Reportagens

Otimista de carteirinha – com Mário Mantovani

Mário Mantovani, da SOS Mata Atlântica, ataca o Ibama, o BNDES e Antônio Ermírio. Mas vê dias melhores para o país, nas mãos da geração que ajuda a formar.

Marcos Sá Corrêa · Lorenzo Aldé · Carolina Elia · Andreia Fanzeres ·
17 de março de 2006 · 18 anos atrás

Nascido no interiorzão paulista, ele chegou ao ambientalismo por vias tortas: fingindo ser escoteiro para viajar o Brasil. Quando viu, era uma liderança do escotismo e estava participando de eventos históricos, nas primeiras conquistas em defesa da natureza em São Paulo e no país. Mário Mantovani sempre esteve no lugar certo na hora certa, até se tornar o principal nome da maior ong ambiental brasileira: a Fundação SOS Mata Atlântica. Com 35 anos de militância, não abandonou o entusiasmo idealista de quem acredita que os ambientalistas “têm uma alma evoluída”. Reserva palavras duras contra o Ibama (“um poço de maldade”) e quem quer que despreze a preservação em busca de interesses financeiros. Compra briga com cachorro grande, das “picaretagens” de Antônio Ermírio de Moraes aos empréstimos do BNDES, “o maior agente degradador do Brasil”. Mas não esconde um traço que falta à maioria quando o assunto é meio ambiente: é de um otimismo incorrigível. A nova geração há de nos redimir, ele acredita. Sem traumas.

Você é da turma que botou ficha na Marina Silva?

Mantovani – Eu botei. E não tenho nenhuma frustração. Ela fez até demais para esse governo, que é ruim demais. Eu credencio a ela o fato de ainda existir alguma coisa que se salva. Se não fosse a figura da Marina, a corrupção teria comido o meio ambiente. A Dilma [Rousseff, ministra-chefe da Casa Civil] teria massacrado.

Marina tem controle sobre o Ibama?

Mantovani – O caso do Ibama foi um erro. O Marcus [Barros, presidente do Ibama] pode até ser uma figura bacana, mas foi um erro. Ele negligenciou o tamanho do monstro, achando que com boa intenção virava aquilo. O instituto é um poço de maldade. Do jeito que é hoje, com os procuradores que tem lá, não precisa de ninguém no comando. Eles são capazes de destruir o meio ambiente. Não precisa de inimigo. A corrupção é tão endêmica que um cara “bonzinho” não consegue fazer nada. Por exemplo, no Pará, a chefia do Ibama foi indicada pelo Jader Barbalho [ex-senador pelo PMDB], que é quem mais odeia o meio ambiente e o que há de melhor em corrupção. Não são os caras que estão se adaptando ao Ibama. O Ibama é que está se adaptando aos caras. Ao lado do trabalho magnífico do grupo Orsa [que produz madeira certificada] em sua área de 1 milhão de hectares, há em uma cidadezinha de 5 mil pessoas uma serraria que tira madeira de dentro da área certificada, sem um plano de manejo, sem nada. É a excrescência. Aí o cara do Ibama reclama que não tem meios de fiscalizar. Eles têm que pôr o fiscal lá, e não um 4×4 no mato, que eles não vão pegar ninguém. O Ibama tem que ir à loja que vende. O cara com a motosserra é o cara errado a pegar, o “bucha de canhão”, alguém que já não tem mais nada para fazer na vida.

Onde a Mata Atlântica está mais protegida e onde está mais desprotegida?

Mantovani – Ela está mais protegida onde existem entidades envolvidas e mais desprotegida onde ela está na mão de governo. Tudo o que está na mão de governo está no osso. Infelizmente o poder público não é um bom gestor. E o maior agente degradador do Brasil hoje é o BNDES. O governo Lula enterrou o banco. Ele se tornou o buraco negro do meio ambiente. Todas as hidrelétricas têm financiamento de lá. Barra Grande, por exemplo, recebeu dinheiro de vários grupos econômicos, como o Bradesco. Mas quem investiu primeiro foi o BNDES, os outros o seguiram. Perto dele, o BID é coisa de criança – enquanto investe 5 bilhões, o BNDES investe 30 bilhões. É o dinheiro que sustenta a insustentabilidade, e ele vem do BNDES, que era mais avançado na década de 80 do que hoje em dia.

