Nyctimantis diadorim, cuja descrição foi publicada na edição de dezembro de 2024 do periódico Herpetologica, é a primeira representante do gênero a ocorrer nos limites do Cerrado (Brandão et al., 2024). Essa perereca pertence a um grupo conhecido como “pererecas-de-capacete”, devido a processos de hiperossificação no crânio.
Em algumas espécies de “pererecas-de-capacete”, as projeções ósseas do crânio são projetadas como espículas que podem perfurar a mucosa de predadores e inocular uma toxina extremamente poderosa (Jared et al., 2015).
Até o momento a Nyctimantis diadorim é conhecida apenas do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, onde habita matas paludosas associadas a áreas de veredas. Parece ser uma espécie pouco abundante, que aparece de forma esparsa ao longo desses ambientes.
Ainda não sabemos como a espécie vocaliza, como é seu girino, como é a reprodução. O que sabemos é que o encontro de uma espécie de perereca de grande porte no Cerrado, especialmente de um gênero ainda não conhecido para o bioma, demonstra o quanto estamos longe de um patamar minimamente satisfatório de conhecimento sobre a biodiversidade do Cerrado. O que sabemos também é que os Parque Nacionais e outras Unidades de Conservação destinadas à proteção da biodiversidade são as únicas garantias indiscutíveis de proteção desse patrimônio e da sua perpetuidade.

Diadorim é a minha neblina…*
No romance Grande Sertão: Veredas, Diadorim era o nome secreto usado pelo “jagunço” Reinaldo, um integrante de um bando de homens armados que percorria uma vasta e pouco habitada região do Brasil Central, sob a liderança do chefe Joca Ramiro. Após o julgamento de Zé Bebelo, opositor dos líderes do Sertão, Joca Ramiro foi morto em covarde emboscada planejada pelo perigoso Hermógenes e pelo ganancioso Ricardão, também outros líderes locais. A partir desse assassinato, o bando de Riobaldo (protagonista do romance) e de Diadorim parte em busca de vingança pela morte de seu líder principal e também pai de Diadorim.
O termo “jagunço” pode se aproximar, mas de forma imprecisa, da ideia de “pistoleiro contratado”. No entanto, esses homens não se ligavam a seus líderes apenas pelo dinheiro, mas principalmente por laços intricados de natureza econômica, territorial, de honra ou religiosa. Em todo caso, eram atrelados a líderes políticos poderosos que buscavam impor suas próprias leis sobre amplos territórios, em meio à ausência de instituições governamentais.
Grande parte dos conflitos narrados em Grande Sertão: Veredas refletem a luta de poder nos rincões do Brasil associados ao fim do Império e o início da República, afetando a malha social e os acordos políticos locais. Não por acaso, o personagem Zé Bebelo, “para perto futuro prometeu muita coisa republicana”. Tempo de profundas mudanças.
O termo “jagunço”, no entanto, não deve ser confundido com “cangaceiros”, que são uma forma de “bandidos sociais” (Singelmann, 1975; Hobsbawm, 1981), embora essas fronteiras fossem muitas vezes tênues e mutáveis, dependendo dos cenários sociais e políticos subjacentes. Esse cenário de violência era uma característica típica do interior do Brasil durante o século XIX e início do século XX, no chamado “ciclo do banditismo” (de Melo, 2004). Embora o ciclo do banditismo seja geralmente relacionado ao semiárido nordestino, o cenário descrito no romance Grande Sertão: Veredas corresponde às regiões de Cerrado nos estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás (Neves, 2016).

No romance, o protagonista Riobaldo, sente-se fortemente atraído por Reinaldo, um companheiro de armas, enquanto Reinaldo lhe permite usar o apelido secreto “Diadorim”, o qual, embora ambíguo, remete ao nome real desse misterioso personagem. Os sentimentos conflitantes de amor romântico e atração carnal por outro homem, vivenciados por um homem bruto, um assassino entre outros assassinos, em uma sociedade machista e primitiva, permeiam a mente de Riobaldo, que se imagina possuído pelo próprio demônio, tornando-se um homem ainda mais perigoso. Urutu-branco.
No final do romance, em um duelo de facas, Diadorim mata, mas também é morto pelo assassino de seu pai, encerrando o ciclo de vingança. Com sua morte, revela-se que Diadorim era, na verdade, uma mulher, que se vestiu como homem para permanecer no bando chefiado por seu pai, mas também para buscar vingança contra Hermógenes, o assassino de seu pai. Riobaldo, preso em seus mitos, medos e preconceitos, nunca conseguiu vivenciar o profundo amor que sentia por Diadorim.
Outra curiosidade é que, quando Riobaldo vai à igreja de Itacarambi, onde Diadorim foi batizada, descobre que ela havia nascido “Em um 11 de setembro da éra de 1800 e tantos…”. Diadorim, que foi batizada às margens do Rio São Francisco e aos pés do Peruaçu, fazia portanto aniversário no mesmo dia no qual comemoramos o Dia do Cerrado, uma curiosa coincidência entre o nascimento de lutadoras e o nascimento das lutas. “De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins ― que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor…”.
Assim, escolhemos batizar a nova espécie como Nyctimantis diadorim em homenagem ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas, ao escritor João Guimarães Rosa, à sua obra magistral e ao amor que partilhamos pelo Cerrado. Assim como a personagem, a nova Diadorim é também uma guerreira elusiva que habita o coração do Grande Sertão, lutando para sobreviver em uma paisagem repleta de belezas e ameaças, conhecida como Cerrado.
Próximos passos
Com a descrição da nova espécie, é momento de avaliarmos seu status de conservação (considerado até o momento como Dados Deficientes), buscarmos novas populações, encontrar o seu girino e gravar sua vocalização. Também pretendemos descrever o perfil bioquímico de sua secreção de pele e entender como as estruturas alongadas de seu crânio estão associadas à eventual inoculação de toxinas em suas presas. Travessia.
Referências
Brandão, R. A., De Queiroz, P. P., Ferreira, P. L., Álvares, G. F. R., Blotto, B. L., Garda, A. A., Gedraite, L., Santoro, G. R. & Faivovich, J. (2024). A new casque-headed treefrog species of Nyctimantis Boulenger (Anura, Hylidae, Lophyohylini) from the Brazilian Cerrado Backlands. Herpetologica 80: 347–357.
de Mello, F. P. 2004. Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil. A Giraffa Editora, Brazil.
Hobsbawm, E.J. 1981. Bandits. Pantheon Books, USA.
Jared, C., Mailho-Fontana, P. L., Antoniazzi, M. M., Mendes, V. A., Barbaro, K. C., Rodrigues, M. T., & Brodie, E. D. (2015). Venomous frogs use heads as weapons. Current Biology 25: 2166–2170.
Neves, G.B. 2016. Grande Sertão: Veredas – Resgate e Conservação de uma Paisagem Cultural. Departamento de Engenharia Florestal, Universidade de Brasília.
Singelmann, P. 1975. Political structure and social banditry in Northeast Brazil. Journal of Latin American Studies 7: 59–83.
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