A Serra Fina ocupa o imaginário de inúmeros montanhistas brasileiros. Esse nome é uma referência a sua linha de crista estreita e sinuosa que ao mesmo tempo que desafia caminhantes, representa um ambiente natural extremamente frágil. É neste delicado e belo maciço, entre os estados de Minas Gerais e São Paulo, que está localizada a Travessia da Serra Fina, feita nas cristas da Serra da Mantiqueira e que ganhou a fama de uma das trilhas em montanha mais difíceis do Brasil por suas subidas íngremes e poucos pontos de hidratação. Hoje, a travessia é parte de um caminho ainda maior: a Trilha Transmantiqueira, e tem unido esforços da esfera pública e privada para garantir que a atividade na montanha não comprometa sua conservação.
A Serra Fina está inserida na Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra da Mantiqueira, unidade de conservação de uso sustentável gerida pelo ICMBio. E sua crista, justamente por onde cruza a travessia, está em zoneamento mais restritivo, definido como Zona de Conservação de Vida Silvestre, conforme estabelece o plano de manejo da APA (2018), composta por um mosaico de propriedades privadas. Em 2021, estes proprietários se uniram para criar a Associação dos Proprietários da Serra Fina (APSF) com um único objetivo: a conservação de todo este maciço, através do controle de acesso e manejo permanente, com o ordenamento do território.
O topo da Pedra da Mina, ponto culminante da Serra da Mantiqueira e da Serra Fina, em sua face sul do lado paulista, está protegido pela Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Pedra da Mina. A reserva já conta com o seu Plano de Manejo, aprovado e homologado pela Fundação Florestal do Estado de São Paulo (2020), feito em conexão com a Trilha Transmantiqueira. O percurso passa dentro da área de proteção ambiental privada, em sua parte alta, onde ficou definida uma zona de visitação na trilha da Travessia da Serra Fina.
É importante ressaltar que outras RPPNs também estão inseridas nesse território e que, conjuntamente, possuem papel fundamental na proteção, preservação e conservação dessa região e do bioma da Mata Atlântica. Dentre elas, podemos citar a RPPN Alto Montana em Itamonte (MG), a RPPN Travessia em Lavrinhas (SP) e a RPPN Serrinha e Santa Rita de Cássia em Queluz (SP).
Nos últimos anos 20 anos, desde a descoberta da altitude do Pico da Pedra da Mina, que com 2.798 metros alcança a 4ª posição no ranking dos maiores picos do Brasil, um número cada vez maior de montanhistas e visitantes, de forma desordenada e sem controle de visitação, faziam uso da Serra Fina. Essa visitação indiscriminada culminou num total de aproximadamente três mil pessoas registradas no ano de 2019, conforme dados coletados do Livro do Cume, coletados pelo Programa do Voluntariado da APA da Serra da Mantiqueira. O número não condiz com a real capacidade de carga das trilhas e se traduziu em impactos agressivos ao ambiente natural, o que acarretou em resultados desastrosos para o meio ambiente e vários problemas para todo o Maciço da Serra Fina, afetando toda a biodiversidade dos seus ecossistemas de montanha e em seus campos de altitude, que precisavam de uma maior proteção e controle para uso das trilhas na Travessia da Serra Fina.
Todo esse descontrole culminou ainda em um incêndio de grandes proporções, na segunda quinzena do mês de julho de 2020, iniciado por uma fogueira de autoria desconhecida, que atingiu uma extensa área de 588 hectares na região das Cristas da Serra Fina, segundo levantamento de pesquisadores do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA) da UFRJ. No incêndio, grande parte da vegetação rara, singular e endêmica dos Campos de Altitude foi afetada, acarretando riscos para sobrevivência e manutenção da fauna e flora presentes.
O fogo atingiu também a nascente do Rio Claro, na RPPN Pedra da Mina, face sul paulista da Serra Fina, área de grande biodiversidade. Cerca de 61 hectares foram queimados, em sua parte alta, o que provocou o fechamento da Serra Fina por dois anos com as emissões dos Decretos Municipais de fechamento de seus acessos, pelas cidades de Itamonte, Itanhandu e Passa Quatro do lado mineiro e de Lavrinhas e Queluz do lado paulista. A suspensão do acesso, em parceria com a Associação dos Proprietários da Serra Fina (APSF) e com a APA da Serra da Mantiqueira, teve como objetivo permitir a recuperação e regeneração natural desses habitats da montanha e suas espécies, fortemente atingidos pelo fogo.
Esses acontecimentos exigiram um esforço maior de organização dos proprietários rurais, que constituíram a Associação dos Proprietários da Serra Fina (APSF) com o objetivo de conservar todo o território compreendido no limite de suas propriedades no maciço e regulamentar o trânsito de pessoas pelas trilhas que dão acesso às Áreas de Preservação Permanente (APP) na Serra Fina e aos numerosos atrativos naturais da região. E, também, estabelecer uma estratégia de gestão territorial conjunta que vise a conservação de toda a riqueza e diversidade socioambiental presente neste território, em parceria com o Núcleo de Gestão Integrada (NGI) – ICMBio Mantiqueira. O planejamento integra a gestão da Área de Proteção Ambiental da Serra da Mantiqueira (APASM), com as prefeituras locais, tendo a finalidade de conservá-la, protegê-la e preservá-la de forma eficaz e necessária, respeitando esse santuário natural. De forma que, o seu uso público não comprometa o ambiente frágil de sua biodiversidade e especialmente as áreas que se encontram em processo de recuperação e regeneração natural, levando em consideração o frágil e raro ecossistema existente no maciço, que já estava sofrendo muito com os efeitos da crescente atividade humana nas últimas duas décadas.
