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Caminhos da Serra do Mar, travessia mãe do Brasil

Da APA de Guapimirim à sede do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, a trilha exige esforço, mas compensa o visitante com vistas extraordinárias e locais históricos

19 de agosto de 2018 · 6 anos atrás
  • Leandro Goulart

    Leandro Goulart é analista ambiental e chefe do Parque Nacional da Serra dos Órgãos.

Caminho da Serra do Mar. Foto: Ivan Monteiro.

Há 200 anos, no dia 8 de setembro de 1818, Johan Manuel Pohl, integrante da Missão Austríaca que acompanhou a Princesa Leopoldina ao Brasil, iniciou sua jornada pelo interior do país. Pohl começou o périplo pela Praia dos Mineiros, na região da atual Praça XV, no Rio de Janeiro, onde embarcou em direção ao Porto da Estrela, próximo à atual APA de Guapimirim, no fundo da Baía de Guanabara.

Na viagem, o botânico percorreu boa parte do traçado dos Caminhos da Serra do Mar, uma das primeiras e, sem sombra de dúvida, a mais emblemática de todas as trilhas de longo curso do Brasil.

O naturalista zarpou às cinco da tarde, com vento tão fraco que o barco precisou da “força muscular de cinco negros para navegar a remo”. Sua embarcação singrou sob “noite esplêndida, entre belas ilhas, em parte repletas de palmeiras”. Ao chegar na foz do Inhomirim foi necessário esperar que a maré subisse para continuar rio acima.

Dois séculos mais tarde, em 1997, quando fizemos esse traçado, em companhia do autor do Guia da Estrada Real para Caminhantes, Raphael Olivé, passamos por experiência semelhante. Na época, pegamos a barca até Paquetá, onde trocamos para uma balsa menor. Ao chegar ao Inhomirim a maré estava baixa. Encalhamos pateticamente no lodo depositado na boca do rio. Depois de quase uma hora atolados embaixo de sol quente, foi necessário entrar na água e, chafurdados na lama até as coxas, rebocar o barco por uns 200 metros até entrarmos no rio. A partir daí foi navegar novamente e admirar a natureza, que pouco mudou daquela que deixou Pohl de olhos arregalados: “suas margens são muito pantanosas, mas cheias de palmeiras gigantescas, fetos arborescentes, altos juncos, canas-da-Índia, e plantas aquáticas que, ante os olhos admirados, exibem as mais variadas formas e folhagens.

APA Guapimirim. Foto: Viviane Lund.

A região foi revisitada em 2017, em companhia da Analista Ambiental do ICMBio Juliana Fukuda. Na ocasião, navegamos pelos rios e canais da Área de Proteção Ambiental de Guapimirim e da Estação Ecológica Guanabara. Também caminhamos pelas trilhas que margeiam os corpos d´água. A beleza dos manguezais do fundo da Baía segue estonteante, sobretudo quando aliada às frequentes revoadas de pássaros dentro do estreito corredor de vegetação que delimita as margens dos rios.

Enquanto percorríamos as unidades de conservação, Juliana ia explicando os esforços feitos no sentido de criar oportunidades de turismo de base comunitária na APA. Uma das ideias é o desenvolvimento de trilhas aquáticas que podem ser feitas com canoas canadenses, caiaques ou SUPs. A iniciativa, ótima por sinal, é aplicada com muita frequência nos Estados Unidos e no Canadá e já foi objeto de capacitação do Serviço Florestal Americano para o ICMBio.

Uma vez posta em prática, permitirá a conexão das duas trilhas de longo curso pioneiras do Brasil, a Trilha Transcarioca e os Caminhos da Serra do Mar. Esta última, em seu trecho inicial, enquanto sobe a Serra dos Órgãos, também acompanha a Estrada Real, emprestando à Travessia de seis dias um delicioso tempero de História com H maiúsculo.

Porto da Estrela, onde a Estrada Real tinha seu início, ainda existe. Em 1818 era uma “localidade com sessenta casas de madeira, mal construídas, que ameaçam ruir, e uma capela sobre um outeiro de granito…Cada casa tem uma venda, sendo o lugar uma espécie de empório para mercadorias vindas das Minas Gerais e das regiões do nordeste do Reino e que aqui são embarcadas para o Rio de Janeiro. Aqui se encontra tolerável estalagem, na qual se consegue, por bom dinheiro, um quarto de dormir com uma armação de cama, sem lençóis, um prato de feijão com carne-seca e, no máximo, uma galinha com arroz”.  Hoje é um amontoado de ruínas que, se estivéssemos em outro país, seria administrado como um museu a céu aberto.

Siga rumo às montanhas. Foto: Viviane Lund.

