Reportagens

O beabá de Kyoto

Protocolo, créditos de carbono, Anexo I, Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, efeito estufa... entenda o básico sobre o tratado que entrou em vigor esta semana.

João Teixeira da Costa ·
18 de fevereiro de 2005 · 19 anos atrás

A entrada em vigor do protocolo de Kyoto provocou mais uma enxurrada de notícias a respeito do assunto. Acontece que o tema é bastante complicado, e nem sempre a imprensa diária encontra espaço para explicá-lo adequadamente. Segue aqui uma tentativa de esclarecer seus pontos principais, com o mínimo de jargão possível.

O que são efeito estufa e aquecimento global?

Desde o século XIX, cientistas acreditam que determinados gases existentes na atmosfera terrestre capturam o calor que o planeta recebe do sol. Na ausência desses gases, a superfície do planeta seria muito mais fria e dificilmente haveria vida aqui tal como nós a conhecemos. Por uma analogia imprecisa, o fenômeno tem sido chamado de “efeito estufa”.

Ainda no século XIX, identificou-se o vapor de água e o dióxido de carbono – presente na atmosfera em quantidades muito pequenas – como alguns dos mais importantes gases do efeito estufa. Cálculos simples mostraram que variações na concentração de CO2 poderiam levar a alterações para mais ou para menos na temperatura da atmosfera, explicando a variabilidade do clima terrestre no longo prazo. Em particular, interessava aos cientistas explicar as eras glaciais, identificadas no registro fóssil.

Qual o papel da ação humana nesse fenômeno?

A humanidade só adquiriu instrumentos capazes de alterar esse equilíbrio a partir da revolução industrial. Em particular, a queima de combustíveis fósseis (carvão, derivados de petróleo) em processos industriais, no aquecimento doméstico e nos motores de veículos libera grandes quantidades de CO2. Esse gás existe na natureza, e cumpre um ciclo natural. O problema é que a ação humana aumentou rapidamente a sua concentração na atmosfera, onde ele tende a ficar por muito tempo.

A ação humana afeta a capacidade de absorção de calor de outras maneiras. O gás metano, por exemplo, emitido pela decomposição do lixo em aterros ou pelos estômagos de ruminantes, é um potente gás do efeito estufa. Por outro lado, os aerossóis – partículas em suspensão – têm o efeito contrário. As cinzas expelidas por vulcões, por exemplo, tendem a provocar o resfriamento temporário da atmosfera.

O avanço do conhecimento científico sobre o tema teve que superar uma série de obstáculos consideráveis. Compreender a física da absorção do calor pelos gases, por exemplo. Cada gás absorve apenas em uma determinada faixa de freqüência, até um ponto de saturação. Assim, o efeito do aumento de concentração sobre o clima não é linear.

Mas a dificuldade maior está na complexidade do fenômeno climático, sujeito a variações e ciclos de curto, médio e longo prazos, sob a influência de fatores endógenos (internos) e exógenos (externos). As variações de curto prazo – um inverno mais frio aqui, um verão mais chuvoso ali – fazem parte do processo e dificultam a identificação de tendências de longo prazo.

O problema foi enfrentado através do desenvolvimento de técnicas de medição adequadas, e pela criação de modelos matemáticos cada vez mais complexos. A medição de temperaturas médias por satélites, por exemplo, foi um avanço importante.

Hoje existe um consenso robusto entre os climatologistas de que o clima da Terra está cada vez mais quente. E há um consenso razoável, derivado da aplicação de modelos matemáticos complexos, de que se trata de um efeito antrópico. Ou seja, decorrente da atividade humana.

Os cientistas estão certos disso?

Essa é uma das questões cruciais, e mais difíceis, do assunto. Ora, o conhecimento científico do clima da Terra avançou rapidamente nas últimas décadas, mas ainda é imperfeito. Quase toda semana as publicações e sites de divulgação científica anunciam alguma nova observação, ou nova revisão dos modelos climáticos. Essas revisões às vezes confirmam o consenso, às vezes levantam questões novas ou aspectos da realidade que não haviam sido levadas em conta. Mas é assim que o conhecimento científico se acumula. Alguma incerteza sobre o fenômeno ainda vai persistir por muito tempo.

O que fazer, então?

Os cientistas não têm a resposta para essa questão. O problema é que a distribuição geográfica, social e temporal dos custos e benefícios do aquecimento global é bastante desigual. Há um consenso razoável, por exemplo, de que o aquecimento causará o derretimento das calotas polares, que levará à elevação dos níveis dos mares. Ora, isso não é motivo de preocupação para o Nepal, mas é motivo de pânico nas Ilhas Maldivas.

Há quem defenda a tese de que a solução para o problema será encontrada no desenvolvimento futuro de novas tecnologias. Se for esse o caso, não faz sentido tomar medidas muito dispendiosas no presente. Há ainda quem diga – e essa é uma posição muito forte dentro do governo brasileiro – que o aquecimento global é responsabilidade dos países ricos, e portanto são eles que devem encontrar soluções para o problema, e arcar com os custos. Por essa visão, caberia aos países em desenvolvimento apenas garantir o seu direito ao crescimento econômico, mesmo que isso implique em emissões adicionais.

