Análises

Nos Mares do Caribe um Rei usurpador

O peixe-leão está fazendo um estrago no Caribe e a solução mais eficaz para contê-lo tem sido a ajuda dos mergulhadores recreativos.

Pedro da Cunha e Menezes ·
19 de maio de 2014 · 10 anos atrás

Peixes-leão abatidos por [i]divemasters[/i] na Área Protegida Marinha de Sandy Island-Oyster Bay, em Granada. Foto: Pedro Menezes
Peixes-leão abatidos por [i]divemasters[/i] na Área Protegida Marinha de Sandy Island-Oyster Bay, em Granada. Foto: Pedro Menezes

A primeira vez que vi a versão marinha do rei dos animais foi há muitos anos em um Parque Nacional da Malásia. Mergulhava encantado com o infindável caleidoscópio de cores e formas dos corais de Bornéu, quando o divemaster me apontou um peixe rajado, razoavelmente grande, que singrava majestoso entre as outras espécies.

Logo em seguida o bicho abriu-se todo em uma profusão de asas, que aumentavam seu tamanho e incrementavam sua formosura. Fiquei encantado. Ao terminar o mergulho, quiz saber que animal era aquele. Peixe-Leão (Pterois volitans), respondeu-me o divemaster. “Predator eficiente. É carnívoro, come de tudo: ovas e filhotes. Ninguém se cria na sua sombra. Pior, poucos podem com ele, pois tem esporões venenosos por todo o corpo. Não se aproxime dele”, alertou-me, “uma espetada não chega a matar um humano, mas é muito dolorosa”.

Nos anos seguintes, enquanto vivia para os lados da Ásia, acostumei-me a procurar o peixe-leão sempre que mergulhava. Avistá-lo não era exatamente comum, mas tampouco era raro. Admirá-lo nadando nas profundezas do Índico ou do Pacífico era uma experiência visual a que sempre aspirava.

Terminado meu período no outro lado do mundo, fui enviado pelo serviço diplomático para servir sucessivamente na África, Europa e África de novo. Continuei mergulhando, mas nunca mais compartilhei o mundo subaquático com sua majestade o peixe-leão. A partir de 2012, contudo, retomei o contato. Em dezembro daquele ano, aproveitei as férias para acompanhar os últimos estágios da implementação dos 184 km da trilha de longo curso Waitukubuli, na ilha de Dominica, no Caribe. Antes de me embrenhar na mata, contudo, fiz um punhado de mergulhos e, para minha surpresa, deparei-me com o peixe-leão em todos eles.

O leão do mar na praia errada

Área protegida marinha de Sandy Island, Granada. Foto: Pedro Menezes
Área protegida marinha de Sandy Island, Granada. Foto: Pedro Menezes
“Especula-se que os primeiros indivíduos a singrar as mesmas águas que Colombo foram peixes comprados para ornamentar aquários soltos pelos próprios donos enfastiados com o passatempo.”

O peixe-leão não é nativo do Atlântico. A primeira vez que sua presença foi confirmada do lado de cá do Canal do Panamá foi em 1985, nas águas da Flórida. Especula-se que os primeiros indivíduos a singrar as mesmas águas que Colombo foram peixes comprados para ornamentar aquários soltos pelos próprios donos enfastiados com o passatempo.

Segundo a UICN, o fenômeno das espécies exóticas invasoras é a segunda maior causa de perda de biodiversidade no mundo, só abaixo da supressão de habitats (veja artigos anteriores aqui e aqui). O peixe-leão certamente está fazendo a sua parte. Sem predadores naturais, rapidamente começou a se espalhar pelo Mar do Caribe. Primeiro aportou nas Bahamas, onde entre 2008 e 2010, foi responsável pela redução, em alguns casos em até 80%, da biomassa de 42 espécies de peixe que nadavam nos mesmos nichos escolhidos pelo rei dos “felinos aquáticos”.

Mas o intruso não se restringiu às Bahamas. Em fins de 2012 já estava além de Dominica. Também o vi ao mergulhar em Santa Lúcia e Barbados, ambos em águas mais meridionais. Além de comer de tudo e não ter predadores no Atlântico o peixe-leão tem altas taxas de fecundidade, o que o está ajudando a proliferar-se em grande velocidade. Em alguns recônditos caribenhos já apresenta densidades populacionais superiores às que tem em seus mares de origem.De volta ao Brasil, no início de 2013, com vistas a preparar um Plano de Ação preventivo contra o peixe-leão, para quando ele chegasse à costa brasileira, levantei a questão com especialistas. Não havia consenso, mas ouvi uma opinião tranquilizadora de que o invasor não seria capaz de transpor as águas turvas expelidas mar adentro pela foz do Amazonas.

