em métodos de operação para efetivos de quase meia centena de agências. Apenas no mês passado, 600 homens da Guarda Nacional Republicana, a PM portuguesa, foram capacitados para atuar em conjunto e em conformidade com as doutrinas aplicadas pelos bombeiros lusitanos.

Nesse sentido, os oficiais fizeram cursos na Escola Nacional de Bombeiros e, posteriormente, usaram o que aprenderam para capacitar sargentos, cabos e soldados. A GNR, contudo, foi apenas uma das agências a aderir ao ICS. O último incêndio que assolou Peneda-Gerês, único Parque Nacional de Portugal, foi debelado por funcionários de 30 entidades diferentes, todos capacitados em ICS.

No Estado do Rio de Janeiro também há gente muito capacitada em ICS. Trata-se do Grupamento de Socorro Florestal e Meio Ambiente do Corpo de Bombeiros (CBMERJ). Seu atual comandante, tenente-coronel Wanius de Amorim, fez cursos de ICS nos Estados Unidos e na Austrália. Outros oficiais que serviram na unidade e que hoje ocupam cargos de chefia na corporação também são proficientes no sistema de gerência de grandes catástrofes. Dois deles ocupam cargos estratégicos. O coronel Bento é o Diretor Geral de Ensino e Instrução do CBMERJ, já o tenente-coronel Gilberto Mendes tem sob sua batuta a escola de formação de oficiais. Graças a esses homens, o ICS já consta como matéria nas instituições de ensino da Corporação. Em breve, todo o oficialato dos bombeiros Fluminenses saberá utilizá-lo.

É pouco. Não basta que os bombeiros sejam proficientes em ICS. Em operações de grande monta, como o incêndio que devastou Roraima em 1998, ou o que assolou a Floresta da Tijuca em 2000, é necessária a coordenação de muitos órgãos. Nesse sentido, é preciso formar em ICS também algumas pessoas com cargos de chefia nas forças armadas, polícias militares, guardas municipais, prevfogo, institutos florestais dos estados, prefeituras, companhias de água e órgãos afins. Essa é a lacuna que precisa ser preenchida pelo Chico Mendes. É chegada a hora de termos algo nos moldes da Escola Nacional de Bombeiros portuguesa.

Mais do que um local, é necessário um orçamento para formar um grupo de especialistas em ICS em todo o país. Recursos humanos para combater incêndios há por esse Brasil afora. O problema é o despreparo. Em um grande fogo florestal, poucos são os que efetivamente se digladiam com as flamas. A grande maioria cava trincheiras, abre aceiros, faz rescaldos, mobiliza transportes, providencia alimentação e alojamento. Para utilizar essa gente, entretanto, é preciso coordenação e cadeia de comando clara. Aí entra o ICS.

Custa pouco, mas para funcionar é preciso que as pessoas chave em diferentes agências aprendam a ensiná-lo ao conjunto de suas corporações.

Fazer isso, porém, não é tão fácil como seria de se supor. Sequer o Estado do Rio de Janeiro, que tem gente muito capacitada no tema, conseguiu disseminar o ICS pelas suas diversas instituições. Mas não é impossível. Um país muito mais pobre que o nosso, o Quênia, já entendeu as vantagens do sistema. Nesse momento dois oficiais dos Bombeiros do Rio estão na África capacitando os quenianos (e ruandeses, burundianos e ugandeses) em ICS. Já é o terceiro curso que os brasileiros dão a seus irmãos africanos.Quem sabe o Chico Mendes não segue esse exemplo e cria, também no Brasil um curso voltado para essa temática. Afinal, com fogo não se brinca.

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