Daí, que é uma das opções de começo dos Caminhos da Serra do Mar, até Petrópolis, é preciso atravessar o asfalto até a Raiz da Serra onde encontramos razoavelmente preservada a trilha histórica usada pelos naturalistas. Trata-se de uma estrada construída por Bernardo Proença em 1723, toda em pé-de-moleque.

A descrição que Pohl fez do trajeto ainda é atual: “Estrada calçada com pedras, cheia de curvas, de três braças de largura e uma légua de comprimento [Em 1818 uma légua terrestre portuguesa equivalia a 6,6 km], a qual em razão de suas escarpas, nunca poderá ser trafegada por carros. Com fresco vento de leste, começamos a viagem montanha acima. O caminho é bastante cansativo; entre o zunir de incontáveis colibris, o esvoaçar de variegadas borboletas e a incômoda gritaria de multidões de papagaios, passa-se através de réxias arbóreas com grandes flores lilases, entre belos pinheiros brasileiros (araucária imbricata), ágaves e milhares de outras plantas, cujas flores mudam com as estações e que subiam para os calvos picos graníticos da serra. Ali, grandioso panorama compensa o esforço da ascensão. Longe, sobre a terra, sobre a encantadora baía do Rio de Janeiro e suas ilhas, até a imensurável superfície do oceano, o olhar voa entontecido e, nessa multiplicidade de encantos, não sabe onde primeiro deve pousar e deter-se.” Subir esse trecho dos Caminhos da Serra do Mar acompanhado de um guia da região é uma experiência única, pois seus olhos calejados nos chamam atenção para detalhes escondidos dessa rica História, ao tempo em que nos aponta com destreza plantas escondidas e animais furtivos.

O primeiro dia, embora curto, é íngreme. Quando o terminamos, já junto à rua Teresa em Petrópolis, a fome bate forte. Felizmente não há falta de restaurantes ou lanchonetes na região, permitindo saciar a fome antes de buscarmos um colchão macio para passar a noite.

Foto: Leonardo Gomes.

No segundo dia, após um café da manhã bem fornido na Cidade Imperial de Petrópolis, retomamos os Caminhos da Serra do Mar caminhando na belíssima travessia Cobiçado-Ventania, que recentemente teve sua sinalização refeita pela equipe do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. A cabritada de 12 km é pesada: demora sete horas; sete horas de puro deslumbramento. Enquanto, na véspera, o passeio era em meio à mata, com direito ao som calmante dos ribeirões, hoje o percurso é na crista das montanhas que dividem Petrópolis de Magé, com vistas contínuas para ambos os lados. No trajeto, passamos pelo Pico dos Vândalos, que é ponto culminante do trecho, com 1742 m de altitude e um panorama de cair o queixo.

No dia seguinte, iniciamos a jornada seguindo as pegadas amarelas e pretas que são a marca registrada do Sistema Brasileiro de Trilhas, mas que têm uma identidade própria nos Caminhos da Serra do Mar, cuja bela pegada valoriza a inconfundível silhueta do Dedo de Deus. Progredimos em meio a pequenas propriedades rurais no bairro de Caxambu. O caminho rural está inserido na Área de Proteção Ambiental de Petrópolis, que é uma das categorias de unidades de conservação definidas pela legislação brasileira. Logo chegamos à beira da floresta onde está a placa de entrada da Trilha Uricanal.  Agora voltamos a caminhar no meio da mata. Inicialmente a trilha, que está bem sinalizada, desce e sobe até chegar a uma gruta com a placa dos Caminhos da Serra do Mar. Tire sua foto junto à placa para assegurar o carimbo no seu passaporte dos Caminhos. Daí para a frente a trilha avança suavemente até sair novamente da mata e seguir um pequeno trecho em área rural até a entrada do Parque Nacional da Serra dos Órgãos.

Pegada amarela e preta com a silhueta inconfundível do Dedo de Deus. Foto: Leonardo Gomes.

O quarto dia marca o início da Travessia Petrô x Terê, trilha mais famosa do Brasil. Segundo o maior historiador do montanhismo brasileiro, Waldecy Mathias, o percurso foi desbravado pela primeira vez, entre os dias 24 a 28 de março de 1932 por uma equipe do Centro Excursionista Brasileiro. Alguns anos depois, em 1939, foi criado o Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Seu primeiro diretor, Gil Sobral Pinto, logo se pôs a trabalhar para transformar a Travessia em uma trilha comparável aos caminhos de montanhismo então existentes na França, Suíça e Estados Unidos.  A picada íngreme e muito erodida que existia até a Pedra do Sino foi substituída por uma trilha bem planejada, respeitando as curvas de nível de forma a facilitar o acesso e a minimizar os impactos da erosão.