Não sou biólogo marinho, mas quis ouvir outras opiniões. Não tive tempo. Em março daquele ano fui exonerado do cargo governamental que me permitiria montar qualquer ação contra a ameaça submarina. Eis que, contudo, no último dia 10 de maio um peixe-leão foi avistado, e devidamente removido, das águas gélidas da Resex Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro. Como terá chegado lá? Terá atravessado a barreira barrenta do Amazonas? Talvez não, uma vez que nunca houve avistamentos do invasor no Nordeste do Brasil. Além disso, uma longa e meticulosa busca nas profundezas da RESEX não encontrou nenhum outro espécime.

Ok, pode ter sido um peixe de aquário, que chegou ali pelas mãos de seu antigo dono. Mas, e se não for? Como vamos reagir à invasão anunciada? Só quando as hordas estrangeiras entrarem em território pátrio é que vamos treinar nosso exército?

Ações no Caribe

“Hoje, não é possível entrar em uma operadora caribenha sem deparar com um ou mais cartazes chamando atenção para o alienígena e explicando as razões por que deve ser eliminado.”

No Caribe, o tema é tratado como prioridade. Países e territórios como Saba, Bonaire, Santa Lúcia, São Vicente, Antígua, Barbados e Granada têm feito seminários para estudar o problema e desenvolvido estratégias de combate à invasão. Na luta, alistaram o melhor aliado que puderam encontrar: os visitantes e operadores de ecoturismo. Trata-se de tropa bem treinada, com habilitação de mergulho e amor pelo ecossistema que lhes é local de recreação.

Não por acaso, os lugares onde houve maior sucesso na redução ou erradicação de peixes-leões, foram os mesmos frequentados por operadoras de mergulho recreativo. Hoje, não é possível entrar em uma operadora caribenha sem deparar com um ou mais cartazes chamando atenção para o alienígena e explicando as razões por que deve ser eliminado. Em Granada, Belize, Saba, México e São Vicente, onde mergulhei recentemente, todos divemasters, além de alguns clientes mais assíduos, submergem com arpões. Os mergulhadores ocasionais são instruídos a não tocar nos peixes-leões, mas ao mesmo tempo pede-se que os apontem para os arpoeiros. Em um único mergulho vi dez espécimes serem abatidos.

Competir para proteger

“Em apenas um dia nas Bahamas, uma competição dessas tirou 1.400 peixes-leão das águas, quantitativo estimado em 60% da população invasora naquela área.”

Para além dos mergulhos comerciais, em alguns lugares organiza-se regularmente competições de pesca de peixes-leões, ocasião em que vários mergulhadores se reúnem e promovem uma limpa geral em algum sítio escolhido. Em muitos casos, o abate tem sido bem sucedido e já se observa o retorno da fauna local aos níveis populacionais de antanho. Em apenas um dia nas Bahamas, uma competição dessas tirou 1.400 peixes-leão das águas, quantitativo estimado em 60% da população invasora naquela área. Trata-se, todavia, de trabalho pesado e continuado, pois estudos da Universidade de Oregon demonstram que para que sua população tenha um crescimento vegetativo abaixo da taxa de reposição, é preciso eliminar mensalmente pelo menos 27% dos indivíduos presentes naquela determinada área.

Infelizmente, a estratégia é eficiente mas tem alcance limitado a áreas onde há mergulho recreativo. Fora delas a epidemia ainda não tem remédio. Por outro lado, os principais locais a serem protegidos, são quase sempre também aqueles com maior biomassa e biodiversidade marinha, supostamente Unidades de Conservação, ou áreas que aspiram ao status de proteção ambiental. Biomassa e biodiversidade são exatamente os principais atrativos do mergulho de recreação.

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No Caribe, a ficha já caiu. Dados os recursos e meios disponíveis, sem o alistamento do exército de mergulhadores recreativos e, sobretudo, de seus divemasters, não será possível impedir os estragos infligidos pela invasão estrangeira. Já se fala por aqui em abrir todas as Unidades de Conservação ao mergulho, pois é exatamente onde há uso público que a situação está mais bem controlada.

Engraçado que essa questão esteja entrando na ordem do dia justamente quando no Brasil se discute a recategorização da Reserva Biológica de Arvoredo e a criação do Parque Nacional de Alcatrazes e seu respectivo zoneamento. Trata-se de oportunidade única para (finalmente) aprendermos com o resto do mundo e começarmos a empregar o uso público como uma ferramenta de conservação.

Para maiores informações em como lidar com a questão, sugiro “Invasive Lionfish: a guide to control and management” (algo como “O invasivo peixe-leão: um guia para o controle e gestão”).

 

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