Reportagens

Terminou em samba

Mangueira vai levar a transposição do São Francisco para a avenida. O samba é pura exaltação ao patrocinador. Mas o enredo promete falar dos problemas.

Ana Antunes ·
3 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás

O São Francisco vai desaguar na Marquês de Sapucaí. Pelo menos do que depender da Estação Primeira de Mangueira. A escola de samba pretende contar a história do rio na avenida.

Tarefa complicada. Quem conhece um pouco do Carnaval carioca já sabe que os sambas-enredo não têm grande potencial explicativo. Ainda mais em se tratando de um dos temas ambientais mais polêmicos do país. Importante mesmo é o refrão empolgar:

O Sertanejo sonhou
Banhou de fé o coração
E transbordou em verde e rosa
A esperança do Sertão


Até aqui, nenhuma surpresa. Ninguém poderia esperar que a Mangueira, ainda mais financiada pelo governo do Ceará, fosse encarar as críticas à transposição e os riscos ecológicos que ameaçam o São Francisco.

Pois encarou. Por trás de um samba-enredo feito sob medida para agradar o público e o patrocinador, há uma justificativa que não foge dos problemas. No site da escola, a chamada Sinopse do enredo fala muito da cultura nordestina, mas também aborda temas como irrigação, assoreamento e vazão necessária à transposição. Sem abrir mão da poesia.

Já começa com um alerta:

Tu que nasces tão pequenino e fraco
Dois filetes de água na grama
Como podes tão longe chegar, no mar,
Se no meio do curso
Quase te tornaste lama?


Vale ponto

A sinopse é escrita assim que o tema é escolhido para virar samba. É ela que dá as informações necessárias para os compositores do samba-enredo e para os artistas que desenham as fantasias e os carros alegóricos. A sinopse também vale ponto no desfile. No quesito “Enredo”, os cinco jurados devem analisar se o que está no papel foi bem representado durante a apresentação.

Eis o risco para a Mangueira. Por exemplo, um trecho da sinopse lista problemas ambientais como o desmatamento e a poluição do rio: São Francisco Peregrino, padroeiro da ecologia [que ironia!] talvez possa me informar onde é que foi parar a bela mata ciliar. Não permita, São Chico, o mercúrio do garimpo e o vinhoto do canavial. Quero o rio sempre limpo para alegrar meu carnaval”. O samba-enredo, por sua vez, se limita a exaltar as maravilhas do crescimento econômico da região:

E tem fruta de primeira pra saborear
Um brinde à exportação, um vinho pra comemorar
O Velho Chico!
É pra se orgulhar.


Não há no samba uma ode direta à transposição do São Francisco. Mas quase. A letra diz que a Mangueira chegou “nas águas da integração” (por acaso o nome do ministério de Ciro Gomes), que o rio é “gigante pela própria natureza”, que “se expande pra mostrar sua grandeza” e que “vai cumprir sua missão”. Não por acaso, ambientalistas contra a transposição entraram na Justiça tentar impedir que o governo estadual banque o desfile.

Enquanto isso, na justificativa, tanto defensores quanto opositores do projeto estão representados: “Há quem diga que o Velho não tem força pra bombar. Há quem veja nesse sonho o direito de ousar”.

Como as alegorias são guardadas a sete chaves até a hora do desfile, é difícil saber se o carnavalesco Max Lopes foi fiel aos problemas e contradições apontados na sinopse. Osvaldo Martins, autor do texto, foi diplomático o suficiente para finalizar deixando em aberto a questão: “Se o Chico sobe a serra ou se fica como está… não se aflija, nada de pressa – quem viver verá”.

Leia também

Notícias
24 de abril de 2024

Na abertura do Acampamento Terra Livre, indígenas divulgam carta de reivindicações

Endereçado aos Três Poderes, documento assinado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e organizações regionais cita 25 “exigências e urgências” do movimento

Reportagens
24 de abril de 2024

Gilmar suspende processos e propõe ‘mediação’ sobre ‘marco temporal’

Ministro do STF desagrada movimento indígena durante sua maior mobilização, em Brasília. Temor é que se abram mais brechas para novas restrições aos direitos dos povos originários

Notícias
24 de abril de 2024

Cientistas descobrem nova espécie de jiboia na Mata Atlântica

A partir de análises moleculares e anatômicas, pesquisadores reconhecem que jiboia da Mata Atlântica é diferente das outras, e animal ganha status de espécie própria: a jiboia-atlântica

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.