Reportagens

Mudanças de vida

No Pantanal, tem vaqueiro virando criador de borboletas e dona de casa deixando o mato crescer no seu quintal. É que ser ecologista lhes rende dinheiro e estudo.

Cristina Ávila ·
11 de abril de 2006 · 18 anos atrás

João da Silva tem 48 anos e foi vaqueiro — daqueles que tocam berrante e conduzem comitivas de bois no Pantanal alagado. A paixão do peão era ter uma “tralha de arreio”, material em couro e alpaca para encilhar cavalos. Mas a vida deu uma guinada, e ele acabou virando criador de borboletas.

“Conheço o comportamento delas, as doenças e o ambiente das plantas que são seu alimento”, conta João da Silva. Ele nunca freqüentou escola, mas há três anos domina conhecimentos sobre aspectos biológicos e ecológicos de 17 espécies de borboleta, que identifica pelos nomes científicos. Cuida delas para o borboletário do Serviço Social do Comércio (Sesc), em Porto Cercado, pequeno lugarejo do município de Poconé, a 145 km de Cuiabá (MT).

O ex-vaqueiro agora é responsável pela cadeia de reprodução dos insetos. Isso inclui o envio de ovinhos para as casas de pessoas que “adotam” as lagartas quando nascem e as alimentam até se transformarem em crisálidas. Antes de eclodirem, João manda buscá-las.

Trabalho delicado, que influenciou a personalidade do pantaneiro. “Foi uma mudança completa na minha vida. As borboletas são sensíveis, tem que ter carinho ou elas morrem. Tem hora que fico pensando e não acredito que mudei tanto. Para lidar com gado é preciso uma brutalidade imensa, eu tinha sangue na veia, era de puxar revólver pra briga. Hoje sou calmo, caseiro, tenho uma neta que a primeira palavra que aprendeu foi ‘boeta’. Eu lido com meus bichos e sou feliz”, resume.

A borboleta preferida de João é a Mechanitis polymnia, que nasce de uma crisálida prateada e parece um brinco. “A planta hospedeira é o cavu roxo. Os pantaneiros deram esse nome porque usavam para tingir linha de anzol. É um cipó de leite. Encontrei a lagarta e trouxe a planta, via a borboleta na mata e nunca tinha visto o casulo. Quando surgiu a crisálida foi uma surpresa. É linda”.

Floresta em casa

As borboletas estão mexendo com a vida de muita gente em Poconé. “Nossos quintais estão virando florestas”, conta Leonite Mendes. “Muitas plantas que elas comem são do Cerrado. Eu fiz cursos de jardinagem e de educação ambiental para conhecê-las e poder reproduzi-las em casa. Descobri uma espécie que eu não conhecia, a olho de coruja, Caligo illioneus, que nós chamamos de casulo dourado. A planta hospedeira dela é a bananeira. A gente aprende a contemplar coisas que antes passavam despercebidas”, comenta.

Leonite é uma das 25 donas-de-casa que cuidam do desenvolvimento dos ovos até a fase de crisálidas. As crisálidas são enviadas duas vezes por semana para Porto Cercado, onde o Sesc tem o borboletário e também um hotel que recebe turistas que passam por lá para visitar a Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN) Sesc Pantanal. A instituição paga R$ 1 por casulo que recebe, até R$ 280 mensais por pessoa.

Além do complemento da renda, o borboletário chega a contribuir com o equilíbrio emocional das famílias. Desde que começou a participar do projeto, há dois anos, Fátima Aparecida Leite (foto) esqueceu da tristeza. Ela fora hospitalizada diversas vezes por depressão. “As borboletas me ajudaram psicologicamente, pois trabalho com muito amor. Isso se reflete na minha vida. Ah, e temos também nosso dia de princesa, durante os cursos de educação ambiental, quando ficamos hospedadas em Porto Cercado”, conta. Para assistir às aulas, as mulheres permanecem alguns dias no hotel cinco estrelas que o Sesc mantém às margens do rio Cuiabá. Com o dinheiro que recebe, Fátima ainda paga a faculdade do filho, que está desempregado.

