Reportagens

A volta dos mutuns

Os mutuns-do-sudeste, quase extintos na natureza, estão sendo reintroduzidos no Rio de Janeiro. O projeto de extremo rigor científico conta com o apoio de observadores de aves.

João Teixeira da Costa ·
14 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

Desde o início do mês de julho, os visitantes da REGUA – Reserva Ecológica de Guapiaçu, no estado do Rio – estão se habituando a ver a bióloga Christine Steiner pelos caminhos da reserva com uma antena na mão e uma espécie de rádio na cintura (foto). A antena de Christine serve para acompanhar os movimentos dos mutuns-do-sudeste (Crax blumenbachii) que estão sendo reintroduzidos na reserva. Esse é hoje o aspecto mais visível de um programa extraordinário e ainda pouco conhecido de preservação ambiental, conduzido por uma Ong anglo-brasileira e financiado principalmente por observadores de aves.

Os leitores de O Eco já conhecem a saga dos mutuns. Ameaçadas de extinção no seu habitat natural, as aves sobrevivem graças ao esforço de Roberto Azeredo, que conseguiu reproduzir os bichos em cativeiro. Eles já são tantos – mais de 500 indivíduos – que a sua reintrodução no habitat natural faz sentido. Partindo da premissa, é claro, de que as causas da sua destruição foram removidas.

E as causas do desaparecimento do Crax blumenbachii no ambiente natural são as mesmas de tantas outras espécies endêmicas da Mata Atlântica: caça e degradação de habitat. O Plano de ação para a conservação do mutum-do-sudeste, publicado pelo Ibama em 2004, conta a triste história. Eles eram endêmicos das florestas de baixada e de tabuleiros da Mata Atlântica, que se estendiam da região da cidade do Rio de Janeiro ao Recôncavo Baiano e ao leste de Minas Gerais. Mas nos últimos cem anos, o habitat natural do mutum encolheu drasticamente. Especialmente com o desmatamento acelerado do norte do Espírito Santo, a partir de 1960-70, e do sul da Bahia a partir dos anos 80.

Nos poucos habitats que sobraram os caçadores fizeram o possível para completar o serviço. A caça descontrolada, de lazer e de subsistência, ainda é um problema crônico no Brasil. Fábio Olmos, um dos autores do Plano de ação, discutiu esse assunto nas páginas de O Eco. O trabalho do professor Mauro Galetti e dos seus orientados – como Christine Steiner, que vai fazer da reintrodução dos mutuns tema do seu doutorado – tem demonstrado que a caça ainda é um fator de pressão significativo sobre as populações de mamíferos e de aves nas áreas protegidas da Mata Atlântica.

Na mira de tiro

O mutum-do-sudeste sempre foi procurado por caçadores. Segundo o Plano de ação, há indícios fortes de que a caça é responsável pela escassez dos bichos em unidades de conservação como o Parque Nacional de Monte Pascoal, na Bahia. As populações conhecidas estão em áreas protegidas, principalmente na Reserva Natural da Vale do Rio Doce e na Reserva Biológica de Sooretama, protegidas pela companhia Vale do Rio Doce.

Para que as reintroduções tenham chance de sucesso, a área escolhida deve ser uma reserva formal, permanente, com meios para oferecer segurança às aves. Até a entrada em cena da REGUA, outras três experiências de reintrodução dos Crax foram realizadas. Todas em Minas Gerais e em áreas de reserva geridas por empresas (CENIBRA, COPASA e CEMIG), que patrocinaram as atividades. Os dados coletados pela CRAX, que conduziu as três reintroduções, são animadores. Há perdas de animais, em acidentes e capturados por predadores naturais. Mas há registro de animais nascidos na natureza e, o que é importante, com comportamento diferente daquele das aves nascidas no cativeiro. Os mutuns reintroduzidos tornaram-se selvagens.

A chegada dos mutuns na REGUA se destaca pelo rigor científico empregado no processo de reintrodução e pelo empenho de ornitólogos no projeto. A história começa com a criação da Reserva Ecológica de Guapiaçu em 1990, com parte das terras da Fazenda Serra do Mar, da família Locke. Os Locke estão presentes na região desde 1915, quando o bisavô de Nicholas Locke – que hoje, com sua mulher Raquel, administra a reserva – recebeu a Fazenda do Carmo como pagamento de uma dívida. A Fazenda foi dividida e parte foi desapropriada. Mas com a Fazenda Serra do Mar e outras terras compradas posteriormente, a REGUA já controla 2.500 hectares, administra outros 3.000 e tem planos de ampliar ainda mais o seu alcance.