Não falta um banco de dados sobre o compromisso ambiental das empresas?

Mantovani – Os indicadores do Bovespa de empresas socialmente responsáveis são um avanço. Queira ou não, todo mundo é bonzinho e todo mundo fala que é sustentável. A palavra sustentável está em todo lugar. Mas sustentável é daqui para lá. Antes, é obrigação. Por exemplo, o empresário ganha prêmio por ter implantado o sistema tal. Mas isso é obrigação dele, ele tinha que ter posto antes. Na verdade, ele deveria ter sido preso por não ter o sistema. Economia de energia, por exemplo, é obrigação. Se ele fizer alguma coisa a mais, talvez ele possa ganhar prêmio.

Há no Brasil uma verdadeira indústria de estudos de impacto ambiental (Eia-Rima). O que se faz com isso?

Mantovani – O Eia-Rima é um instrumento que foi domesticado pela burocracia. Essa indústria acontece pela necessidade de simplesmente se cumprir formalidades. Houve um aumento no número de profissionais, como geógrafos e biólogos, que em grande parte das vezes não têm uma formação de qualidade. Fazem a pesquisa no Google, um “copiar-colar” de baixo nível. Fui ver alguns Eia-Rimas nos EUA e eles não tinham mais que dez páginas. Mas todas as referências necessárias estavam lá. Aqui, eles fazem o trabalho de qualquer jeito, sabendo que mal vai ser lido. Ao mesmo tempo, o técnico que precisa aprovar o projeto não tem condições operativas no órgão dele para apurar a veracidade daquilo que recebeu. E aí me perguntam: quem é que vai fazer então a consultoria? Eu conheço profissionais que fazem um bom estudo. Também existem empresas de consultoria confiáveis.

O que podemos esperar da Lei da Mata Atlântica?

Mantovani – Por ser tão descomplicada, vai ser genial. Ela não dá espaço para a burocracia. E traz um grande ganho, que é não ter uma seção de crimes ambientais — ela remete à lei de crimes ambientais. Não é uma lei do “não pode”. Ela dá o uso e proteção da floresta. Essa era a lei que eu queria ver aprovada, mais do que todas as outras. Pela forma como ela foi negociada, como ela fez mobilização, como ela conquistou as pessoas. Foram 13 anos de total mobilização [a lei foi aprovada em fevereiro]. Não teve um dia na história da SOS em que a gente não fizesse pressão pelo projeto de lei. Sabe aquela história da lei que pega e da lei que não pega? A nossa lei está tão boa que vai pegar. A regulamentação é por estado e é pública.

Mas dá para confiar nas instâncias locais?

Mantovani – Por isso a SOS está investindo todas a fichas em fazer Conselhos Municipais de Meio Ambiente. Mesmo quando o prefeito coopta todo mundo. Os que foram sacaneados pelo prefeito viraram, em sua maioria, entidades ambientalistas. Se há uma denúncia, ela deveria ser levada ao conselho estadual – que poderia ser regionalizado. Os conselhos estaduais são ruins porque são órgãos licenciadores. Enquanto eram normativos e geravam políticas públicas, eram uma maravilha. Quando começaram a licenciar, acabou. Por um erro nosso, dos ambientalistas, que queríamos concentrar os licenciamentos para evitar as grandes catástrofes. E acabamos criando esse monstro absurdo. Eu fiquei dez anos no Consema [Conselho Estadual de Meio Ambiente de São Paulo] e saí durante o caso do Antônio Ermírio de Moraes [empresário, dono da Votorantim], que queria fazer uma hidrelétrica no Vale do Ribeira. Ele comprou secretário, governador e falou “Eu quero a minha usina”. Ele ganhou, o caso foi liberado pelo Consema, mas até hoje não levou. Veio com um monte de gente gritando “Queremos emprego!”, o que era uma farsa. Existem oito hidrelétricas no Vale do Ribeira, e mal há empregos para uma.

Antônio Ermírio tem antecendentes.

