Reportagens

Nadando no abandono

Golfinhos voltam às ilhas Cagarras, bem em frente às praias nobres do Rio. Recomeçam as pesquisas sobre eles, mas o mar em seu entorno está abandonado.

Lorenzo Aldé ·
12 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

A partir de julho, toda sexta-feira é dia de lançar-se ao mar. Esta é a única certeza do pessoal do Instituto Ecomama, que estuda os golfinhos no arquipélago das Cagarras, bem em frente às praias da Zona Sul do Rio de Janeiro.

O resto é interrogação. Vão conseguir avistar algum animal? Não se sabe. Os grupos de golfinhos que freqüentaram as ilhas em 2004 vão voltar? Não se sabe. De onde eles vêm? Não se sabe. Pra onde vão? Também não.

A quantidade de dúvidas, longe de ser preocupante, é o que mais estimula os pesquisadores. Comum nos mares de todo o mundo, o golfinho nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus) é o mais popular entre seus pares. Tanto que ficou conhecido como “flíper”, por causa do seriado de TV Flipper, da década de 60, no qual contracenava com um garoto. Sociável e “simpático” aos olhos humanos, ele praticamente não foi estudado no Brasil até hoje. Em outros países, há quem acompanhe os mesmos bichos há décadas. E nem por isso deixa de colecionar dúvidas sobre a complexa estrutura social desses golfinhos, seu comportamento, sua comunicação e até mesmo sobre o tamanho de suas populações.

Popular e misterioso, um prato cheio para ciência. No entanto, nem mesmo ao dar bandeira nas barbas de cartões postais cariocas o flíper conseguiu motivar pesquisas por aqui. Até o ano passado. Foi quando entraram em cena os professores e alunos de Biologia Marinha das Faculdades Integradas Maria Thereza (Famath), de Niterói, unidos no Instituto de Estudos da Ecologia de Mamíferos Marinhos (Ecomama), com alguns apoios providenciais, como barcos e equipamentos da operadora de mergulho Tempo de Fundo. De agosto à última semana de dezembro, filmaram semanalmente os golfinhos, usaram as imagens para detectar marcas nas nadadeiras que ajudassem a identificá-los, e assim inauguraram as primeiras linhas de pesquisa sobre os flípers das Cagarras.

Em 2005 chegam, portanto, à segunda temporada dos estudos. Desde julho os pesquisadores ouvem relatos de que grupos de golfinhos voltaram a rondar o arquipélago. Mas nas expedições deste ano ainda não tinham avistado nenhum animal.

A saída do dia 5 de agosto estava cheia dessa expectativa de reencontrar os golfinhos de 2004. No barco, sete pesquisadores, prontos para observar, se os animais aparecessem, desde o comportamento individual até a “geometria de grupo”. E mais três ictiólogos da Universidade Federal Fluminense (UFF), que estão realizando o primeiro levantamento dos peixes das Cagarras. É… também no quesito biodiversidade, as ilhas são ilustres desconhecidas. No primeiro mergulho do trio, em fins de julho, foram identificadas 50 espécies de peixes apenas junto a uma das cinco ilhas do arquipélago.

A expedição marcou também o início de um novo projeto do Ecomama: a campanha educativa pela preservação desses cetáceos. Público-alvo? Os que convivem mais diretamente com eles. Pescadores, turistas e mergulhadores, sobretudo. Mas também donos de quiosques, que podem divulgar aos turistas e passantes as regras básicas sobre como tratar e não tratar golfinhos. Em resumo, o segredo é um só: deixe-os em paz. Nada de mergulhar junto, querer “pegar carona” no dorso (expectativa errônea gerada pelo fantasioso Flipper do seriado), dar restos de peixes ou outras comidas, fazer barulho ou passar com o motor próximo a eles.

Num local já turístico e onde os golfinhos estão cada vez mais freqüentes nos últimos anos, a eficácia de tais medidas pode fazer a diferença até para a continuidade das outras linhas de pesquisa. O ecossistema já é bastante frágil por causa da poluição (que inclui o esgoto de um emissário submarino) e da pesca predatória de todo tipo (arrasto, raspagem dos costões, compressores). Se o turismo ainda resolve “explorar” os bichos sem os devidos cuidados, eles provavelmente acabam indo procurar outros mares. Adeus, golfinhos das Cagarras. Adeus, pesquisa.

Esta educação ambiental marítima é o tema da monografia de fim de curso de Michele Freire. Escoltada por dois companheiros do Ecomama, ela abordou de bote as poucas embarcações que circulavam pelas Cagarras naquela sexta-feira (na foto, a equipe está de branco) e começou a testar o discurso e os materiais criados para a campanha.

Para agir diplomaticamente na tentativa de sensibilizar pescadores, é preciso fechar os olhos para outros problemas ambientais. Três dos barcos visitados praticavam tranqüilamente pesca de arrasto, o que é proibido próximo à costa. Receberam muito bem as moças do projeto, colaram no barco o adesivo com as regras de comportamento, mas fica a dúvida se vão de fato alterar seus costumes em respeito aos golfinhos.