A situação geográfica dessas terras contribuiu para a sua conservação: no pé da Serra dos Órgãos, uma boa parte delas é encosta íngreme, sem uso agrícola. É vizinha ao Parque Estadual dos Três Picos, cuja montanha com o mesmo nome tem 2.350 metros de altitude. Ainda assim, gerir a reserva significa também restaurar ecossistemas, seja através do plantio de espécies nativas da mata atlântica, seja através da recuperação de áreas alagadas que no passado foram drenadas para a criação de pastos. Esse processo é importante, como também é o esforço de educação ambiental nas comunidades vizinhas. Mas essencial mesmo é a proteção da reserva por guarda-parques, pois sem eles não seria possível começar a pensar em reintrodução de espécies como o mutum.

A questão é como pagar as contas. Os contatos britânicos da família Locke ajudaram a divulgar o projeto e a obter ajuda financeira de gente interessada na conservação. Gente como Sir Ghillean Prance, ex-diretor do jardim botânico de Kew Gardens e grande conhecedor de botânica amazônica; como Jerry Bertrand, Tasso Leventis e Stephen Rumsey, que através de organizações como a BirdLife International e o World Land Trust apóiam projetos de conservação ao redor do mundo.

O que os atraiu à REGUA foi a combinação de uma série de qualidades. Em primeiro lugar, claro, o potencial natural do local, com grande riqueza de espécies endêmicas ameaçadas por destruição de habitat, que fazem do local um paraíso dos observadores de aves. Mas também pela estrutura de governança criada por Nicholas Locke. No site da REGUA – a versão em inglês, que é bem mais completa do que a versão em português – é possível ler, por exemplo, os relatórios periódicos enviados por Nicholas contando tudo o que está acontecendo lá.

A estrela dos relatórios nos últimos meses tem sido a história dos mutuns, como não poderia deixar de ser. A idéia parece ter vários pais – Olmos, Rumsey, e o ornitólogo Nigel Collar parecem ter pensado nisso mais ou menos ao mesmo tempo. O passo decisivo, porém, foi a publicação do Plano de ação pelo Ibama, trazendo entre as suas recomendações a sua reintrodução na REGUA. O passo seguinte foi negociar com a CRAX a cessão dos animais – vinte deles, dez casais, com um compromisso de reposição dos indivíduos eventualmente perdidos por acidente ou capturados por predadores.

Com tantos biólogos e amantes da natureza envolvidos, a reintrodução está sendo realizada com o máximo de rigor e cuidado. Decidiu-se reintroduzir os mutuns em três grupos. Quando estive na reserva, no final de agosto, seis deles já haviam sido soltos, e sete se encontravam no viveiro construído para a sua adaptação para soltura em setembro. Cada um dos mutuns recebeu um pequeno transmissor de rádio com identificação individual, que permite que Christine saiba a cada momento onde está cada um deles.

Essa informação é de enorme valor. O fato é que sabemos pouco sobre o comportamento desses animais na natureza, sobre sua sociabilidade, hábitos alimentares, rituais de acasalamento, área de uso, territorialidade, onde fazem seus ninhos. Os primeiros dados são animadores: os mutuns estão andando bastante, se dispersando pela floresta, e se alimentando dos frutos ali disponíveis. A grande expectativa é com relação ao acasalamento e reprodução. Só será possível falar em sucesso depois da 2a geração nascida na natureza.

Os planos do pessoal da REGUA não se limitam à reintrodução dos mutuns. Jacutingas, e inhambus também estão na lista, assim como mamíferos como o mico-leão dourado. Para que isso aconteça é crucial ter uma área suficientemente grande com proteção efetiva contra caçadores. Nicholas trabalha para isso junto com seus vizinhos, com a comunidade, e com os governos estadual e federal. O carisma dos mutuns é uma poderosa ferramenta de persuasão.

*A REGUA recebe e hospeda observadores de aves e amantes da natureza do mundo todo. O autor se hospedou,a convite, por uma noite na pousada da reserva, que converte os lucros para a manutenção da reserva.

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