Mantovani – O Antônio Ermírio se aproveita de tudo, está metido em tudo quanto é picaretagem. Está cobrando da Dilma Rousseff a hidrelétrica do Vale da Ribeira. E vai levar. Só sai matéria na imprensa a favor dele, é um santo homem. Até você ver o que ele quer fazer com os quilombos e com a Mata Atlântica, para dar dois exemplos. Ele tem o lado dele “de gente”, tudo bem, mas tem problemas com o meio ambiente. É o modelo de empresário brasileiro que cresceu usando recurso ambiental e explorando ao máximo.

Empresário brasileiro ainda é sinônimo de vilão ambiental?

Mantovani – Na SOS Mata Atlântica temos uma história de não sermos os chatos que são contra o empresário. Pelo contrário, nós trabalhamos, hoje com a questão do turismo sustentável – um trabalho em Itacaré –, com empresários fantásticos como o Roberto Klabin, com 80 mil hectares de área nativa dentro da área de celulose dele. A única área verde do oeste do Paraná. Hoje o empresário do agrobusiness está cumprindo a lei, com exceção do pessoal da cana. Mas também sabemos criticar a Aracruz, por exemplo, por ser uma troglodita, uma empresa muito picareta, que usa muito do marketing ambiental.

Como você virou ambientalista?

Mantovani – Quando eu tinha entre 10 e 12 anos, já sabia o que eu ia fazer quando crescesse, sabia que era meio ambiente. Eu pegava um trem à noite, saía com o Atlas Celeste do [Ronaldo Rogério de Freitas] Mourão e deitava em cima do trem de carga para olhar as estrelas.

Onde morava?

Mantovani – Em Assis, no interior do estado de São Paulo. Perto da divisa com Mato Grosso e Paraná. Rota da cocaína. Meu pai era muito louco, ele tinha uma orquestra. Era a Orquestra Mantovani. Muitos músicos importantes tocaram com ele, inclusive o Severino Araújo. Na década de 50, meu pai teve uma overdose. E minha mãe é uma menina da roça criada por freiras. Ela conheceu meu pai quando ele estava indo para o hospital se curar da overdose. Aí surgiram Mario Mantovani e mais cinco irmãos. Eu viajava muito de carona, desde cedo. Com roupa de escoteiro sem ser escoteiro. Era como um passe livre. E assim eu conheci o país inteiro, com 14 anos. Depois eu acabei de fato me envolvendo com o escotismo e, em 1973, fiz um curso de educação ambiental. Nessa época, não existia nada de movimento ambientalista no mundo. Esse curso foi um dos primeiros, já que os escoteiros tinham grande proximidade com a natureza.

Sempre em São Paulo?

Mantovani – Tive uma passagem pelo Rio, que foi desastrosa. Fui fazer Engenharia Florestal mas acabei largando porque o curso era horrível. Com 18 anos fui para São Paulo. Teve aquela história da invasão da PUC. E resolvi que era lá que eu ia ficar. Fui fazer Geografia, e trabalhando na União dos Escoteiros. Eu ia para a faculdade uniformizado, mas ninguém ligava, era tudo tão louco naquela época… Eu era o pior aluno da Geografia, viajava muito, rodei o Brasil inteiro, de ponta a ponta. Terminei a faculdade em 1980 e trabalhei como administrador na União dos Escoteiros até 1982. Aí fui trabalhar na Secretaria de Meio Ambiente do estado, com o Montoro [então governador]. Nessa época estava surgindo o primeiro Consema, assim como as discussões a respeito do Conama [Conselho Nacional de Meio Ambiente ]. E eu saí para criar Conselhos Municipais de Meio Ambiente nos municípios do interior. Em dois anos, acho que eu tinha visitado todos os 600 municípios do estado.

Então já existia Secretaria de Meio Ambiente?

Mantovani – A Secretaria era um aglomerado de coisas perdidas: o Instituto Florestal, o Instituto de Pesca… Então havia, na mesma mesa, o geógrafo do IF, que ganhava 800, e o geógrafo da Secretaria, que ganhava 2 mil e tanto. O motorista do cara do IF ganhava mais do que ele. Aquilo não ia funcionar nunca. Ninguém queria trabalhar. Em 1986, com a saída do Montoro, eu crio a Associação Nacional de Municípios do Meio Ambiente [Anama], em Curitiba, junto com uma turma maluca — Pastor Elias, Hiram Firmino, Maurício Andreas, a Heloísa de Vitória [Maria Heloísa Dias]. Nesse mesmo ano, eu participei de um ato de desobediência civil explícito, para a criação do Consórcio Municipal de Bacias Hidrográficas. Nós criamos a base para a legislação de água no Brasil. Era um desastre a gestão de águas. Em 1991, São Paulo já tem sua Lei de Águas. E ainda em 1986, nós criamos as Associações de Reposição Florestal, entre outras insanidades. Três coisas que são de gestão descentralizada total.