Dessa forma, com a reabertura da Serra Fina, foi iniciado pela APSF o controle de acesso e do número de visitantes, assumindo a responsabilidade pelo manejo e sinalização permanentes, juntamente com as normas e alinhamento de ações com o NGI ICMBio Mantiqueira. O esforço conjunto visa garantir o manejo sustentável da Serra Fina com a devida proteção ao seu habitat e ecossistema, envolvendo seus campos de altitude e toda a sua biodiversidade.
Além disso, o apoio à organização da Trilha Transmantiqueira (TMTQ) foi formalizado por meio de uma carta de anuência, para colocação das placas e setas de sinalização, com suas pegadas amarelas e pretas ao longo do percurso da Travessia da Serra Fina. Essa união representa uma parceria sustentável para o uso público dessas áreas particulares, com a devida orientação aos visitantes no ambiente natural. Uma trilha controlada e ordenada, com uma boa sinalização, só fortalece a conexão dos caminhos para a conservação e a restauração das áreas naturais, além de gerar emprego e alternativa de renda junto às comunidades locais.
Com os trabalhos em campo, seguindo as orientações do Manual de Sinalização Rústica de Trilhas do ICMBio, a sinalização da Trilha Transmantiqueira, com suas setas e pegadas amarelas e pretas – que trazem o desenho de uma Araucária, árvore símbolo da Serra da Mantiqueira e marcam a identidade visual da trilha de longo curso – foi efetivada na Serra Fina. Com a implementação, a Travessia da Serra Fina passa a fazer parte da Rede Nacional de Trilhas de Longo Curso e Conectividade (Rede Trilhas), criada através da Portaria Interministerial nº 407/2018, assinada pelos Ministérios do Turismo e Meio Ambiente, além do ICMBio, com o objetivo de interligar unidades de conservação, paisagens e ecossistemas naturais e o intuito de reconhecer e proteger rotas pedestres de interesse natural, histórico e cultural, além de sensibilizar a sociedade para a importância das Unidades de Conservação na proteção de nossa natureza e de nossos recursos naturais, com padrão de sinalização adotado pelo Sistema Brasileiro de Trilhas de Longo Curso (TLCs).
Assim, de pegada em pegada, a Trilha Transmantiqueira sinaliza seus caminhos na Travessia da Serra Fina, em parceria e conexão com a Associação dos Proprietários da Serra Fina e com as Unidades de Conservação (UCs) pública (APASM) e particular (RPPN Pedra da Mina e RPPN Alto Montana), voltada para um uso público controlado e ordenado, de clara sinalização das trilhas com um turismo responsável, de baixo impacto e com distribuição de benefícios para a natureza e para a população local.
A trilha de longo curso, cujo percurso integral ultrapassa 1.100 km de extensão, cruza mais de 40 municípios dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e promove a integração de mais de 30 Unidades de Conservação na Serra da Mantiqueira, interligando as Trilhas de Longo Curso.
Nesse trabalho de apoio e parceria, entre os proprietários rurais, sociedade civil e órgãos públicos, é necessário também que todos os visitantes assumam uma nova postura em relação à realidade atual da Serra Fina. Com a consciência ambiental necessária para uso dos ambientes de montanha, garantindo sua regeneração e conservação, além do devido respeito às boas práticas ambientais e regras de visitação, seguindo as setas de sinalização da Trilha Transmantiqueira. É muito importante o engajamento de todos para evitar que outros desastres se repitam e que a Serra Fina seja respeitada e continue compartilhando suas riquezas naturais, como a sua rara biodiversidade, a beleza cênica de suas montanhas, as águas que produz com suas nascentes e seus atrativos turísticos para todos que tiverem vontade de conhecê-la, estudá-la e conservá-la, em conexão com as Trilhas de Longo Curso, permitindo e contribuindo com a conservação e perpetuação deste lugar único para esta e as futuras gerações.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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Parabéns Dr Sávio Monteiro pelo relato apresentado na matéria.
Conseguiste transmitir, esclarecer, e compartilhar informações que certamente irão contribuir em muito na relação Homem, Natureza, com a Sustentabilidade que tão acreditamos.
31 de janeiro comemoramos o Dia das RPPN’s, cabendo-me registrar aqui que o Marco Histórico para as RPPN’s Brasileiras, particularmente considero possuirmos a RPPN Pedra da Mina/SP a única reserva particular dentre as 10 maiores altitudes do Brasil, estando as demais enquanto reservas públicas.
Gratidão a todos os RPPN’nistas Brasileiros
Att
Jeferson Rocha
ONG IEPA SJCampos SP
Ótimo texto e iniciativa. Um turismo controlado permite contato com a natureza sem acarretar problemas significativos. Mto bom