Reportagens

Restinga na justiça

Juiz determina que criação do Parque de Acaraí, habitat de espécies ameaçadas em Santa Catarina, seja suspenso. Para ele, órgão ambiental deve pensar em reserva de uso sustentável.

Felipe Lobo ·
18 de abril de 2008 · 16 anos atrás

Caso raro entre as unidades de conservação do Brasil, o Parque Estadual de Acaraí está em dia com o planejamento. Criado em 23 de setembro de 2005 e situado no município de São Francisco do Sul (SC), o local passou dois anos em fase de transição, período usado para desenvolver a logomarca, base cartográfica e alguns eventos de educação ambiental. Em outubro de 2007, foi dada a largada nos estudos de seu Plano de Manejo, que deveria ficar pronto em junho. Deveria, pois na última sexta-feira (dia 11/04), uma liminar da justiça federal de Santa Catarina ordenou que os trabalhos sejam paralisados até que sejam realizados estudos sócio-culturais e econômicos da região pela Fundação do Meio Ambiente (Fatma).

Reconhecida por sua beleza cênica e importância biológica, a unidade de conservação tem uma área aproximada de 6.667 hectares e o mais importante remanescente contínuo de restinga no sul do país. Em sua extensão, um cordão de dunas realça o valor da área: ele é o responsável pela barreira natural que impede a invasão do mar na área continental. Vale lembrar que uma das maiores cidades do estado, Joinville, fica muito próxima dali e poderia sofrer com os fortes ventos carregados do extremo sul brasileiro. Além disso, há no entorno do parque uma porção do rio que lhe deu o nome e já sofreu com a pesca predatória. A outra parte fica fora dos limites da UC.

O complexo hídrico do terreno, habitat de diversas espécies endêmicas da região, tem ainda as nascentes do rio Perequê e lagoa do Capivaru. “O Acaraí é uma planície litorânea que, há dez mil anos, viveu as mais recentes variações de níveis do mar e começou a se formar. O resultado disso é que tem praias, dunas, 16 km de restinga extremamente conservada, floresta de terras baixas (que nascem em cima das lagunas), manguezais e toda composição de ecossistemas”, diz Carlos Cassini, chefe do parque.

Fora a função de berçário da vida marinha, o espaço protegido também conta com diversos animais ameaçados de extinção. Entre as aves, estão a garça Real, o Martim-Pescador-Grande e o Pica-Pau-de-Banda-Branca. Com sorte, um passeio pela unidade de conservação pode permitir a observação de uma jaguatirica ou o gato do mato pequeno, cada vez mais incomuns nas florestas nacionais. Isso sem contar o belo tapete de bromélias e a variedade de orquídeas. E, caso o Plano de Manejo seja aprovado, novos exemplos de fauna e flora podem pintar por aí. “ Iniciando-se os estudos científicos, os técnicos dizem que muitas outras espécies serão encontradas”, diz Marise Grankow, presidente da Associação Movimento Ecológico do Carijós (Ameca), uma das organizações que mais lutaram para ver o parque decretado.

Todas estas características, no entanto, não foram suficientes para convencer o Ministério Público Estadual e Federal da necessidade de criar uma unidade de proteção integral. Depois de participarem das audiências públicas para a criação do parque e pedirem novos estudos sócio-culturais e econômicos da área, a promotora da comarca de São Francisco do Sul, Simone Schultz, e o Procurador da República do MPF de Florianópolis Eduardo Barragan decidiram entrar com uma ação civil contra o órgão ambiental do estado. “Tentamos um acordo com a Fatma várias vezes para que fizessem os estudos necessários no local. Mas não houve consenso”, disse Schultz.