Quando isso ainda não era moda.

Mantovani – Mas, por outro lado, criamos um monstro chamado Sisnama [Sistema Nacional do Meio Ambiente, em 1981], que só tinha cabeça. Havia o Executivo, que era o Ministério do Meio Ambiente, com um braço chamado Ibama, que era anacrônico. Passa para os estados, que têm as secretarias de estado, os órgãos executivos. O que não deixou esse sistema ruir foram os Conselhos Estaduais de Meio Ambiente e o Conama, que de certa forma incluíam a sociedade. Mas foi criado um bicho sem pé. E até hoje não tem pé. Esse monstro só cria regras que são difíceis de implementar. Você faz tudo lá em cima e nada desce.

Como surgiu a SOS Mata Atlântica?

Mantovani – Eu fui perseguido muito seriamente pelo [Orestes] Quércia [então governador de São Paulo] por conta do caso Juréia. Nós invadimos o Palácio para forçar a transformação da Juréia em parque. Havia uma pressão muito grande nesse sentido, de várias partes do país. Teve aquela campanha maravilhosa “Transforme um parque de papel em um parque de verdade”, com aqueles bichinhos de dobradura. Fui demitido truculentamente. Não pude nem entrar na minha sala para pegar minhas coisas. O grupo da Juréia, a mobilização da secretaria e o Grupo da Terra formaram a base para a SOS. Eu não estava nessa formação. Estava tocando conselhos nos municípios, fazendo completamente o oposto, o movimento tava indo aqui e eu estava ali. E aí, naquelas voltas que a vida dá, surge um jacaré nadando no Tietê e foi feita aquela campanha da rádio Eldorado, que pegou fogo. Todo mundo falando do Tietê, em 1991. Eu estava lutando para fazer a Lei das Águas, trabalhando com os consórcios. Quando fui demitido em 1986, com aquela perseguição toda, fui exilado no Espírito Santo. O PT estava fluindo lá, a Heloísa estava de secretária de Meio Ambiente e me levou para trabalhar lá. E o Capobianco [João Paulo Capobianco, atual secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA] pergunta se eu não quero trabalhar na SOS Mata Atlântica. Tem uma história engraçada. Na época ele chegou para a diretoria da ong e falou que tinha dois bons candidatos: um que precisaria ser empurrado e outro que seria difícil de segurar. Eles mandaram chamar o que daria trabalho. Era eu.

Que ações ela fazia, na época?

Mantovani – A SOS começa com vários projetinhos na Ilha do Cardoso, mobilizando aquela região e arranjando encrenca com todo mundo, proibindo a ponte de Ilha Comprida, fazendo a Juréia. E começou a ter uma ação muito forte no país inteiro. Fez um trabalho na Barragem do Valo Grande, o primeiro desastre ambiental do Brasil, aquele mapa famoso [a bandeira do Brasil com o verde pela metade, símbolo da ong] foi criado pela DPZ e saiu no Jornal da Tarde. Isso deu muita visibilidade à SOS, a campanha ganhou uma escala nacional. Essa notoriedade fez com que aparecessem muitos sócios, que formam a base através da qual a SOS vive hoje. E tem a verba de outro projetos, mas é muito pouco.

Como é a estrutura? Ainda é a mesma casa?

Mantovani – Ainda, e não vai ser mais do que isso. Nos últimos anos, ela vem gastando sempre a mesma coisa. Pelo menos na minha época. Tenho 15 anos de SOS, e ela gasta a mesma coisa. Tem menos gente, mais projetos e mais recursos. Quando a SOS faz o Capitalização [título em parceria com o Bradesco], o que acontece? Dez árvores para cada título vendido. A gente arrecadou muito esse ano, vendeu quase 800 títulos, o que representa R$ 100 mil. Nós vamos ter que plantar 10 milhões de árvores.

