O primeiro grão de soja do Brasil brotou na terra da Xuxa, Santa Rosa, nos grotões do Rio Grande do Sul, em 1924. A semente veio dos Estados Unidos, trazida pelo pastor alemão Albert Ernest Henry Lehenbauer, da Igreja Evangélica Luterana.
Se fosse hoje, não faltariam acusações a “religiosos estrangeiros trazendo culturas exóticas para dominar a agricultura nacional”. Na época, ninguém poderia sequer imaginar o peso futuro da “santa praga”, no Brasil e nos vizinhos Paraguai, Argentina, Uruguai e Bolívia. Para o bem: trouxe riqueza, dólar, bufunfa. Para o mal: envenenou rios, devastou florestas, dizimou a fauna nativa.
A intenção do pastor Lehenbauer era 100% do bem: ele queria misturar soja na ração dos porcos para engordar a mesa dos então subnutridos colonos europeus, como conta Teresa Christensen, autora de um livro sobre o tema. O projeto do pastor deu supercerto: várias décadas depois, aquele canto do Rio Grande produz hordas de gente europeizada e saudável como a Rainha dos Baixinhos. Vitaminadas a soja.
O que deu errado: os campos sulinos tinham onças, antas, veados, emas, macacos, florestas de araucária, banhados. Quase tudo já era, engolido pela boa praga. Num flash back: em 1940, o Rio Grande plantava 640 hectares, mancha que os satélites não veriam do céu. Hoje, são 3,5 milhões de hectares.
É tanta soja que abateu também a figura tradicional do gaúcho – cavalgando pelas coxilhas qualquer um tem a impressão de que a soja tomou metade dos pampas, quando na verdade sua lavoura ocupa apenas 11% das terras agricultáveis.
De Santa Rosa ela avançou pelo Noroeste do Rio Grande botando abaixo florestas, das margens do Rio Pelotas até o das Antas. Depois comeu as terras do gado, pros lados de Santa Maria, estendendo seu tapete verde até São Borja, na fronteira com a Argentina. Drenou banhados no Sul, pros lados de Camaquã, e invade Pelotas, ameaçando o santuário do Banhado do Taim.
A soja nasceu na China. Teve seu boom norte-americano entre as décadas de 20 e 50. Começou a crescer por aqui nos anos 60, chegando à maioridade atrasadinha, na década de 70. Virou o século de vento em popa. Hoje é o rabo que balança o cachorro da economia nacional – nos anos em que vai mal, o país todo sente o drama.
No berço gaúcho, 2005 será (já vinha sendo e vai terminar) um ano horribillis por causa da seca. A área plantada cresce desde 2001, quando 3 milhões de hectares renderam 7 milhões de toneladas. Este ano, que antes da seca trazia a expectativa de 8 milhões de toneladas, vai render só 2 milhões.
Os governos calculam sempre o tamanho da perda da safra: basta multiplicar os 14 reais da saca de 60 quilos pelos milhões de toneladas perdidas para a largura do rombo, em dólar.
Mas pouca gente contabiliza o passivo ambiental. Por décadas, todas as espécies que enfrentaram o avanço das frentes da soja foram morrendo em silêncio. Perdiz, pomba, passarinho, nada resiste aos agrotóxicos da lavoura extensiva. E cada um dos bilhões de grãos colhidos pode ter seu equivalente em cada uma das bilhões de folhas das árvores ceifadas.
Quem está fazendo esta conta negativa é o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro, conselheiro da ong Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural). Usando sua caneta como uma espada, ele está escrevendo um libelo antisoja: “A Máfia dos Alimentos no Brasil”. A planta é o bandido involuntário, porque os chefões seriam 11 multinacionais que controlam sua produção mundial, entre elas Phillip Morris, Cargill, Bunge e Nestlé.
“O país deveria ter contido a expansão da soja há 30 anos. Mas como ela cresceu durante a ditadura, a sociedade não pôde fazer nada”, diz Pinheiro. Ele tem um alerta: “Agora ela está invadindo a Amazônia. Ninguém tenta deter seu avanço. Parece que não se aprendeu nada com o passado”.
Há todo tipo de estudo condenando a monocultura da soja, financiado por e para governos. Mas ninguém dá bola. A Emater gaúcha diz que ela é prejudicial ao meio ambiente e, paradoxalmente, à própria produção, pois as pragas que gera acabarão por consumi-la. Também, ninguém dá bola.
O Greenpeace ataca o modelito: “Veja-se a conversão da paisagem agrícola do Rio Grande do Sul. Se andarmos por Santa Maria, Cruz Alta e Passo Fundo, a paisagem será sempre a mesma: soja. Numa situação normal de plantio, o ecossistema agrícola consegue chegar a um equilíbrio para reduzir os danos à lavoura. Porém, na monocultura, os insetos não têm o que comer, a não ser o produto plantado – por mais que ele ‘odeie’ soja, vai consumi-la. Além disso, há nesse tipo de cultura um desequilíbrio do solo, deixando a planta vulnerável a fungos e bactérias”.
Se falar em monocultura da soja é o diabo, surge agora a figura da transgênica, o demônio reinventado. Crítico dos críticos, o agrônomo Pinheiro diz que a multinacional Monsanto, mãe da transgenia, apesar de toda celeuma que seu nome sempre provoca, é “uma pequena empresa de tecnologia de alimentos” se comparada às grandes, e por isso nem de longe deve ser responsabilizada por nenhum dos males da soja.
A ambientalista Lara Lutz, Fundação Gaia também é crítica dos transgênicos. Sustenta que sua introdução “concentra capital na mão de empresas em detrimento da produção diversificada, autônoma e localmente segura da agricultura familiar campesina”. Ela pergunta: “Será que amanhã vamos nos alimentar só de soja”? Lara questiona com a autoridade de ser filha do grande ambientalista José Lutzenberger, já falecido, primeiro a combater o avanço da soja em todas as suas formas.
Ela vê na monocultura “um ataque à integridade biológica das nossas paisagens, com impactos que vão desde os estéticos até a alteração da fauna e flora, neste caso pela polinização cruzada de espécies nativas e cultivadas”. Lara Lutz vê ainda prejuízos na qualidade ambiental, na segurança nutricional e na segurança social – como a soja é toda mecanizada, as cidades incham com gente expulsa do campo.
Diante de tudo isso, pergunte a você mesmo se consegue sentar à mesa para o almoço e não comer algo que contenha soja em sua composição. Virtualmente impossível.
Como a soja veio para ficar, é muito difícil que as próximas gerações consigam escapar dos efeitos dela. De imediato: o Brasil vai colher 51 milhões de toneladas este ano, sem os quais a economia sofreria de anemia aguda.
PS.: Dizem que Marcos Valério planejava plantar soja nas fazendas que a CPI descobriu, mas isto já é querer culpar o cara por todas as desgraças nacionais.
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