Reportagens

Cidade esquecida

Os moradores da Cidade dos Meninos convivem há décadas com toneladas de resíduos tóxicos. Os riscos à saúde são enormes, mas o governo não parece ter pressa.

Ana Antunes ·
15 de abril de 2005 · 20 anos atrás

Mais de quarenta anos depois, um dos piores casos de contaminação por pesticida no Brasil continua sem solução. As 392 famílias da Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias (RJ), estão expostas ao pó-de-broca (hexaclorociclohexano) desde o início da década de 1960, quando a substância foi abandonada no local por uma fábrica de pesticidas do governo.

Além de se espalhar pelo ar e contaminar o solo e os alimentos produzidos na área, o material tóxico foi diretamente manuseado pela população, que o utilizou para aterrar a única estrada de acesso ao bairro, para fazer o reboco de casas e para matar piolho de galinhas e crianças, antes que as 300 toneladas existentes hoje no local fossem descobertas.

Embora as autoridades saibam da situação há mais de 15 anos, até hoje não retiraram do local nem o lixo tóxico nem os moradores expostos a ele. A área pertence ao Ministério da Saúde, e nem assim existem estudos conclusivos sobre os impactos à saúde causados pela contaminação. Os riscos, no entanto, são bem conhecidos: entre outros males, o pó-de-broca é cancerígeno e pode provocar abortos e má-formação de fetos.

A maioria dos 1.500 moradores não quer sair da Cidade dos Meninos. Quem visita o lugar entende por quê. A paisagem lembra a de uma cidade do interior. Crianças brincam na rua de terra, interrompidas por um ou dois carros durante uma tarde inteira. Charretes são o principal meio de transporte e o leiteiro leva sua produção de porta em porta. Vacas e cavalos pastam soltos nos gramados, que se estendem até onde a vista alcança. A terra é dividida em pequenos sítios, separados por cercas baixinhas, que quase só servem para enfeitar, pois a porta das casas está constantemente aberta, dando a impressão de que somos sempre bem-vindos. A espera pelo único ônibus que circula por ali faz do ponto o lugar de socialização dos moradores e visitantes.

Mas um pequeno trecho sinalizado com placas de perigo à margem da rua mostra que a tranqüilidade é apenas aparente. A movimentação diária dos habitantes é considerada de alto risco. Uma análise feita pelo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para o Ministério da Saúde em 2002 concluiu que a permanência da população no local constitui um “perigo urgente para a saúde pública”.

Os únicos estudos existentes sobre os efeitos da contaminação pelo hexaclorociclohexano (HCH) foram feitos a partir de exposições ocupacionais, ou seja, analisando pessoas que manipulavam o pesticida no trabalho. Este tipo de exposição é mais brando do que a contaminação crônica, de pessoas que tiveram contato com a substância ao longo de vários anos, caso da Cidade dos Meninos. Mas mesmo nos casos ocupacionais, dados da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC, na sigla em inglês) mostram que as taxas de bebês natimortos ou que morrem logo após o parto podem aumentar em até três vezes se comparadas às da população em geral. O pó-de-broca também afeta os sistemas gastrointestinal, podendo provocar náuseas, vômito e diarréia, e musculoesquelético, causando convulsões e morte do tecido muscular esquelético. A agência internacional considera a substância potencialmente causadora de qualquer tipo de câncer.

Dona Luisa, que mora na Cidade dos Meninos há 40 anos, diz que não há cientista capaz de lhe convencer a abandonar sua casa. Sem desgrudar os olhos do bordado, garante que não troca o lugar por dinheiro nenhum no mundo. E ela até que teve chance de fazê-lo. Sua família era uma das dez que moravam nas proximidades do depósito tóxico e foram transferidas pela Prefeitura para o centro de Duque de Caxias, em 2001. Seus filhos se mudaram, mas ela se recusou a deixar o bairro, optando por uma casa mais afastada do foco principal.

Há 12 anos, Dona Luisa juntou-se a outros 32 moradores para pedir indenização na Justiça pelos danos à saúde causados pelo pó-de-broca. Na época da ação, ela descobriu em um exame que tinha HCH no sangue em quantidades até 260% acima do tolerável. O processo caminha lentamente. Dona Luisa já ganhou 100 mil reais de indenização em 2ª instância, mas o Ministério da Saúde recorreu da decisão.

A Cidade dos Meninos foi formada por funcionários de três instituições que se instalaram na área: a Fundação Cristo Redentor, que abrigava crianças carentes, o Instituto de Malariologia e uma fábrica de inseticidas. Quem chegou primeiro foi a Fundação, em 1946. No ano seguinte, o então Ministério da Educação e Saúde requisitou oito pavilhões para instalar seu Instituto de Malariologia. Em 1950, começou a operar a fábrica de inseticidas, a cargo do próprio Ministério, para combater doenças transmitidas por insetos. Entre os venenos produzidos estava o HCH, destinado a combater a broca, praga comum em plantações. Daí o apelido, pó-de-broca.