Tem onde plantar?

Mantovani – Tem onde, sim. Olha como dá volta o mundo: nosso maior viveiro hoje é a primeira Associação de Reposição Florestal, que eu criei em 1986, a Flora Tietê. Uma região em que nunca se plantou uma árvore, a região de Araçatuba, hoje é onde mais se planta: são 4 milhões de árvores. Nativas, isso que é importante. Plantamos com muita diversidade, são 40 espécies. Duas mil árvores por hectare. É um mundo, que a gente criou. Hoje, o nosso projeto ClickÁrvore dá certo em São Paulo porque temos as bases das Associações de Reposição Florestal, que deram motivação, criaram os pequenos fazendeiros florestais. Tem 6 mil pessoas plantando todo dia. No total, devem ser em torno de 6 milhões de árvores. E olha que legal: o ClickÁrvore hoje já mostra para qual propriedade a árvore foi, quando você clica. Esse é o melhor projeto. Quem o bolou foi o Rodrigo [Agostinho], que começou com a gente com 14 anos, monitorando o Tietê. Ele hoje está no Conama, é o vereador mais votado de Bauru, jornalista, advogado e tem uma ong chamada Vidágua.

Vocês acompanham outros jovens formados pelo SOS?

Mantovani – Ah, sim. Uma que surgiu foi a Ísis, que começou com a gente e com 8 anos denunciou o Fleury [então governador de São Paulo] no caso do Tietê. Hoje ela é integrante do projeto “Cala-boca já morreu”. Agora, os 300 grupos de criança que a gente tem monitorando água, e que cresceram um pouquinho, já são um terço do que tem cadastrado no Comitê de Bacias Hidrográficas do Tietê. Todos os nossos projetos estão na linha de mobilização. E essa base que a gente traz é muito legal. A vocação da SOS é crescer na base dos sócios, com ações descentralizadas. Lógico que a gente tem isso aqui [mostra o cartão de crédito SOS/Bradesco], que é a salvação. É garantido, porque você foge do capeta mais não foge da fatura. Um percentual da anuidade é nosso.

Como funciona?

Mantovani – É um cartão de afinidade. Todo sócio tem um, são 80 mil. Só há um probleminha: a gente não tem o cadastro, quem faz isso é o banco. Se um dia a pessoa sair do cartão, porque ficou inadimplente ou qualquer coisa, acabamos perdendo o sócio. Mesmo assim eu acredito que somos a entidade que mais mexe com sócios no Brasil, com um índice de rejeição muito pequeno. Só uma bronca ou outra, do tipo “Ah, eles pegaram meu dinheiro e não fizeram o que eu queria, que era proteger a praia tal”.

De onde são os sócios? A maioria de São Paulo?

Mantovani – Rio de Janeiro em primeiro lugar, são 20 mil. Mais do que São Paulo.

A impressão que se tem é que em São Paulo há uma capacidade maior de mobilização.

Mantovani – É verdade. O caso do Rio vai ter que ser estudado do ponto de vista sociológico. As entidades ambientalistas se matam umas às outras. O movimento sempre foi muito partidarizado — PT, PV — e por isso muito aparelhado. Em São Paulo ele não é tão partidarizado, é mais ligado a movimentos sociais.

Foi a SOS que divulgou a idéia da Mata Atlântica como bioma?

Mantovani – O primeiro mapa da SOS em escala de 1 para 1 milhão foi feito em 1998, e mostrava que a Mata Atlântica era um bioma. Até aí, não existia um mapa do bioma. O mapa do IBGE mostrava a floresta ombrófila densa, com a floresta atlântica e as outras meio desconectadas. Aí fizemos aqueles vários workshops e se chegou à conclusão de que é o conjunto que forma a Mata Atlântica. E a SOS passa a adotar esse conceito. Todos os outros workshops vão trazer essa informação e nós começamos a monitorar com satélite. O Capobianco entregou o primeiro mapa de satélite, aqui no Rio, para o Brizola, com os primeiros dados.

E o que fez o Brizola?

