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Andy

Educar uma criança sobre o meio ambiente  é fundamental para ensiná-la sobre a importância da conservação. Mas o processo pedagógico pode ser maçante. Falta-lhe um mínimo de prazer.

10 de setembro de 2008 · 16 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

A conservação da natureza é uma luta muito difícil e crucial, pois dela depende o nosso futuro e o dos nossos companheiros de planeta. Para que a luta pela conservação dê resultados concretos, o papel da opinião pública é fundamental. É indispensável que muita gente esteja do nosso lado, que muita gente sinta a importância de conservar as animais e as plantas, e não só por razões utilitárias, mas por eles mesmos. Sempre me perguntei sobre o que leva alguém a se tornar conservacionista. Sempre me questionei se a educação ambiental, como geralmente é feita hoje, de fato desperta nas pessoas a intensidade de envolvimento com conservação que precisamos. E toda vez que me questiono sobre essas coisas, penso em Andy.

Fiz meu PhD na Inglaterra, e minha tese foi sobre a ecologia de populações de duas espécies de pequenos roedores em uma floresta de coníferas chamada Hamsterley. As duas espécies estudadas foram o “woodmouse”, Apodemus sylvaticus, e o “bank vole”, Clethrionomys glareolus (hoje Myodes glareolus – os taxonomistas vivem mudando esses nomes). Me desculpe se não dou um nome vulgar em português desses bichos, mas é que teria que inventar um: não existem nomes vulgares em nosso idioma para bichos de outros países que não sejam “notáveis” como os elefantes, os leões ou os ursos. Mas acredite-me, o woodmouse é um ratinho pequeno, do mesmo tamanho que um camundongo doméstico (20 a 30 gramas), e bastante parecido com ele, exceto a cor, que é marrom e não cinza. Já os voles são pequenos roedores que lembram superficialmente porquinhos da Índia (embora não sejam parentes próximos deles), com um focinho muito curto, olhos muito pequenos, e cauda curta. No caso específico do bank vole, ele também tem o mesmo tamanho que um camundongo, mas com uma cor marrom-avermelhada forte, bem característica. Uma visita ao Google Images vai lhe mostrar que esses bichos aparentemente insignificantes são mamíferos bonitos, interessantes. Para mim, claro, roedor bonito é pleonasmo. É verdade que minha visão dos roedores está longe de ser regra, mas experimente olhar para um bank vole, por exemplo, e me diga se não é um bicho que desperta empatia, como tantos outros mamíferos.

Meu estudo era por captura-marcação-recaptura. Eu deixava armadas durante a noite armadilhas de captura viva Longworth, umas caixinhas de metal, iscadas com grãos de aveia, com portas que se fechavam quando o bicho entrava. A cada manhã eu conferia as armadilhas, marcava cada animal com um brinco que tinha um código de letras (ou só via qual era o código se era uma recaptura), e fazia algumas medições e verificações (se animal estava reprodutivo ou não, por exemplo). Depois cada animal era solto no mesmo lugar onde ele havia sido capturado. Ser capturado e manuseado aparentemente não devia ser muito traumático para os animais, porque a maioria deles eram recapturados várias vezes, alguns deles dezenas de vezes. Eu já era capaz de reconhecer vários dos indivíduos antes mesmo de ver seu código. Meu recordista era um woodmouse que foi capturado nada menos que quarenta vezes, e que gostava de sair de sua área original e invadir outros habitats. Eu ficava imaginando se isso tinha a ver com o código dele, que era US.

Dentro da floresta de Hamsterley funcionava um centro de treinamento de desempregados, que visava recolocá-los no mercado de trabalho, chamado “Community Task Force”. Era um lugar soturno, triste, onde estavam alguns dos muitos dos derrotados de uma sociedade inglesa cada vez mais impiedosa depois da influência, na época ainda relativamente recente, da Dama de Ferro Margaret Thatcher. Eram prédios mal cuidados, freqüentados por pessoas rudes, desmotivadas, olhando o futuro com pouca esperança.

