Encontrar um lugar na Amazônia para mergulhar e com boa visibilidade é um desafio. Descobri isso ao ser contratado pela Ocean Futures Society para ajudar na produção do documentário “Return to the Amazon”, filmado por Jean Michel Cousteau (filho de Jacques Cousteau) para mostrar as mudanças ocorridas na Amazônia nos últimos 25 anos.
O objetivo era encontrar um lugar com uma visibilidade razoável, rico em espécies aquáticas e que fosse cercado por floresta. Conversei com pesquisadores que trabalham com peixes e mamíferos aquáticos na região, consultei a literatura e mesmo assim esse lugar parecia não existir. Entre algumas tentativas, exploramos alguns afluentes do rio Tapajós, no Pará, onde até encontramos visibilidade, mas pouquíssima vida animal. Fomos também ao rio Javari, no Amazonas, fronteira com o Peru, onde encontramos alguma vida, mas pouca visibilidade.
A primeira vez que ouvi falar de Xixuaú foi numa conversa com Vera da Silva, pesquisadora do INPA e referência em mamíferos aquáticos na Amazônia. Com seu jeito calmo e voz baixa, ela nos disse que o rio Xixuaú era um afluente do rio Jauaperi, que por sua vez é afluente do rio Negro. O melhor lugar para mergulhar se encontra em uma área ao sul do estado de Roraima.
A foz do rio Xixuaú fica a quatro horas subindo o Jauaperi. Nesse trecho toda a área à direita de quem sobe o curso d´água faz parte da Reserva Indígena Waimiri-Atroari. Esse grupo vive numa área de mais de 2,5 milhões de hectares. Dentro dela passa a rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista e depois à Venezuela.
A base para nossas operações de mergulho foi na Reserva de Xixuaú-Xiparina, pertencente a uma associação de moradores locais que desejam transformar a área em uma Reserva Extrativista. Entre eles há um escocês, por lá chamado de Cris. Ele coordena praticamente tudo ligado a turismo na reserva, que é muito procurada para a gravação de documentários por causa das águas transparentes e da abundante biodiversidade.
Numa grande maloca está a maioria dos quartos e também uma grande cozinha e “sala-de-estar” que dispõe de uma boa biblioteca com vários volumes sobre a Amazônia – boa parte em inglês, alemão e italiano; principais nacionalidades dos que se aventuram por ali.
Quando a missão do dia é mergulhar as horas passam devagar. Mergulhos de manhã e à tarde. No meio tempo, arrumar os equipamentos da manhã e deixá-los preparados para a tarde, arrumar os da tarde e prepará-los para manhã seguinte.
Fiz vários mergulhos de máscara, pé-de-pato e snorkel. Uma roupa de borracha somente para ficar mais tempo em baixo dágua. O uso de garrafa acaba sendo opcional, pois a profundidade varia entre um e cinco metros. Além disso, há a dificuldade de abastecer os tanques no meio da floresta. No nosso caso, dispúnhamos de um compressor de ar.
A variedade de peixes e bichos é incrível: traira, jacunda, tucunaré, acara, boador, pacu, piranha, peixe agulha, peixe cachorro, surubim, puraqué e outros. Era possível avistar tudo isso sem grandes esforços. Claro que quanto mais tempo na água, maior a recompensa. Não adotamos nenhum procedimento especial para os mergulhos, mas sempre estávamos acompanhados de algum nativo da região.
A água é bem transparente. A visibilidade pode alcançar mais de oito metros. Mergulhar sobre uma floresta inundada é uma experiência quase mística. As formas, os ângulos, as sombras e os contrastes formam visuais difíceis de descrever. Bem diferentes do mar, é verdade.
Tensão
Fomos avisados que a seis horas de voadeira da nossa base existiam cinco grandes lagos naturais e a possibilidade de avistar peixes-boi (manatis) era grande. Rapidamente montamos uma equipe formada por nosso cameraman, uma fotógrafa, uma mergulhadora, quatro guias, uma cozinheira e eu. Partimos no dia seguinte cedo em dois botes de borracha com motor de 30hp, uma rabetinha e três canoas de madeira.
Entre os guias o mais velho e experiente era o “seu Carlito”, profundo conhecedor dessa região. Era assustador seu poder de percepção e sensibilidade em relação aos fenômenos naturais. Nenhum movimento de animais passava despercebido e ele sempre nos mostrava macacos prego, macaco de cheiro, paca, cobras, tucanos e muitos outros pássaros. Mais de uma vez ouvi dizer que ele tem uma metade bicho.
Montamos nosso acampamento a poucos minutos de um dos lagos. Eram duas barracas e uma grande lona que cobria os alimentos e o fogão. Os locais dormiram todos em suas redes amarradas às arvores em volta. A comida sempre a mesma: arroz, feijão, farinha e peixe-frito. Uma delícia! A área onde acampamos também faz parte da Reserva de Xixuaú-Xiparina.
Durante cinco dias a mesma “rotina”: mergulhar e pescar para comer. Os cinco lagos formados pelo rio Xiparina são maiores que um campo de futebol. Alguns são rasos, mas é possível encontrar alguns pontos com 6 ou 7 metros de profundidade. A natureza é intocada. Pássaros e botos são avistados facilmente. A abundância de peixes era tão grande que bastava alguns arremessos com minha linhada e isca artificial para garantir a próxima refeição. Quem gosta de pescar sabe a emoção de fisgar um tucunaré.
Durante um de nossos mergulhos resolvi explorar o lado oposto do lago onde a equipe realiza as filmagens. Quando investigava dois troncos de árvore submersos notei que ao lado havia uma forma que em nada parecia uma planta. Era muito grosso no meio e ia se afunilando na direção do barranco. Tomei fôlego e desci uns dois metros. Qual não foi meu espanto quando quase trombei num jacaré-açu de uns 6 metros de comprimento. A minha primeira reação foi tentar me convencer de que aquilo não podia ser um jacaré, não daquele tamanho. Mas estava tão próximo que não tinha como negar. Como se fosse o dono do lago, o bicho estava lá no fundo, quieto, imóvel. Acho que nem mesmo notou minha presença, ou nem deu bola. Ainda assim o coração disparou, uma mistura de medo e adrenalina tomaram conta do meu corpo e por alguns instantes paralisei. Pensei em nadar para longe, mas tive medo de que ele iria me perseguir. Senti-me como uma presa. Aos poucos fui batendo a perna e saindo de onde estava. Quando me senti seguro comecei a gritar. Ou melhor, a berrar.
Matt, o cameraman, se esquentava no sol da manhã depois de horas de mergulhos ininterruptos. Foi difícil convencê-lo a voltar para a água, mas um bicho daquele tamanho sem dúvida valeria a pena. Identifiquei o local do jacaré por uma árvore no barranco próximo. Ele que já mergulhou com tubarões brancos e há anos acompanha os Cousteaus mundo afora quase não acreditou no que viu. Ficou tão chocado que na primeira tentativa sequer conseguiu apontar a câmera. Voltou para tomar fôlego e com os olhos arregalados soltou um genuíno “Oh my God!”.
Na segunda descida captou algumas imagens, mas que por falta de escala não dão conta do tamanho daquele réptil. Para mim foi uma experiência fantástica e traumatizante. Só no dia seguinte consegui voltar pra debaixo dágua.
* Plínio é mestrando em administração pública e ciências ambientais na universidade de Columbia, em Nova Iorque. Morava em Manaus quando iniciou as primeiras pesquisas para o documentário “Return to the Amazon”.
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