Reportagens

Ninhos artificiais ajudam na recuperação da população de araras-azuis

Com as mortes das árvores usadas para abrigar os ninhos, ave ficou sem ter onde proteger seus filhotes. Mão humana apresentou uma alternativa locacional

Claudia Gaigher ·
31 de janeiro de 2023 · 1 anos atrás

Os primeiros raios de sol iluminam a manhã. Em frente à base do Instituto Arara Azul, na Fazenda Caiman, no Pantanal, a família barulhenta é um despertador natural. Tomamos o café da manhã olhando para esse trio animado e feliz. Os pais orgulhosos enchem o papo do filhotão de castanhas. 

A cena é um presente, um agradecimento das araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus). Os incêndios dos últimos anos queimaram muitos ninhos naturais. O Manduvi, principal árvore onde a arara-azul faz ninho, leva mais de 70 anos para estar em ponto de nidificação, com cavidades que caibam o casal e seu filhote. Muitos queimaram. Por isso, nos últimos dois anos, as pesquisadoras do Instituto Arara Azul intensificaram a instalação de caixas para servirem de casa das araras. O ninho artificial onde vive a família que vimos ao amanhecer foi instalado no alto de uma piúva, o ipê pantaneiro. A caixa de madeira tem 30 a 40 cm de profundidade, uma abertura redonda no alto, perfeita para proteger o ovo, o filhote e garantir que mais uma arara adolescente possa estar nos céus pantaneiros em breve. 

Cada filhote saudável é uma vitória: dos pais, que conseguiram por mais de três meses alimentar a cria; das pesquisadoras e pesquisadores do Instituto Arara Azul, que fizeram 2.931 monitoramentos em 310 ninhos espalhados pelos campos e capões de 32 fazendas localizadas no Pantanal e Cerrado, entre os estados do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, no ano reprodutivo 2021/2022. 

O relatório traz números animadores. Foi o melhor ano reprodutivo na Caiman depois dos últimos incêndios. A fazenda, localizada no município de Miranda, em Mato Grosso do Sul, tem o maior centro natural de reprodução da espécie e é onde fica a base de pesquisa do Instituto Arara Azul. É um importante termômetro para sabermos se as araras-azuis estão conseguindo superar os desafios. 

As alterações climáticas também afetam a reprodução. Temperaturas acima dos 40 graus, chuvas intensas e invernos rigorosos. Num intervalo de 24 horas, a amplitude térmica no Pantanal tem essas variações bruscas: caem de 30 para 7 graus justamente no período reprodutivo das araras. Como elas não tem como se resfriar ou se aquecer tão rapidamente, alguns filhotes não resistem

A pesquisadora Kefany Ramalho mede crescimento filhote. Foto: Cláudia Gaigher.

O filhote arfando de calor preocupou as pesquisadoras. “A temperatura das araras é maior que a nossa, em torno de 41, 42 graus, e com esse calorão aqui do lado de fora elas sentem ainda mais”, explica a pesquisadora e presidente do Instituto Arara Azul, Neiva Guedes, que pediu um pouco de água para resfriar o bichinho molhando as patinhas do filhote.

A instalação de caixas para a proteção dos ninhos se mostrou fundamental para a manutenção da espécie pós-incêndio. A instalação das cintas de metal envolvendo os troncos também. Esta foi uma medida adotada para impedir que predadores escalem as árvores para comer ovos e filhotes. Os incêndios pantaneiros dizimaram muitas árvores e animais, a oferta de alimentos ainda não se normalizou e a predação aumentou. Manter ovos e filhotes a salvo é também um desafio. 

Oitenta e uma caixas de ninhos artificiais foram instaladas e 127 ninhos foram manejados. Se medirmos os quilômetros rodados pelas equipes de monitoramento, passam dos 20 mil km em um ano. A distância equivale a ir e voltar percorrendo todo o litoral brasileiro. O cuidado vai desde a reforma das cavidades naturais, pregando tábuas para reduzir o tamanho da entrada do ninho, ao cuidado com a profundidade nos ocos onde as araras fazem a postura. A equipe de campo usa serragem e nivela a “cama” do ninho para os ovos e os filhotes não ficarem em cavidades muito profundas. O ideal é a cavidade natural ter menos de meio metro, para dar mais chance de sucesso aos filhotes de sair e se lançarem nos primeiros voos. 

Efeitos que persistem

Três anos depois dos incêndios, os impactos ainda são sentidos. A bióloga Neiva Guedes me chamou atenção para as palmeiras de Acuris com troncos queimados. “Aqui, o efeito do fogo de 2019. Toda essa camada preta, carbonizada, mostra que o fogo foi muito alto. Essas árvores revelam que os efeitos do fogo continuam impactando a oferta de alimentos. A produção dessas árvores diminuiu, os cachos estão menores e com menos cocos. O efeito não é só na hora do fogo, a gente também vê muitas perdas de palmeiras e árvores anos depois. Isso interfere na reprodução e na relação de muitas espécies. A arara-azul, que é uma ave especialista e se alimenta basicamente de cocos de Acuri, tem mais dificuldade em encontrar alimento para o filhote”, explica. 

Em alguns locais, como a fazenda São Francisco do Perigara, em Barão de Melgaço, no Pantanal norte, em Mato Grosso, foi preciso coletar cachos de Acuri em outras áreas para ofertar aos bandos de araras que estavam com escassez de alimento. 