Um dia, ao parar por alguma razão na Community Task Force, um garoto magro, de cabelo preto curto, vestido com um suéter bastante surrado, veio falar comigo. Chamava-se Andy. Disse-me que tinha quinze anos, era filho de um motorista de caminhão, e que seu pai estava desempregado e estava fazendo um curso ali. Andy tinha ouvido falar vagamente do que eu fazia, e me perguntou, com os olhos esperançosos, se podia ir comigo um dia ver meu trabalho. “Claro, nenhum problema”, eu respondi, “você quer ir amanhã?” Andy topou. No dia seguinte, cheguei a Hamsterley de manha cedo, sob um frio atroz, passei na Community Task Force, e lá estava Andy.

Fomos para minha área de estudo, e começamos a conferir as armadilhas. Logo, a primeira porta fechada, sinal de que devia haver um roedor lá dentro. Segui a rotina à qual eu já estava tão habituado: abrir a armadilha com a porta virada para baixo, deixar cair o roedor mais o material de ninho (que eu colocava para que eles não morressem de frio durante a noite) num saco plástico transparente, tirar o material de ninho, segurar o ratinho pelo cangote, logo atrás das orelhas. Medir, anotar, soltar o roedor, que escapava correndo ligeiro pelo chão da floresta. Andy só olhava o que eu fazia, atento, seguindo cada bicho com os olhos, mas sem ousar tocar ou participar. Eu sentia que faltava alguma coisa. Perguntei, “Andy, você quer pegar um?” Andy disse que não, mas seus olhos disseram que sim. Insisti.

Andy pegou o ratinho pelo cangote, mas um tanto desajeitado, talvez com medo de machucá-lo. O roedor se desvencilhou, pulou agilmente para o chão, deu alguns dribles homéricos em dois primatas atrapalhados e desapareceu para dentro de uma canaleta.

Andy ficou mortificado. Começou a se desmanchar em desculpas, ele era tão desastrado, eu tinha perdido os dados, ele tinha estragado tudo. Subitamente tinha ficado triste. Não!

“Pegue outro”, eu disse. “Não”, ele disse, “vou estragar tudo de novo”. Não se preocupe”, eu respondi, “eu pego muitos, um dado só não vai fazer falta, e além disso amanhã ou depois eu com certeza vou pegar os mesmos bichos de novo.”

Andy relutou um pouco, mas acabou concordando em tentar de novo. Desta vez segurou o camundongo com firmeza. Logo nós dois tínhamos formado uma equipe, tirando os woodmice e os voles das armadilhas, marcando os bichos, pesando, sexando, medindo. Comecei a deixar mais para Andy o trabalho de manusear os bichos, enquanto eu anotava os dados. Logo Andy foi se sentindo cada vez mais à vontade, segurando os bank voles pelo cangote e colocando os brincos na orelha deles com imenso cuidado. “I’d love to have your job” (“eu iria amar ter o seu trabalho”), ele me disse então, com um brilho nos olhos. Era visível o prazer com que Andy olhava aqueles animaizinhos, sentindo seu calor, a batida acelerada de seus pequenos corações, os olhinhos olhando suplicantes para nós enquanto os segurávamos pelo cangote. “Não se preocupe, eu não quero te fazer nenhum mal”, eu muitas vezes tinha vontade de dizer para o camundongo, se ele ao menos pudesse entender. Olhando para Andy segurando mais um bank vole pelo cangote, me pareceu que ele tinha a vontade de dizer a mesma coisa para o bicho. De repente, Andy estendeu a mão livre e fez um tímido carinho na testa do bank vole. Então recolheu rápido o braço e olhou para mim, talvez esperando um olhar de desaprovação. Não o encontrou.

Alguns roedores depois terminamos o trabalho. Deixei então Andy na Community Task Force, antes de pegar o caminho de casa. Ele me agradeceu efusivamente, e não foi uma mera resposta convencional dizer a ele que para mim tinha sido um prazer. Então, com seu entusiasmo lutando valentemente contra a sua reserva britânica, ele me disse, “It was the best day of my life” (“Foi o melhor dia da minha vida”).