Mantovani – Quando o Capobianco disse ao governador do Rio de Janeiro que o estado era o campeão do desmatamento, o Brizola fala aquela história: “Você prefere que eu proteja as criancinhas ou a Mata Atlântica?”.

Quais foram as maiores besteiras que você já ouviu sobre a Mata Atlântica?

Mantovani – As criancinhas do Brizola podem entrar, mas para não ficar só nele, tem Santa Catarina, aquele mapeamento que contou todas as áreas de lá, feito pela Fatma [fundação estadual de meio ambiente] , que é o órgão mais absurdo, mais devasso que existe. Nós tivemos muito problema com o Ceará, com funcionários do Ibama dizendo que lá não era Mata Atlântica, que a gente queria enganar todo mundo. Na Bahia, tivemos problemas também, diziam que não era um estado que desmatava muito. A besteira número 1 é: “O meio ambiente é que impede a gente”. Isso é de 1965, nem tinha ambientalista ainda. É a que mais pega, ainda hoje. O cara fala “Eu quis fazer o meu empreendimento, não deixaram por causa do meio ambiente”. Você faz praticamente o que quiser hoje no Brasil, não tem fiscalização. Se alguém fala isso é porque o projeto dele é uma barbárie, uma besteira grossa. É como se o meio ambiente começasse a partir de agora. Como se não tivesse um Código Florestal há décadas, que deriva de outro código, dos anos 30!

Se nem os Parques Nacionais cumprem seu papel…

Mantovani – Talvez eles sejam hoje outra das grandes barbáries. Não tem um parque hoje que esteja funcionando. Mas a gente tenta trabalhar com as pessoas de fora do parque também, porque ninguém assume responsabilidade. Sempre o responsável é o outro, deixa-se tudo para o governo. É uma discussão temos feito muito seriamente, com o pessoal da reserva legal, das RPPNs, para falar que “a Mata Atlântica é aqui”. A água que você bebe, a fertilidade do solo, a questão do clima… tudo está relacionado com a mata. Precisamos trazer essa questão para o dia-a-dia, para as pessoas perceberem o porquê de se proteger.

E com a Mata Atlântica, vai-se parte da identidade nacional.

Mantovani – Essa destruição é cultural também. Até dez anos atrás o Incra considerava área verde como terra improdutiva. Vai falar para o proprietário que ele tem que proteger! Ele não quer que o Incra tire as terras dele por serem improdutivas. É uma cultura da destruição. Falava-se “Tem que desbravar essa área”. Meu pai falava isso: “Seu avô está lá desbravando”. Esse jogo vai virar, porque o pessoal tinha uma informação meio devagar. Hoje a molecada tem muita informação. Essa futura geração, que está ligada a tudo pela internet, se a gente conseguir trazer eles para o nosso lado agora, a gente vira esse jogo. Eu sou muito otimista. Eu não vejo a Mata Atlântica como tão no fim. Eu acho que nós conseguimos uma coisa: estancar a hemorragia. O doente ainda está na UTI e, ao invés de estar colocando sangue, ainda continua drenando.

Como fazer as pessoas entenderem isso?

Mantovani – É a história do campo de futebol, que eu não paro de repetir. É muito mais fácil de entender do que falar em hectares. Tanto que no começo o Atlas era nacional, e não chegava nas pessoas. Mesmo quando fizemos por estado, ainda foi difícil. Ele só foi incorporado de fato quando passamos a dividi-lo por município. Se você entrar no site e digitar o nome do seu município, ele diz quanto de Mata Atlântica tinha e quanto tem hoje. As pessoas se acham, vendo que o município delas tinha 100% de mata e agora só tem 3%. Aí você tem indignação, cresce o número de sócios, a atividade. O novo Atlas agora também sai com as bacias hidrográficas. É inédito isso. Traz a cobertura original e a que tem hoje, o mapa da prioridade de conservação, as unidades de conservação e agora o de bacias hidrográficas. E vão vir mais novidades por aí, no Atlas, para ele se tornar mais interativo, com índices de potabilidade e mapas de percepção.

O que são mapas de percepção?