O monitoramento foi intensificado e graças a este trabalho minucioso o ano reprodutivo 2021/2022 foi um sucesso para as araras-azuis. Oitenta e três filhotes voaram saudáveis, e mais da metade deles nasceram em ninhos artificiais. 

Fernanda Fontoura sobe em ipê com ninho artificial. Foto: Cláudia Gaigher.

As biólogas Kefany Ramalho e Fernanda Fontoura se preparam para mais uma escalada. “A gente sobe umas dez árvores por dia”, disse Kefany, com um sorriso no rosto. Parece fácil, mas o esforço é grande e exige técnica de alpinismo. Os ninhos ficam a 10, 15 metros do chão. João Marcelo Resende, biólogo recém formado, veio de Goiás para ser estagiário no projeto de monitoramento no Pantanal. Se encanta a cada descoberta e a cada filhote que grita no ninho. 

Fernanda também começou como estagiária e hoje está terminando o doutorado. Não perde o encantamento de principiante. Pendurada pelas cordas de rapel, ela coloca as luvas e olha o interior do ninho artificial. A gente observa embaixo da árvore e ouve o filhotão arrulhar. A bióloga retira o filhote e apalpa o papo. Com um imenso sorriso diz: “Isso é que é um papo de respeito!!!! Tá cheio, comeu demais!” O filhote é levado para exames na lona estendida no chão. Peso: 1 kg e 600 gramas. “Nesta fase, com 78 dias, atingem o pico de peso na curva de crescimento, eles vão emagrecer um pouquinho antes de voar. Voam em média com 1.3 kg”, diz Neiva Guedes, ao retirar o filhotão da balança. Ele já tem penas azuis cobalto, mas mantém uma penugem pretinha sobre o pescoço e o dorso. Somente quando essas penugens caem começam a nascer as penas azuis definitivas. 

Na Fazenda Caiman, 56% dos filhotes que voaram nesse ano nasceram em ninhos artificiais e 44% em ninhos naturais. 

A cada ano reprodutivo, as descobertas científicas ajudam a conhecer melhor a espécie. A arara-azul tem aproximadamente um metro de comprimento da ponta do bico até a cauda – é a maior da família Psittacidae.

Araras anãs

Equipe do Instituto Arara Azul em campo. Foto: Cláudia Gaigher.

Ao longo de 30 anos de pesquisa, a cientista Neiva Guedes e a sua equipe registraram 31 filhotes de araras-azuis anãs, mas apenas 15 entraram nas análises porque muitos filhotes morreram antes de voar do ninho. As araras anãs são até 70% menores que as araras azuis de tamanho normal. Esses indivíduos nascem naturalmente, crescem e se reproduzem. Os seus filhotes nem sempre nascem anões. A descoberta foi publicada no final do ano passado na revista científica Nature

Graças ao monitoramento de longo prazo, foi possível acompanhar a vida das araras anãs: “Estes indivíduos formam casais com adultos maiores de ambos os sexos e não são limitados pelo baixo sucesso reprodutivo. Estes casos foram identificados devido ao desenho de longo prazo deste estudo, que envolveu 30 anos de monitoramento morfométrico das araras-azuis de vida livre. Como os filhotes anões representavam apenas 8,1% de todos os indivíduos medidos e que eram de vida livre, teria sido improvável identificar indivíduos anões em estudos de curto prazo”, descreveu a pesquisadora Neiva Guedes. É difícil saber a causa (ou as causas) do nascimento de araras anãs, são muitos fatores envolvidos, entre eles a baixa oferta de alimento, incêndios, secas, eventos extremos. O que as pesquisadoras querem entender é se essas alterações no habitat podem levar a um aumento no nascimento de filhotes anões e se é sinal de adaptação da espécie ou não. Por isso é tão importante, ano após ano, ver as equipes do Instituto Arara Azul em campo, escalando árvores para chegar aos ninhos, medindo, pesando, filmando cada filhote que nasce nas áreas monitoradas. Um trabalho que exige amor, dedicação, parceria, muita persistência e seriedade na compilação de dados. Só no último ano reprodutivo, o Instituto Arara Azul foi parceiro em 11 pesquisas científicas porque mantém esse banco de dados contínuo e atualizado, comparativos e publicações científicas. Todo o trabalho é feito graças às parcerias e doações. Manter biólogos e assistentes de pesquisa morando na base no Pantanal, viajando milhares de quilômetros pelas fazendas, coletando dados, anilhando, implantando chips, enviando amostras para universidades e institutos parceiros, custa dinheiro. E muito…

Além de patrocinadores como a Toyota e a Fundação Toyota do Brasil, que já são parceiros praticamente desde o início do projeto, o ZOO de Zurich-WCS (Wildlife  Conservation Society) embarcaram nesse imenso desafio nos últimos anos, assim como outros parceiros que também apoiam o Instituto Arara Azul. Parcerias que tem dado condições de a pesquisa ser mantida ano a ano. Outra iniciativa foi a criação da campanha ADOTE UM NINHO foi criada para garantir parte dos recursos. Qualquer empresa ou pessoa física pode participar desse imenso esforço de conservação. 114 ninhos estão disponíveis para adoção. Quem adota, doa 12.000 por ano e passa a receber relatórios bimestrais sobre o seu ninho, pode batizar os filhotes que nascem e ainda recebem fotos e vídeos dos “seus afilhados”. Na décima edição, a campanha tem ajudado a manter essa rotina de visitas em campo.

  • Claudia Gaigher

    Jornalista ambiental especializada na cobertura dos biomas brasileiros, em especial o Pantanal

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