Reportagens

Carnaval na floresta

Projetos de infra-estrutura do PAC devem facilitar ainda mais a destruição na já combalida Amazônia. Licenciamentos de grandes hidrelétricas, como Belo Monte, avançam.

Aldem Bourscheit ·
31 de janeiro de 2008 · 17 anos atrás

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anda dizendo por aí que não é hora de acusar ninguém do aumento recente das taxas de desmatamento na Amazônia. Mas esqueceu de avisar que ele mesmo vai promover o maior fuzuê na floresta com o seu Programa de Aceleração do Crescimento, o famoso PAC. Segundo anúncios feitos poucos dias antes à divulgação dos dados da devastação amazônica, a partir de março, investimentos entram em campo para transformar o Brasil em um grande canteiro de obras, algo ‘como nunca se viu na história desse País’.

Construções nas áreas de transporte, saneamento, gasodutos, urbanização e energia devem movimentar mais de R$ 500 bilhões nos próximos anos. Pouco mais da metade dessa montanha de dinheiro tem o destino certo de gerar mais eletricidade e alimentar o prometido crescimento anual de 5%. Tudo isso aponta para a cada vez mais desmatada Amazônia, onde estão os grandes rios e cachoeiras ainda disponíveis para matar a sede energética nacional.

Mais de 90% da eletricidade brasileira vem do barramento de rios para hidrelétricas. Mesmo assim, o Brasil aproveita apenas um quarto do potencial que corre pelas águas. Mais de 60% das possibilidades restantes estão na Região Norte, em rios como Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós. Nesses pontos a geração é considerada de alto impacto sócio-ambiental e com elevados custos de transmissão. Como a Amazônia é muito rica em plantas e bichos ainda desconhecidos pela ciência e farta em populações espalhadas por seu gigantesco território, o PAC tem potencial para gerar conflitos de proporções bíblicas e mais desmatamento. Um verdadeiro carnaval na floresta.

Estradas para a soja

O mapa ao lado mostra algumas das principais obras energéticas e de transporte do plano de crescimento governista. Sempre para facilitar o escoamento de produtos como soja, milho, algodão, carne e madeira, trechos de rodovias como a BR-230 (Transmazônica), BR-319 (Manaus – Porto Velho), BR-163 (Cuiabá-Santarém) e a porção do Nordeste mato-grossense da BR-158 receberão asfalto. Essa última estrada já ganhou prioridade superior ao da BR-163 para o governo. Ela passa nas porteiras de uma fazenda com 80 mil hectares do governador Blairo Maggi (MT), um dos maiores sojicultores do globo.

Na área da energia, os planos não são menos humildes. O cronograma federal prevê 61 hidrelétricas para o país, dezenas em estudo ou construção na floresta tropical, como Cachoeirão e Juruena (MT), Estreito e São Salvador (TO), Dardanelos (MT), Santo Antônio e Jirau (RO), Serra Quebrada (TO), Teles Pires (MT/PA) e Belo Monte (PA). A pressão governista para que Ibama e Funai acelerem estudos e licenças é intensa. O órgão indígena, por exemplo, ganhou cerca de dez cargos comissionados (DAS) para engrossar o time que analisa impactos de obras sobre nativos.

Além de conturbados planos governistas, no Brasil também não faltam estudos de institutos de pesquisa e de organizações civis para mostrar que obras de infra-estrutura descoladas de cuidados ambientais sempre levaram destruição à Amazônia. O Ipam (Instituto de Pesquisas da Amazônia) sabe que mais de 70% do desmate na região avança a partir de rodovias e que, mesmo antes das obras e de qualquer ação de governo, o “desmatamento especulativo” devora grandes nacos de mata. “O PAC demonstra muito bem que se continua com o mesmo padrão de desenvolvimento de 30 anos atrás. A questão ambiental é rasa no plano”, alerta Paulo Moutinho, pesquisador do Ipam.

Belo Monte

O governo tem desenterrado projetos elaborados no ventre da Ditadura Militar para o desenvolvimento da Amazônia, como o da Usina de Belo Monte, no coração do Pará. A barragem é parte de um antigo plano com sete hidrelétricas que inundariam 20 mil Km2 na Bacia do Rio Xingu (mapa ao lado), cerca da metade da área alagada até hoje por barragens no país. Além de extremamente rica em peixes, assim como o Rio Madeira (RO), a Bacia do Xingu tem quase 40% de sua área em terras indígenas.

O último inventário do potencial hidrelétrico da região, enviado pela estatal Eletronorte à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), traz apenas a barragem Belo Monte no Rio Xingu. A usina terá equipamentos para gerar 11 mil MW e alagará 440 Km2 a partir de Altamira (PA). A energia gerada média seria de 4.796 MW. A relação entre área inundada e energia produzida seria uma das melhores do País, só perdendo para a Usina de Xingo, no Rio São Francisco (AL-SE).

No entanto, não há nenhum garantia governista ou jurídica de que Belo Monte será a única naquela região. Se o crescimento econômico pressionar, esse e outros inventários podem ser revistos. Segundo a Aneel, o novo inventário pode ser liberado em breve, acompanhando os anseios governistas ligados ao PAC. Os custos iniciais da obra prevista para a “Volta Grande do Xingu” são estimados em R$ 3,7 bilhões, mais R$ 2 bilhões das linhas de transmissão até Colinas (TO).