Nunca mais vi Andy. Não sei o que aconteceu com ele. Mas tenho certeza de que onde quer que esteja, ele, assim como eu, nunca esqueceu aquele dia. E também tenho certeza de que o que quer que ele esteja fazendo como profissional, depois daquele dia a relação dele com a natureza nunca mais foi a mesma.

Lembrar da história de Andy me faz pensar sobre a educação ambiental. Muito da educação ambiental ainda se faz conscientizando as crianças, bastante racionalmente, das conseqüências negativas, para a natureza, de algumas coisas que fazemos ou deixamos de fazer. É claro que muito desse trabalho de conscientização pode ser brilhante e produtivo, mas muito dele acaba sendo como um tipo de inculcação de deveres, que corre o risco de parecer uma versão moderna da “educação moral e cívica”, de triste memória. Mesmo quando é “em campo”, isto é, no meio da natureza, muito da educação ambiental se concentra em falar sobre processos ecológicos que podem parecer abstratos demais para as crianças, ou em mostrar os problemas. Geralmente há poucas oportunidades de ter contato direto, nas próprias mãos, com algum animal que permita às crianças desenvolver o imenso potencial para empatia com os bichos que há dentro delas.

É neste ponto que volta à minha mente a última frase que ouvi de Andy. Aquele dia para ele não foi só um grande aprendizado. Foi um aprendizado extremamente prazeroso. Olhando para aquele pequeno bank vole que pulsava em suas mãos, Andy tinha nos olhos suplicantes do bicho a porta de entrada para um novo Mundo que ele mal sonhava que existia, um mundo fascinante e maravilhoso, tão perto e tão distante de seu tedioso cotidiano. Então, se alguém me pedir uma opinião sobre como fazer educação ambiental, aqui vai: segure um sapo.

É, um sapo, uma rã, tanto faz. A receita não é minha, na verdade vem sendo colocada em prática há anos por Germano e Elza Woehl. Germano é um físico que faz ciência avançada numa excelente instituição de pesquisa, e um apaixonado por anfíbios, como herpetólogo amador, por muitos anos. Ele não foi o único culpado: segundo o próprio Germano, tudo começou quando sua esposa Elza mudou toda a rotina doméstica para não ter que de desalojar da pia da cozinha uma perereca de três centímetros que se instalara ali. O casal se adaptou para deixar Pili – o nome do afortunado anuro – à vontade no seu novo lar. Isso, porém, foi a centelha que, além da rotina dos Woehl, viria a mudar vidas. Germano organizou uma exposição itinerante para mostrar fotos de sapos, rãs e pererecas – Pili foi a primeira modelo – em praças de cidadezinhas do interior de Santa Catarina, e para levar alunos das escolas locais para a mata para pegar os bichos na mão. Mais do que apenas ensinar fatos sobre os anfíbios, Germano os ensinava a perder os preconceitos sobre esses animais, a apreciar como eles podem ser bonitos – bom, não tanto quanto um roedor, é claro – e ter modos de vida interessantes num mundo que as crianças mal sonhavam que existia. Hoje Germano e Elza tem uma ONG em Santa Catarina, o Instituto Rã-Bugio, onde fazem conservação e expandiram seu maravilhoso trabalho de educação ambiental de modo a alcançar mais e mais mentes e corações. Essa admirável trajetória é talentosamente contada por Marcos Sá Corrêa no livro “Sinais de Vida” (Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, 2005). Fazendo as crianças terem anfíbios nas mãos, Germano e Elza ajudam, e muito, a fazer o Mundo melhor. É que naquele dia distante em Hamsterley, segurando aquele bank vole, Andy me ensinou que uma criança que descubra o prazer de segurar um bicho assim na mão e apreciá-lo nunca mais vai ver os tais “animais selvagens” da mesma forma.

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