A indústria foi desativada em 1962, mas seus resíduos químicos ficaram no local, abandonados a céu aberto. Em 1984, o Ministério da Agricultura proibiu a utilização e venda de HCH em todo o país. O pó-de-broca deixado na Cidade dos Meninos foi redescoberto em 1989, quando uma senhora foi flagrada vendendo o produto nas feiras de Duque de Caxias. Naquele mesmo ano iniciou-se um trabalho de remoção da substância tóxica, mas apenas 40 das 350 toneladas foram retiradas. O resto está lá até hoje.

Maria Izabel Filhote, pesquisadora da UFRJ, explica que o foco principal de contaminação está na antiga instalação da fábrica e que há focos secundários nos locais para onde os moradores deslocaram o material. Mas as condições do local, lembra ela, são propícias para o rápido transporte de partículas do produto para pontos que a princípio não apresentariam perigo. A poeira levantada pela estrada de terra e os alimentos produzidos na área são as principais fontes de contaminação. As toxinas são facilmente absorvidas por produtos gordurosos como o ovo, o leite e a carne bovina ou suína. Amostras de leite materno recolhidas no local estavam com níveis de HCH e de dioxinas 95% maiores do que o tolerado por padrões internacionais.

Como desgraça pouca é bobagem, o problema tornou-se ainda mais complicado em 1991, quando a Fundação Nacional de Saúde contratou a empresa Nortox para reduzir a toxicidade da área. O método escolhido foi adicionar cal (óxido de cálcio) ao pó-de-broca. A reação química entre as duas substâncias resultou em compostos ainda mais tóxicos, como o hexaclorobenzeno, o triclorobenzeno, o pentaclorofenol e dioxinas, todos cancerígenos e responsáveis por outros males como depressão do sistema nervoso central, problemas de fígado, fadiga, náusea e alterações nas taxas de hormônios sexuais.

A taxa oficial de aborto espontâneo na comunidade é de 31%, duas vezes maior do que a média da população brasileira (15%). Mas segundo os estudos da UFRJ os abortos podem ser ainda mais freqüentes, pois os moradores da Cidade dos Meninos têm certa resistência para falar de seus problemas de saúde, por medo de serem retirados da área.

No ano passado, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) recolheu amostras de sangue para verificar os níveis de contaminação, mas até hoje os resultados não foram entregues. Sérgio Koifman, coordenador da pesquisa, diz que a demora se deve à dificuldade em fazer a análise do material coletado. Existem apenas dois laboratórios no país capazes de detectar a presença de HCH no sangue: o do Instituto Butantã, em São Paulo, e o da Fiocruz, sendo que este foi criado apenas para atender à demanda da Cidade dos Meninos. Segundo Koifman, o resultado deve ser apresentado ao Ministério da Saúde “em breve”.

Na área ambiental, o ritmo da reação ao problema foi igualmente preguiçoso. Só em 2003, a Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente (Feema) resolveu acordar para a situação. Cobraram do Ministério da Saúde um projeto para desintoxicar o solo. Em resposta, o governo compromete-se a apresentar, no mês que vem, um termo de referência que vai abrir um processo de licitação para finalmente dar início à desintoxicação da área.

O Ministério da Saúde, teoricamente responsável pelo terreno e pelo crime ambiental e à saúde que está acontecendo dentro dele, afirma que já tem “um plano de ação”. Mas ele não parece muito ágil. Guilherme Franco, técnico da Secretaria de Vigilância em Saúde que responde pelo caso, diz que estão em andamento negociações com a Prefeitura para definir o uso futuro da terra. A prioridade, segundo ele, é “interromper a produção de alimentos e a expansão humana” na área. Sobre o destino dos moradores, cogita-se enviá-los para uma parte não contaminada da própria Cidade dos Meninos. Nem o prazo pevisto para as ações é certo. “O prazo é político. Depende da liberação de recursos”, alega Guilherme Franco.

Quanto ao acompanhamento da saúde dos moradores, o Ministério tomou uma decisão temerária: deixá-lo a cargo do posto de saúde local. Qualquer pessoa que tenha conhecido aquele posto do SUS sabe que a casinha ao lado da Igreja não tem condições de acompanhar possíveis casos de câncer e a variedade de doenças que a contaminação pode causar.

Em Brasília, um projeto de lei sobre a Cidade dos Meninos espera para ser votado. Ele estipula uma indenização de 50 mil reais por família de até 5 pessoas e mais 10 mil reais por integrante extra. O deputado José Eduardo Cardozo (PT/SP), autor do parecer sobre o PL, diz que os valores foram calculados pelo Poder Executivo. “Os moradores da Cidade dos Meninos não são donos da terra. O valor da indenização refere-se apenas aos danos morais, e não os patrimoniais”, explica.

Em vez de servir de alento, o projeto de lei está deixando a população assustada. Nele está escrito que as pessoas terão direito ao dinheiro se saírem de suas casas e que, ao receberem o montante, ficam proibidas de mover qualquer outra ação na Justiça sobre o caso. De qualquer forma, o que as autoridades alegam agora é que a transferência da população e a desintoxicação da área dependem da aprovação deste projeto. Será preciso esperar mais 40 anos por uma solução?

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Comentários 1

  1. claudia diz:

    minha mae quando eu era pequena usou este po em minha cabeca pra matar piolho hoge sinto muito sencibilidade no couro cabeludo