Nesses dias onde as lembranças do Apagão voltaram ao imaginário nacional, a vazão do Rio Xingu foi de 4.530 m3/s no trecho previsto para a usina. A marca derrubaria um dos principais argumentos contra a hidrelétrica: de que ela não geraria energia suficiente na seca (julho a novembro). Na cheia, o Xingu já registrou até 32 mil m3/s. A desconfiança sobre Belo Monte é generalizada, ao menos fora do governo, e tem origem em projeções baseadas em registros históricos de vazão do rio. Conforme esses dados, a usina geraria sozinha no máximo 1.356 MW. “Há várias razões para crer que, sozinha, Belo Monte é inviável”, diz Raul Valle, do Instituto Socioambiental (ISA).

Para ambientalistas, a hidrelétrica dependeria de outra barragem rio acima, funcionando como uma enorme caixa d´água para manter a vazão firme em Belo Monte. Os planos originais para a região mostram a Usina de Altamira (antes chamada de Babaquara) fazendo esse papel. Ela alagaria 6,5 mil Km2. Seria o maior lago de hidrelétrica do país. Entidades como a International Rivers Network (Rede Internacional de Rios) alegam que os planos governistas incluem na verdade mais quatro usinas para o Rio Xingu, além de Belo Monte. Vale lembrar que as cabeceiras que formam o imponente rio vem sendo dizimadas em Mato Grosso (mapa ao lado).

Pedras no caminho

Além dos questionamentos sobre geração, Belo Monte tem outras pedras pelo caminho, como uma ação do Ministério Público Federal contra a Eletrobrás. A estatal contratou a Camargo Corrêa, a Andrade Gutierrez e a Odebrecht para estudos prévios à obra. No entanto, as empreiteiras estariam de olho na licitação prevista para 2009. Algo semelhante ocorreu com as usinas do Rio Madeira. A situação, conforme o procurador da República no Pará Ubiratan Cazetta, fere a Lei 8.666/1993, que trata das licitações e contratos públicos. A ação tramita na 1ª Vara Federal, em Belém (PA). “É uma grave ofensa aos princípios legais entregar a futuros candidatos à obra a possibilidade de realizarem estudos que darão base à própria licitação”, diz.

Populações e terras indígenas também devem tirar o sono do governo. Na obra de Belo Monte, um trecho de aproximadamente 100 quilômetros do Rio Xingu terá sua vazão drasticamente reduzida. Serão afetados povos nas terras indígenas Paquiçamba, Trincheira-Bacajá e do Maia. Paquiçamba tem 4,3 mil ha e está regularizada desde 1991. Seus limites estão sendo revistos, segundo a Funai. O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) afirma que há cerca de 500 famílias indígenas espalhadas na região, fora de aldeias regulares. “Esses povos têm que ser ouvidos, pois podem ter sua forma de vida profundamente afetada pela obra”, diz Marcos Reis, coordenador do Cimi no Pará e Amapá.

O procurador Cazetta concorda com o ativista. “Essa será uma intervenção brutal no modo de vida dos índios, marcado pela relação harmoniosa com os recursos naturais. Ainda não tivemos acesso a estudos que indiquem qual o tamanho desse impacto, mas com certeza será devastador”, diz.

A construção de Belo Monte já foi barrada duas vezes. A primeira foi em 1989, quando a gritaria de povos indígenas e outras populações que não foram consultadas suspendeu o projeto. A marca do episódio foi a índia que esfregou seu terçado (facão) na bochecha do então presidente da Eletronorte José Antônio Muniz Lopes. O plano foi reapresentado em 1998, mas foi embargado novamente em 2001. O Congresso aprovou a proposta da obra em julho de 2005, novamente sem ouvir os indígenas.

Com o atropelamento legal, a desembargadora federal Selene Maria de Almeida obrigou o Congresso dar ouvidos aos nativos, como pede a Constituição, o que ainda não aconteceu. O parlamento também deverá avaliar os estudos de impacto ambiental e os laudos antropológicos antes de decidir sobre Belo Monte. Se isso acontecer, será a segunda vez na história em que indígenas serão ouvidos sobre um empreendimento energético. A primeira “oitiva” aconteceu nos anos 1990, quando a Furnas Centrais Elétricas construiu a Usina de Serra da Mesa, em Goiás. O lago da barragem alagou parte de Minaçu, onde viviam à época menos de dez índios avá-canoeiros.

Em sua jornada, Belo Monte já ganhou Termo de Referência (TR) do Ibama e aguarda para breve o mesmo documento da Funai. Um TR é uma espécie de guia para que as próprias empresas interessadas na construção da usina elaborem novos estudos de impacto ambiental. Funai, Eletrobrás e Eletronorte estão em campo desde dezembro, avaliando a região e informando indígenas sobre a obra.

Para Paulo Moutinho, reforços no licenciamento ambiental são indispensáveis para proteger a Amazônia das mordidas do PAC. Segundo ele, a região sofre com políticas governamentais conflitantes. Há planos de combate ao desmatamento batendo de frente com iniciativas puramente econômicas. “Faltam políticas públicas coerentes e sinérgicas. O Brasil está sempre correndo atrás do prejuízo”, diz o ambientalista.

Tentando negar o desmatamento que ameaça disparar em 2008, o governo federal apaga a história e, com os moldes atuais do PAC, dá amostras claras de sua preferência por soja, boi e madeira ilegal. “Estamos muito focados em números, mas o principal é debater o que se quer para a Amazônia. Enquanto isso não for assumido como prioridade da União e dos estados, teremos chance pequena de manter grandes extensões de floresta em pé, fundamentais inclusive para a agropecuária e para a geração de energia”, diz Moutinho.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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