Também seguindo o exemplo da Europa, foram construídos quatro abrigos de montanha no decorrer da década de 1940.  Desde então a Travessia Petrô x Terê tem sido considerada a vedete das travessias brasileiras. Ela também é a segunda metade do atual traçado dos Caminhos da Serra do Mar. Mozart Catão, lenda do montanhismo brasileiro, fazia a travessia inteira de um só fôlego. Algumas pessoas percorrem sua extensão em dois dias. O mais prazeroso, contudo, é completar a travessia em três dias com pernoites nos abrigos do Açu e do Sino.

Apesar de estar sinalizada, não se trata de travessia para inexperientes. Recomenda-se vivamente a contratação de um guia. No primeiro dia, a subida até o Açu é bem íngreme e desgastante, embora haja diversos pontos de parada, onde é possível parar e recuperar o fôlego enquanto se tem uma bela vista para apreciar.  No segundo dia, a caminhada é de uma beleza ímpar, passando por campos de altitude, vegetação rupícola e trechos de rocha nua. A etapa tem alguns locais, como o conhecido por Cavalinho, que exigem bastante técnica para serem transpostos. Quem for acompanhado de um guia terá mais segurança para vencer esses obstáculos perigosos.

E tome subida na travessia. Foto: Bruno Nepomuceno.

Na parte superior da serra as neblinas são recorrentes, já tendo sido responsáveis por que muita gente se perdesse, não alcançando os abrigos com luz do dia. Nessa hora a sinalização é grande amiga, tanto do caminhante que tem nela uma ajuda para encontrar a rota certa, quanto para o meio ambiente, pois a sinalização induz o uso de uma única trilha, evitando o pisoteio indiscriminado e aleatório, cuja consequência é o impacto desnecessário do solo e da frágil vegetação do topo da montanha.  

Esse tipo de  sinalização, como bem explicado no manual de Sinalização de Trilhas do ICMBio visa a proteger os recursos naturais do Parque. Não é, entretanto, a única ação de manejo feita pela equipe de monitores de trilhas do PARNASO. Com efeito, sob a liderança do Analista Ambiental Leonardo Gomes e do técnico de trilhas Pheterson Godinho, o ICMBio está recuperando as trilhas que formam os Caminhos da Serra do Mar, retificando traçados, melhorando sua drenagem e reduzindo os impactos do pisoteio sobre as zonas úmidas. À medida em que o trabalho for progredindo, será drasticamente reduzida a quantidade de pegadas amarelas e pretas usadas como recurso de manejo, restando apenas aquelas cujo objetivo é orientar o caminhante em relação à direção a ser seguida.

O pernoite desse trecho é feito no Abrigo do Sino, onde um bom banho quente, acompanhado de uma refeição saborosa e de uma cama macia, ajudam a recuperar as forças para a descida até o portão do Parque no último dia dos Caminhos, que não precisam terminar na barragem. Uma vez chegando ali, recomenda-se emendar a série de trilhas da parte baixa do Parque, com destaque para a Mozart Catão e a Cartão Postal que foram recentemente abertas pela equipe do Parque e levam o caminhante a mirantes excepcionais.

Sinalização da trilha. Foto: Leonardo Gomes.

Se chegar ao portão do Parque com gostinho de quero mais, não desanime. Ao idealizar, em 2012, a criação dos Caminhos da Serra do Mar, o Chefe do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Leandro Goulart, já vislumbrava sua extensão até Vitória, passando pelo Parque Estadual dos Três Picos e Casimiro de Abreu. Hoje, com a implementação da Trilha Oiapoque x Chuí pelo ICMBio e parceiros, o sonho de Leandro (e da grande maioria da comunidade montanhista brasileira) começa a ganhar contornos de realidade.

 

*Leandro Goulart é analista ambiental e chefe do Parque Nacional da Serra dos Órgãos.

 

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Comentários 1

  1. Jovane Monteiro diz:

    Faço parte de um grupo de história do 5° distrito de Magé, e temos um vídeo mostrando vestígios de calçamento semelhante aos utilizado no caminho de Proença em Vila estrela, no ano de 1802, e isso ao longo do rio estrela em sua margem esquerda já em Praia de Mauá, tenho a impressão que a vertente do caminho novo não começava e nem terminava em Vila estrela, mas que seguia, do outro lado da margem do rio Inhomirim em sua desembocadura no estrela por uma localidade conhecida como Calundú.
    Além desses vídeo temos vários outros mostrando vestígios diversos envoltos nos manguezais e matas da bacia do estrela.
    Estou a disposição para levar ao local, pessoas que queiram nos ajudar a ilucidar a nossa história nessa regiao.
    Segue link do grupo:
    https://www.facebook.com/groups/2151834608256417/