E pode parecer incrível, mas os países exportadores de petróleo exigem compensações caso medidas resultem em redução de consumo do mesmo.

O que é o Protocolo de Kyoto?

O protocolo é o ponto culminante – até aqui – de um processo que começou na Conferência Rio 92. A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, assinada naquele ano, estabeleceu as bases da cooperação internacional em torno do tema, mas sem ir muito além da troca de informações e de experiências.
O Protocolo de Kyoto, assinado em 1997, é por sua vez uma construção única. Através dele os países desenvolvidos se comprometem, de maneira juridicamente exigível, a reduzir suas emissões dos gases do efeito estufa.

O Protocolo é um instrumento complexo, e muitos detalhes do seu funcionamento ainda não foram completamente esclarecidos. Mas, basicamente, ele divide o mundo em duas categorias de países — os industrializados (“membros do Anexo I”), sujeitos a metas de emissões, e o resto — e exige dos membros do Anexo I a redução de suas emissões de GEE em 5%, no agregado, durante o “Período de Comprometimento” de 2008 a 2012, tendo como base suas emissões em 1990. É uma redução modesta diante do tamanho do problema, mas os defensores do Protocolo argumentam que era necessário começar devagar, para aprofundar os comprometimentos mais tarde. Na maioria desses países as emissões não pararam de crescer desde 1997, e portanto atingir as metas tornou-se ainda mais difícil do que na época da negociação do Protocolo.

Os compromissos variam de país para país, e podem ser cumpridos através da redução de emissões no seu próprio território ou através de investimentos em reduções em outros países. São os famosos “créditos de carbono”, como veremos adiante.

Por que as responsabilidades são diferenciadas?

Por que foi negociado assim. Desde o início tem sido impossível separar as negociações sobre mudança climática das discussões sobre desenvolvimento econômico. Como ninguém conseguiu ainda criar um modelo de desenvolvimento que não precise da energia barata fornecida pela queima de combustíveis fósseis (e das emissões que a acompanham), os líderes dos países em desenvolvimento insistiram que não assinariam nenhum acordo que os restringisse.

Esse princípio das responsabilidades diferenciadas parece satisfazer algum critério de justiça, mas o problema é que as emissões dos países em desenvolvimento estão crescendo muito rápido. A China, em particular, tem sua matriz energética baseada na queima do carvão. Fica difícil imaginar que essa isenção possa se perpetuar.

Por que os EUA ficaram de fora?

Quando o Protocolo foi assinado, em 1997, o Senado americano passou uma resolução quase unânime dizendo que aquele documento jamais seria ratificado pelos Estados Unidos. O presidente George W. Bush apenas formalizou o que já era quase certo.
Esse não é o local para uma discussão mais aprofundada das idas e vindas do movimento ambientalista americano. Mas basta dizer que o volume de emissões per capita de GEE dos EUA é bem maior do que os de outros países desenvolvidos, e portanto o ajuste às metas de Kyoto provavelmente seria para eles mais caro e doloroso do que o de outros países.

O que é o MDL?

O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo é um instrumento do Protocolo de Kyoto que permite que países em desenvolvimento vendam reduções de emissões para os países do Anexo I. São os chamados créditos de carbono. A coisa deve funcionar mais ou menos assim: um empresário brasileiro desenvolve um projeto de aproveitamento do gás metano emitido por um aterro sanitário para geração de energia. Em função do projeto, x toneladas de metano deixam de ser lançadas na atmosfera. O empresário vende esse crédito de x toneladas para uma geradora de energia alemã, que pode assim continuar queimando carvão à vontade.

Isso é bom para o Brasil?

Potencialmente sim, na medida em que o Brasil pode gerar volumes substanciais de créditos de carbono. Há até quem acredite que essa será uma fonte de recursos para financiar projetos de conservação por aqui. Mas é preciso levar em consideração os obstáculos. Em primeiro lugar, há uma série de questões técnicas e institucionais bastante complicadas que precisam ser resolvidas para fazer o mecanismo funcionar. Além disso, a ausência dos EUA implica em baixa demanda, e portanto baixos valores, para os créditos de carbono.

De resto, a posição diplomática do Brasil é um tanto precária. Argumentamos que precisamos emitir gases para nos desenvolver, mas na prática as nossas principais fontes de emissão são as queimadas de florestas e a digestão do gado. Cumpre perguntar que modelo de desenvolvimento é esse.

O Protocolo acaba em 2012. O que acontece depois?

Ninguém sabe. As negociações devem começar ainda em 2005. A lógica ambiental diz que seria interessante trazer os Estados Unidos de volta ao processo. A lógica ambiental e política diz que é preciso engajar de alguma maneira os países em desenvolvimento. E há observadores qualificados dizendo que o modelo de reduções mandatórias de Kyoto não deve fazer parte de acordos futuros.

Por outro lado, surgiu nos últimos anos toda uma indústria de consultores, intermediários e advogados especializados em créditos de carbono que certamente pressionará para que algum mecanismo do gênero continue. Mesmo porque a incerteza que existe hoje com relação ao pós-2012 reduz sensivelmente o número de projetos que podem ser implementados. De resto, não é possível prever o que as pesquisas vão revelar, ou qual será o impacto de eventuais desastres climáticos. Mas é bem possível que no final das contas Kyoto se revele um beco sem saída.

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