Mantovani – O trabalho mais importante que eu fiz no governo Montoro se chamava “Caracterização Ambiental sobre Percepção”. Nós mandamos questionários a pessoas de 600 municípios, perguntando o que elas entendiam de assuntos ambientais, por exemplo: “O rio está ficando mais raso?”. Ou se ainda tem bastante mato na área em que elas moram. E as últimas perguntas eram do tipo: “O que você sabe de meio ambiente?”, “Você conhece as leis do meio ambiente?”. Nessas, só se marcava “não”. E quando a gente comparava os dados com o que elas tinham falado, era um mapa perfeito de poluição do ar, poluição da água, onde havia caça, problemas com arborização urbana. Como é que essa população que responde que não sabe nada sobre o assunto traz dados de tanta precisão? Isso serviu para mudar um pouco a nossa percepção. Quando trabalhamos hoje com bacias hidrográficas, um dos trabalhos que fazemos para preparar essa turma para ser um dia de um Comitê de Bacia é trabalhar a percepção ambiental: como ele se vê na bacia. Ninguém sabe o que é bacia hidrográfica no Brasil hoje. É a coisa mais fora da realidade das pessoas.

Qual é o perfil do ambientalista hoje?

Mantovani – Eu tenho feito algo que gosto muito. Estou redescobrindo o ambientalista. Ficar na casa de dele, quando viajo. Eu quero ver quem é o cara, qual é o carro dele, o cachorro, como ele se relaciona com a mulher, com os filhos. Não há um perfil, ninguém é igual. O único elo é a motivação deles, que é muito grande, a vontade de ajudar. O cara não come, não leva dinheiro para casa, mas faz o que tem que fazer. São pessoas que cuidam de ar, água, de bichinhos. Elas se descolaram do mundo, que é egoísta. E têm uma pureza… em geral se ferram quando são candidatos, porque trabalham com a emoção de quem realmente quer fazer alguma coisa. Normalmente são incompreendidos. O movimento ambientalista consegue se superar e se manter mesmo hoje, porque as pessoas escolheram proteger aquilo que é intangível. Quando você decide proteger a água, por exemplo, você é uma alma muito mais evoluída.

E todo mundo recorre a ele.

Mantovani – Pois é. Estou na praia, minha família nem vai mais comigo. Sempre aparece alguém falando: “Mantovani, que bom te ver… Vem aqui ver esse lixão!”.

Está havendo uma renovação dos ambientalistas?

Mantovani – Eu não trabalho mais com velho. Só com a nova geração. Em 99% das vezes é com a molecada, com educação ambiental aplicada. Conheci uma menina de 13 anos, por exemplo, que monitora a qualidade de água e constatou que tinha fosfato demais. Ela chegou à conclusão de que o problema da água era adubo, por causa do cinturão verde da cidade. Essa menina levantou todos os proprietários rurais da região e fez uma reunião para discutir o assunto. Ela faz parte de um dos 300 grupos de monitoramento de água formados por crianças de escolas públicas, privadas, escolas de samba e favelas. O trabalho já existe há três anos. Outra história de que eu gosto muito é a de um catador de lixo e uma empregada doméstica que fizeram a melhor ong da Zona Leste de São Paulo. Também monitorando a qualidade da água. Hoje estão no Comitê de Bacias, arrebentando. Eles fizeram uma casa reciclada, de pet. Estou buscando gente nova, que não tem os traumas que a gente tinha.

Que traumas?

Mantovani – Eu sou muito traumatizado. Entrava numa reunião sabendo quem era sacana, quem estava ligado a tal empresa ou a outra, fazendo todas as contas. Essa molecada não julga nada, entra no coração, na bronca que vale à pena. Eu acredito mais hoje do que quando comecei. Na época, eram pessoas que tinham batido a cabeça, frustradas. Lógico que eu reconheço a importância deles, de quem foi perseguido, detonado, que não teve reconhecimento nem de quem estava em volta. Mas hoje a moçada está vindo muito mais aberta, com muito mais tesão. A gente fica pensando que hoje não tem mais movimento estudantil, que não acontece mais nada. Só não acontece aquilo que era nossa referência. Eu só conseguia entender uma escola se tivesse um Centro Acadêmico. Não precisa mais ter um Centro Acadêmico. Basta um menino que tenha cabeça, tenha inteligência. Essa é uma das características mais interessantes da SOS. Ela se tornou uma verdadeira incubadora de profissionais na área de meio ambiente. Já formamos muita gente.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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