Direitos

O MP reclama, basicamente, que os direitos das comunidades tradicionalmente acostumadas a usar os atrativos naturais da região foram violados. De acordo com Barragan, o órgão ambiental catarinense não realizou todas as pesquisas exigidas para determinar o status da unidade de conservação que seria criada posteriormente. “É preciso haver investigações prévias para dizer qual UC pode ser feita na região e, neste caso, não houve. A questão biótica deve ser protegida, mas há também outros valores culturais, como as comunidades. Aliás, foram elas as responsáveis por manter o patrimônio físico preservado como está”, diz.

O seu argumento ganha reforço nas palavras da promotora. “Queremos, é claro, que o espaço continue protegido. A importância natural é enorme. Mas precisa se adequar ao que existe ali. Caso se torne uma unidade de uso sustentável, por exemplo, servirá apenas para os grupos que sempre a usaram e não para especulação imobiliária. O aspecto biótico é maravilhoso, mas o cultural também”, diz.

Um dos principais pontos que levaram o MP a formar sua posição diz respeito à pesca efetuada no rio Acaraí há algumas décadas por famílias do entorno. Este argumento encontra forte oposição de Marise, da Ameca. Segundo ela, não faz qualquer sentido conferir o status de uso sustentável para os quase sete mil hectares, já que a área terrestre não tem nenhum tipo de exploração comercial e nem produção agrícola. Além disso, como informa Cassini, há apenas cerca de quatro caseiros morando dentro da unidade para proteger três grandes propriedades que serão desapropriadas e devidamente indenizadas. Os recursos, inclusive, já estão separados.

Sobre o uso do rio, a ambientalista é enfática. “Só poderá pescar na porção do rio que cabe ao parque as pessoas reconhecidas como tradicionais. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) garante esse direito a eles. Como eles têm essa garantia, não sei o que estão temendo”, afirma. Para completar sua posição, ela diz que esse estímulo pode, também, aumentar o pescado no entorno, já que acabaria a extração predatória de peixes e permitiria uma maior reprodução.

Mesmo assim, no último dia 11, o MP conseguiu uma liminar emitida pelo desembargador Domingos Paludo, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ela determina que os trabalhos do Plano de Manejo, praticamente finalizados, sejam interrompidos imediatamente. A vitória foi obtida após derrota em primeira instância, quando o juíz Mauro Ferrandim, de São Francisco do Sul, indeferiu a Ação Civíl Pública impetrada por Shultz e Barragan.

Dúvida

“Nós acompanhamos o cuidado que a Fatma teve para fazer levantamentos prévios por amostragem das comunidades que vivem no entorno e suas práticas culturais. Houve estudos, sim. Não aprofundados, mas eles foram feitos”, diz Marise. “O conselho está sendo constituído, os estudos antropológicos estão sendo realizados e já fizemos levantamento antopográfico. O próximo passo é pagar a indenização”, continua Carlos Cassini.

Não é o que pensa o Eduardo Barragan. “O parque continua criado, mas a ação foi para suspender a confecção do Plano e obrigar a Fatma a realizar as análises de caráter cultural, social e econômico. Depois, se a resposta indicar, deve-se pensar na criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, por exemplo”, afirma.

O despacho do desembargador Domingos Paludo aponta exatamente na direção exposta pelo Procurador da República. “Estes parques jurídicos, em que o Poder Público dispõe do que lhe não pertence, por decreto, cerceando direitos de toda ordem, invadindo propriedades alheias, em nome de um meio ambiente que não quer, efetiva e materialmente proteger, na realidade atentam contra a moralidade pública”, escreve, para depois completar. “Ainda bem que marchamos para o progresso nessa interessante área, pois já era hora de compatibilizar esses santíssimos interesses sociais”.

Nesta quinta-feira à noite, as entidades de São Francisco do Sul que participaram ativamente da criação do Parque Estadual de Acaraí se reuniram. O encontro, que deveria ser o penúltimo antes do anúncio do conselho consultivo da unidade, ganhou outros contornos. O tempo foi usado para escrever uma carta ao desembargador que deu ganho de causa ao MP e questionar a decisão. Na visão dos ambientalistas do município, a liminar não tem qualquer sentido.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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