Mel contra o fogo

Nem só de borboletas é feita a mudança nas vizinhanças do Sesc Pantanal. Na minúscula comunidade chamada Retiro, a produção de mel é um estímulo para o controle de queimadas. “Com o fogo, bate o prejuízo, pois com fumaça não tem abelhas”, explica José Fernandes, animado com a colheita que começou há pouco mais de um ano e rendeu mais de 300 quilos para seis famílias. O mel vem da florada do cambarazal, floresta que em agosto exibe um tapete suspenso de flores amarelas.
Num lugarejo onde o dinheiro circula escasso, José Marco Souza recebeu R$ 680 com um enxame, em 20 dias. Lucro rápido pelos 68 quilos do mel que conseguiu, mandado para as prateleiras do Hotel Porto Cercado e para a Casa do Artesão, em Cuiabá. As seis famílias iniciais se transformaram em 12 este ano. Os moradores calculam que possam fazer cinco colheitas de julho a novembro.

Os atrativos aos poucos convencem a população a usar menos o fogo. “Parte do fogo que entra na reserva vem daqui. As pessoas não têm trator para fazer roçados e por isso fazem queimadas. Há um grande disparate entre as áreas de incêndio e as terras cultivadas. Aqui, ao norte da reserva, foram 250 mil hectares queimados no ano passado, para 50 hectares produzidos. Isso acontece porque depois que o fogo pega eles perdem o controle”, conta Afonso Francisco de Assis, coordenador do Projeto Colméia, da RPPN Sesc Pantanal.

Estudos e negócios

Os projetos mostram que é possível conciliar interesse econômico e sensibilidade ambiental. Mas para garantir a permanência desses novos valores, a palavra-chave é educação. “Eu poderia fazer artesanato em casa e talvez conseguir o mesmo lucro. Mas estaria limitada à minha casa. Integrados a um projeto de desenvolvimento sustentável, em grupo, temos informações sobre exigências do consumidor, sobre o mercado, e aprendemos a administrar pequenas empresas. Agora mesmo estamos com um professor de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso, de Cáceres, em um curso sobre Cooperativismo e Associativismo. Ele nos orienta como manter nossa cooperativa. Porque criá-la é fácil, manter é o duro”, afirma Patrícia Oliveira.

Patrícia trabalha com cumbaru, uma amêndoa deliciosa que nasce em todos os quintais em Poconé, mas até agora nunca havia sido consumida pela população. Um grupo de 25 pessoas está fazendo artesanato com as cascas e torrando o fruto, vendido em saquinhos. Começaram a tarefa há dois anos, e a primeira colheita rendeu R$ 8 mil.

O trabalho com o cumbaru (foto), da espécie Dipteryx alata Vog, foi sugerido pela engenheira agrônoma Maria Tereza Jorge Pádua, consultora da RPPN Sesc Pantanal e colunista do O Eco. Ela já o conhecia do Cerrado em outros estados. A amêndoa tem alto teor de proteínas, amadurece entre setembro e outubro, suas árvores chegam a 25 metros e os frutos produzem óleo com valor para a indústria cosmética.

Mais uma experiência de exploração sustentável da natureza para mudar a percepção dos pantaneiros. “Nosso trabalho repercute na comunidade. Moramos no coração do Pantanal, sempre gostamos daqui, mas agora as pessoas estão vendo as coisas de modo diferente. Muita gente já está pensando no turismo ecológico”, afirma o agricultor Daniel Soares. Ele também trabalha com as amêndoas e tem novos planos. Quer convencer o grupo a comprar outras área e plantar não apenas o cumbaru, mas também o pequi e a bocaiúva, palmeira apreciada pelas araras azuis.

* Cristina Ávila é jornalista freelancer em Porto Alegre e viajou a convite do Sesc Pantanal.

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