Os outros dois barcos visitados foram um que levava turistas suecos e uma pequena lancha com dois mergulhadores. Os gringos e seus acompanhantes não deram muita bola, e os mergulhadores se disseram simpatizantes da causa, comentando inclusive sobre o empobrecimento da fauna das Cagarras nos últimos anos.

Michele tem muito trabalho pela frente. Em 2006, vai levar sua aula de golfinhos para as escolas. Um público certamente mais promissor.

Enquanto isso, estreava de forma espetacular o primeiro golfinho avistado pelo Ecomama em 2005: com um salto de mais de dois metros de altura. De impressionar repórter neófito, mas também pesquisador experiente. “Nunca vi um salto desses”, exclamou Carlos Augusto Gonçalves, o Cagu, da UFF. Foi bem em frente à ilha Comprida, mas a distância não permitiu identificar o animal, que logo sumiu.

Cerca de uma hora depois, com o barco ancorado na ilha Redonda, a equipe de ictiólogos mergulhou para encontrar outras 20 espécies de peixes, enquanto os tripulantes do barco admiravam a profusão de fragatas no céu (foto). Eram centenas, talvez milhares, pousadas na ilha e voando. À primeira vista, a vegetação insular parece estar estranhamente salpicada de maçãs. São os machos da espécie, que inflam enormes bolas vermelhas no pescoço para se exibir às fêmeas.

E eis que aparece outro golfinho. Este não tem pressa. Sobe e desce seguindo a corda da âncora, sumindo na água turva e depois reaparecendo na proa no barco. Lá no fundo, dá giros em volta dos três ictiólogos da UFF. Na superfície, arremete em minha direção, e só desvia quando está a poucos centímetros deste repórter sortudo. Dá chance a todos os pesquisadores de observá-lo longamente enquanto brinca. Raro isso, um flíper sozinho. Vivem sempre em grupo. Mais uma interrogação para os cientistas, e a suspeita de que aquele outro golfinho do dia, o do salto espetacular, seja este mesmo brincalhão, que seguiu o barco.

Passa quase 40 minutos em nossa presença, tempo suficiente para que o filmem e comparem com o catálogo de imagens dos animais registrados no ano passado. Rapidamente surge um consenso: aquelas marcas na nadadeira dorsal são iguais à do golfinho identificado apenas como 005 (foto).

Ele foi visto pela primeira vez em 7 de setembro de 2004, e reavistado outras seis vezes depois. Agora voltou. Não poderia ficar sem nome, enquanto vários outros, dos 17 identificados no ano passado, já ganharam apelidos. Em homenagem a seu comportamento, é chamado de Amistoso. Sugestão do lendário mergulhador Arduino Colasanti, sócio da operadora Tempo de Fundo e parceiro do Ecomama na empreitada.

Tão nobre batismo faz Amistoso dar-se por satisfeito, e ele vai embora. Deixa boiando o objeto que usou o tempo todo em suas brincadeiras, ora carregado no dorso, ora no focinho, ora no rabo. Era um saco plástico branco.

No caminho de volta para Niterói, já ao entardecer, duas cenas abalam um pouco o ânimo da equipe por um dia tão produtivo.

Em frente às Cagarras, ou seja, de cara para o mar de Ipanema, não menos do que treze barcos se alinham para fazer o que chamam de cerco à sardinha (foto). Colocadas lado a lado, as redes vão levar, por baixo, 20 toneladas do peixe que serve de alimento aos golfinhos. E isso em plena época de defeso, período em que a pesca é proibida para as sardinhas se reproduzirem.

Pouco depois, uma lancha passa ao lado do Amarradão, barco que leva a equipe do Ecomama. Quem a viu garante: levava duas tartarugas de grande porte. Como era rápida, sumiu de vista.

“Vemos coisas assim em praticamente todas as saídas”, diz Liliane Lodi, coordenadora do Instituto. E o que fazem quando flagram crimes desse tipo? A quem denunciam? “Não temos com quem reclamar. Não denunciamos mais. Nenhuma providência é tomada, e a desculpa é sempre a mesma: ‘não temos barcos, nem pessoal, nem equipamento…’”.

Os mares do Rio não existem para o Ibama. Não há grupamento marítimo, não há fiscalização ocasional, não há nada. Há exatamente um ano, O Eco divulgou o anúncio do órgão sobre a primeira reunião para criar um grupo especializado de resgate de baleias no litoral da cidade. Reuniões até houve, mas o grupo nunca foi criado.

Na mesma sexta-feira, 5 de agosto, em que o Ecomama batizava o Amistoso, uma baleia morta encalhava na praia da Barra. Por falta de quem assumisse seu destino, foi parar num lixão. Nem os ossos podem ser usados para estudos, lamentam os pesquisadores.

Em tempo: o arquipélago das Cagarras pode virar Monumento Natural federal. O projeto já foi aprovado na Câmara. Falta o Senado. Não garante que as coisas melhorem, mas os defensores de golfinhos, baleias, tartarugas e sardinhas poderão enfim ter um responsável com quem reclamar.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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