Recém-formado biólogo, Rudi Moreno olhou para os fundos de seu condomínio e viu que aquilo estava errado. A encosta, que faz divisa com uma favela no bairro de Santa Teresa, servia de lixão para todo tipo de entulho que moradores do prédio e do morro, democraticamente, descartavam sem qualquer cerimônia. De garrafas a pias, de banheiras a aparelhos de televisão.
Isso foi em 2002. A partir de então, os vizinhos testemunharam, à distância, a lenta transformação do lugar. O jovem arregaçou as mangas e passou a percorrer boas distâncias de terreno íngreme em trilhas cercadas de mato, carregando galões de água para regar as mudas que cuidadosamente plantava sobre o monte de entulho.
Hoje o cenário é outro. O terreno virou uma grande horta de alimentos orgânicos como pimenta, milho, feijão de corda, banana e mamão, temperos e plantas medicinais. O plano de Rudi, agora com 27 anos, é fazer do local uma espécie de laboratório-escola para testar os princípios da permacultura.
O termo é uma síntese de “agricultura permanente”. Foi criado na década de 70 por australianos e trata-se do cultivo agrícola sem devastar terreno para o plantio. De uma determinada área, tira-se o necessário para o consumo humano de diferentes espécies vegetais, que convivem em harmonia com o ecossistema.
No auge do trabalho, Rudi chegou a ter a companhia de outras 15 pessoas na manutenção da horta. O grupo se chamava “Permacultura Urbana”. Atualmente, só ele e Jaime Bastos, outro biólogo, amigo de faculdade, vão assiduamente cuidar do que já está feito e plantar novas mudas. “Isso tudo foi heroísmo do Rudi”, diz Jaime, lembrando a quantidade de entulho que se acumulava na área. “E o ambiente aqui prova que é possível viver na cidade como se a gente estivesse no campo”, afirma ele, morador do Flamengo, também na Zona Sul, que tem subido até Santa Teresa quase todos os dias.
Como mora ali desde que nasceu, Rudi conhece bem as pessoas da região, inclusive do Morro dos Prazeres, a favela vizinha. “Tenho muitos amigos de infância no morro. Alguns trabalham aqui comigo”, conta. Mas como o esquema é voluntário, eles só aparecem esporadicamente. “Não ganham nada para estar aqui, e eu sei das dificuldades econômicas por que passam”.
Plantio espinhoso
Com esses amigos, Rudi começou outro projeto: o reflorestamento em um terreno abandonado entre o local onde cultiva a horta orgânica e uma área onde a prefeitura também investe em replantio. Sua idéia está parada por falta de incentivo financeiro. E ele discorda dos métodos da prefeitura. “São só espécies com espinhos, como paineiras e cássias, que não trazem nenhum ganho a mais para a comunidade”, reclama. Por isso os moradores, segundo ele, são antipáticos ao projeto municipal, que fica numa área de passagem. “Eles se machucam com as plantas. Muitas vezes acabam cortando as árvores”.
Segundo Rudi, os próprios trabalhadores do reflorestamento — dez moradores do Morro dos Prazeres contratados pela prefeitura — se queixam dos espinhos e “acabam fazendo sem amor, sem vontade”. “Seria ótimo se o reflorestamento fosse útil para a comunidade, contribuindo para uma alimentação melhor, por exemplo”, diz ele, que já cansou de pedir ao agrônomo do projeto que trouxesse espécies diferentes. “Ele sempre promete que vai trazer, mas nunca cumpre”.
A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Meio Ambiente alega que o reflorestamento – que também inclui, nessa região, o Morro do Escondidinho e a Vila Elza – começou no ano 2000 e desde então utiliza espécies frutíferas (como pitanga, caju, acerola e tamarindo) e outras árvores típicas da Mata Atlântica. Toda a área, de 20 hectares, está reflorestada, em fase de manutenção.
Rudi vê no replantio a oportunidade de criar uma fonte de sustento para os moradores do morro, ao mesmo tempo em que se protege o meio ambiente. O terreno que quer reflorestar pertence a um especulador que pretendia lotear a área, o que acabaria resultando na expansão da favela. A prefeitura não autorizou as vendas, mas o terreno continua vazio – e desmatado.
