Quem tem olho grande não entra na China*
A polêmica sobre favelas e ocupação de encostas retornou com bastante força após a derrubada do chamado Minhocão, na Rocinha (RJ). A discussão, como de hábito, limita-se à tradicional dicotomia “remoção versus não remoção”. Se o debate prosseguir com tal nível de “profundidade”, seguramente não chegaremos a lugar nenhum e a questão continuará se arrastando.
Como novidade, surgiram os chamados “eco-limites” que, na verdade, são muros a serem construídos ao redor das comunidades como forma de barrar-lhes a expansão. Muros são sempre controversos.
Comecemos com um muro que ainda mantém grande prestigio na América Latina, o notório paredón do compañero Fidel Castro, onde muito sangue rolou. Existem também os “muros de direita”, como o relatado por Sartre. O “falecido” presidente George W. Bush empenhou-se em construir um enorme muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México. O Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela) apresenta os seguintes dados sobre a entrada de imigrantes latino-americanos nos Estados Unidos:
“300 mil latino-americanos cruzam anualmente a fronteira dos EUA com o México – duas vezes mais do que há 10 anos. 75 mil pessoas passam diariamente pela fronteira de San Diego e Tijuana – a mais movimentada do mundo. 500 pessoas morreram em 2006 ao tentar cruzar a fronteira” 1.
Há, também, o célebre muro construído na fronteira de Israel e dos territórios palestinos. Um dos mais famosos de todos é o tristemente conhecido muro de Berlim, o qual ceifou muitas vidas e não foi capaz de impedir o fim da Ditadura na antiga DDR (Deutsche Demokratische Republik).
Todavia, nenhum muro jamais superou a muralha da China em termos de popularidade e longevidade. Note-se, contudo, que ela não foi capaz de impedir a invasão da Coca-Cola e do McDonald’s. Como se vê, os muros pouco adiantaram. Nada nos faz crer que os muros cariocas terão melhor sorte.
A expansão desordenada de favelas é, sem dúvida, um problema muito complexo e não será resolvido em O Eco. Contudo, penso que há uma questão legal muito importante e que não tem sido tratada por quem de direito. Refiro-me ao artigo 429, VI da Lei Orgânica do Município do Rio e Janeiro, que assim dispõe:
“Art. 429 – A política de desenvolvimento urbano respeitará os seguintes preceitos:…VI – urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes, hipótese em que serão seguidas as seguintes regras: a) laudo técnico do órgão responsável; b) participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e definição das soluções; c) assentamento em localidades próximas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento”.
Como não sou urbanista, não entrarei no mérito da questão urbanística, limitar-me-ei a palpitar na questão jurídica.
O artigo e seus incisos são claramente inconstitucionais, haja vista que violam o princípio da separação e harmonia de poderes, pois o Legislativo impôs ao Executivo a adoção de uma política pública que integra as suas competências constitucionais ordinárias. Uma leitura rápida da alínea c demonstra que, na distante hipótese de um assentamento, estaria o Executivo obrigado a fazê-lo “em localidades próximas aos locais de moradia ou do trabalho”, o que, na maior parte das vezes é impossível, quando não pouco recomendável ou economicamente inviável.
Não bastasse isto, muitas vezes as favelas estão sobrepostas a áreas que merecem proteção constitucional e, neste caso, existe uma aparente confrontação de direitos que merece ser solucionada de forma harmônica.
De fato, a Constituição Federal em seu artigo 6º reconhece o direito à moradia2. As favelas, sem dúvida, contemplam moradias e, em análise simplista, poderíamos dizer que, assim, atendem ao mandamento constitucional. Contudo, parece-me que o objetivo da Constituição é o de assegurar moradias adequadas às pessoas, até mesmo porque nossa Constituição reconhece o princípio da “dignidade da pessoa humana”. Por mais que se compartilhe da tese populista de que “favela não é problema, mas solução”, convido os adeptos da teoria que habitam o “asfalto” para trocarem os seus apartamentos com as pessoas que vivem em condições subumanas nas favelas. Depois voltamos a conversar.
A impressão que se tem é que as favelas, de certa forma, reproduzem o quadro social da “sociedade do asfalto”, assim, nos bairros da Zona Sul, as favelas são “zona sul” e possuem nível de renda maior do que as favelas das zonas norte e suburbana. Acredito que já existam alguns estudos feitos pelo Instituto Pereira Passos ou pelo IBGE que poderão confirmar ou não este palpite impressionista. Alguns elementos indicam que a possibilidade é real. O próprio Minhocão é a expressão de uma “especulação imobiliária” nas favelas. A verticalização é outro indício pungente. Um outro elemento é a expansão de “serviços” como “gatonet”, motoboys e muito outros.
Se de um lado há um evidente empreendedorismo, por outro, há subsídios explícitos para os “empreendedores” que auferem lucros sem qualquer contrapartida para o Estado, haja vista que não recolhem os tributos respectivos.
A crise de financiamento estatal e sua incapacidade de investir em políticas públicas têm gerado um campo fértil para medidas populistas. Em tal contexto, o artigo de nossa lei orgânica que é celebrado por uns como “avanço” deu frutos. A política “socioambiental” que vem sendo implementada nos últimos anos pelo governo federal afastou a incidência de áreas de preservação permanente em núcleos urbanos consolidados (Resolução Conama 369).
Desta forma, o Rio de Janeiro, mais uma vez, colocou-se na vanguarda. O muro, portanto, é como se para resolver o problema, em medida radical, retirássemos o sofá da sala. É malhar em ferro frio a afirmação de que as favelas são, em última instância, o reconhecimento da inexistência de infra-estrutura no Rio de Janeiro. A outrora decantada infra-estrutura da zona sul dá mostras evidentes de colapso: vejam-se os inacreditáveis engarrafamentos em decorrência de um pneu furado no Túnel Rebouças, ou os alagamentos de bairros inteiros em função de chuvas razoavelmente previsíveis.
A recente aquisição de imóveis por um cidadão alemão no Vidigal demonstra que, paulatinamente, o substrato social das favelas da zona sul vai se modificando e sofisticando. Se quisermos pensar em remoção, a melhor que se pode fazer é oferecer habitações decentes em locais decentes e, naturalmente, as pessoas buscarão as condições mais adequadas para viver, sobretudo se as condições de infra-estrutura forem adequadas, com transporte, escolas, hospitais etc.
Estamos em processo de revisão do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro e, portanto, no momento mais adequado para as questões acima levantadas sejam tratadas por quem de direito. É importante, em meu ponto de vista, que não se reduza o debate ao nível de proteção ambiental versus pobreza, pois não é disto que se trata. O Executivo municipal, após muitos anos de inércia, abriu um debate absolutamente fundamental para que se possa vislumbrar alguma possibilidade de solução para questões gravíssimas de nossa vida urbana.
Não temos o direito de desperdiçar mais uma oportunidade, pois outras poderão não surgir mais. Como espero ter demonstrado, a história dos muros nos ensina que eles pouco podem contra fatos sociais.
* trecho do samba-enredo Carnaval do Brasil, a oitava das sete maravilhas do mundo (1981), da carioca Beija Flor de Nilópolis
1 – http://www.cebela.org.br/CbartigosDet.asp?artigo=80
2 – Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
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