Ecologia no cotidiano
O interesse de Rudi pelo assunto começou quando ele “entrou em crise”, um pouco depois de formado, e resolveu procurar um modo de “escapar da sociedade de consumo capitalista”. Resolveu aplicar no cotidiano a ecologia que estudava, incorporando os conceitos da permacultura, que o fascinavam, ao seu estilo de vida. Decidiu formar um grupo juntando gente do condomínio e seus amigos para renovar a área que servia de depósito de entulho.
Começou pela retirada manual de parte do lixo. “Foram vários sacos de vidro, por exemplo, que a gente ia tirando, caco por caco”, conta ele. Mas boa parte do que estava ali antes foi reaproveitado. Pias e bidês antigos viraram canteiros para o cultivo de mudas, assim como caixas de leite e de sorvete. Rudi diz que, para os adeptos da permacultura, “todo problema pode se tornar uma solução”.
As pedras abandonadas no terreno hoje decoram o pedaço da encosta onde foi feita uma espécie de jardim. Uma banheira foi transformada em laguinho com peixes. As trilhas são cobertas com serragem – lixo da marcenaria de um conhecido. Boa parte do entulho continua na área, debaixo das plantas já crescidas. Revolvendo um pouco a terra com a enxada, o biólogo revela cacos de telhas, tijolos e azulejos sob uma camada não muito espessa de solo.
O plantio foi feito obedecendo ao princípio de sucessão ecológica. Primeiro foram introduzidas plantas “colonizadoras”, que prepararam o terreno e servem de matéria orgânica para a formação de um solo fértil. Em seguida, entraram as espécies “pioneiras”, que precisam de solo um pouco mais rico, mas têm crescimento rápido e agüentam sol a pino. Desse grupo faz parte, por exemplo, o mamoeiro. As pioneiras abrem caminho para a presença de árvores maiores, de crescimento mais lento, que precisam de mais nutrientes e não suportam ficar totalmente expostas ao sol.
Mas não está nos planos de Rudi avançar na formação do que seria, no vocabulário da permacultura, uma “agrofloresta”, com o plantio de mais espécies. É que árvores grandes atrapalhariam o acesso ao terreno e o biólogo quer trazer cada vez mais pessoas para lá. Em dezembro passado, um professor de permacultura veio da Austrália para ensinar técnicas a 35 interessados, em dois dias. “Tinha gente do condomínio, do Morro dos Prazeres e de outras partes de Santa Teresa”, conta Rudi, que aguarda a aprovação de um projeto de educação ambiental para crianças da favela, em conjunto com uma ong que atua ali.
Para o posto de saúde
Quase tudo o que é colhido na horta vai para o consumo de Rudi e seus ajudantes. Uma parte o biólogo dá para “pessoas legais”, que incentivam o trabalho. Outra acaba indo para “pessoas não tão legais assim”. “Melas pedem, eu dou”, diz.
As plantas medicinais – como babosa, boldo e arnica – são fornecidas ao posto de saúde Ernani Agrícola, em Santa Teresa, equipado com um laboratório fitoterápico capaz de extrair os princípios ativos das plantas, atendendo com esses medicamentos a cerca de 400 pessoas por mês.
Rudi trabalhou por alguns meses no programa Jardins Orgânicos de Santa Teresa, que estimula o cultivo de plantas medicinais e temperos orgânicos pela população. Esses canteiros domésticos também alimentam o posto de saúde com as matérias-primas dos fitoterápicos.
O biólogo acredita que essa idéia poderia ser aproveitada em projetos de reflorestamento como os da prefeitura. “Se eles cultivassem medicinais em algumas áreas reflorestadas, seria possível abastecer com fitoterápicos todos os postos de saúde da cidade”, afirma. Alô, saúde pública do Rio de Janeiro: alguém aí disposto a acolher a sugestão?
* Eric Macedo é estudante do 7° período de Jornalismo na UFRJ. Descobriu o gosto pelo jornalismo ambiental escrevendo para o site EcoPop, da ONG Viva Rio, onde estagiou.
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