Reportagens

À margem da história

No interior da Baía de Guanabara, a cidade de Mauá sofre a cada dia uma nova agressão ambiental. Alguns problemas são centenários, mas o governo ignora.

Carolina Elia ·
4 de novembro de 2005 · 19 anos atrás

“Lembro perfeitamente. Cheguei aqui às 11h30 da manhã do dia 30 de setembro de 1935. Vim com meu noivo”, conta Maria Pinheiro Barenco , 87 anos, sentada num banco de madeira, na varanda de sua casa colonial na parte antiga de Mauá, o distrito de Magé que abrigou a primeira ferrovia do Brasil e virou título para o empresário Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá. “Vim conhecer a minha futura casa. Para chegar da estação até aqui era preciso cruzar um areal. Era tudo mato e praia”. Hoje, não mais.

A casa de Maria Barenco, à beira da Baía de Guanabara, é a única construção colonial que resistiu ao processo de degradação ambiental pelo qual passou a cidade. Ao seu redor, e até grudadas em seus muros, há casas de alvenaria esperando a chance de fazer subir uma laje. Há 50 anos, o vizinho mais próximo era um fazendeiro e os morros hoje escondidos por prédios de dois a três andares pertenciam todos ao seu marido, Paulo Barenco, um dos maiores latifundiários de Mauá. Um cafezinho com D. Maria, que foi quatro vezes vereadora, é o suficiente para entender o que se passou ali. “Nos anos 40 o meu marido cortou muita mata para vender a lenha para as padarias do Rio. Era o tempo da guerra. Os navios saíam daqui abarrotados”, conta. “Já o areal sumiu um pouco depois”, e revela que cada grão foi usado na construção de aterros e novos bairros no Rio de Janeiro. “Aí, nos últimos anos de vida, Paulo decidiu lotear o terreno”, diz ao tentar explicar por que a sua casa ficou tão espremida pela cidade.

Na praia de Olaria, em frente ao seu portão, crianças tomam banho de mar a 5 metros de uma vala negra que passa por baixo do mercadinho de peixe, montado em frente à colônia de pescadores. No comando das barracas fica Sérgio Fernandes, que exibe com orgulho camarões graúdos pescados a menos de 100 metros dali. “Camarão cinza verdadeiro, VG. Vê se um lugar que dá este camarão pode estar poluído”, responde ao ser questionado sobre a qualidade da pesca.

Mauá sempre viveu da pesca. Na época em que o trem partia da praia em direção a Petrópolis, os vagões iam cheios de peixe. Os primeiros sinais de poluição surgiram com a chegada da vizinha Refinaria de Duque de Caxias (Reduc). Segundo Elmyro Theophilo, antigo pescador da região, tinha dias em que o peixe vinha com gosto de óleo. Isso há 30 anos. Depois, o trem parou de funcionar e veio a febre dos mariscos. Todo dia, saíam de sete a oito caminhões carregados com vongoles e mexilhões. Caranguejo também começou a dar dinheiro. Mauá é cercada por mangues. “Foi uma besteira. Acabou com a pesca. É o marisco que traz o peixe”, lamenta Elmyro.

A pá de cal sobre a principal economia de Mauá foi dada há cinco anos, quando 1,3 milhão de litros de óleo vazaram dos tanques da Petrobrás para a baía. “A olho nu não se vê nada, a água renova. Mas na época de maré morta, a superfície fica verde opaca”, conta Tunico, pescador da região. “Eles jogaram uma substância na água que fez o óleo ir parar todo no fundo”, completa. Os pescadores são categóricos quando perguntados sobre antes e depois do vazamento: a quantidade e qualidade de peixes e camarões caíram, mas aos poucos a situação melhora.

Em uma reportagem de agosto do jornal O Dia sobre a recuperação dos manguezais da região, os catadores de caranguejo e siri revelaram que os animais que andavam sumidos voltaram a aparecer. Mas não como antes. Arenildo Navega, que pega 200 caranguejos por dia quando antes pegava 500, contou que até hoje não precisa revirar muito a lama para o óleo subir.

Mas nem só de óleo se faz a poluição das águas de Mauá. Há muito lixo em toda a beira-mar. Na mesma praia onde as pessoas se refrescam, baldes velhos chegam pela maré. E o mesmo acontece em toda orla. Segundo a pescadora Ana Maria Coelho Maia, nascida e criada em Mauá, a praia do Anil tem esse nome porque tinha água clara. Mas atualmente é cortada por tubulações de esgoto que levam lama e dejetos para o mar. A água também tem cheiro. Segundo os moradores, o problema se agravou depois do vazamento. “Às vezes dá para sentir o cheiro da praça, que fica a cem metros da praia”, diz Marilda Barros, moradora da cidade.

Curiosamente, Marilda se mudou para Mauá depois que seu filho mais velho, alérgico a quase tudo, curou um corte no pé com a lama do mangue. Faz 20 anos. Desde que passaram a morar lá, ele não sentiu mais nada. Nem mordida de mosquito empola. E há várias outras histórias parecidas, de pessoas que sofriam de asma ou hipertensão e depois que se mudaram para Mauá ficaram curados. Ao saber dos relatos, Araci Lopes, enfermeira-chefe do posto de saúde da cidade, ficou surpresa. “Pelo contrário, por ser uma região úmida e as casas terem muito mofo, ocorrem muitos casos de doenças respiratórias”, disse à equipe do Eco, desconhecendo uma explicação médica para as curas.

Mauá realmente tem seus mistérios. Mesmo com toda a poluição, suas praias ficam lotadas nos fins de semanas. A cidade é considerada um balneário e várias pessoas que moram nas serras próximas mantêm casas de veraneio na região.

A pesca continua a sustentar milhares de famílias e o lixo virou fonte de renda. Outra qualidade é a tranqüilidade. No momento, o distrito de Mauá vive um inchaço populacional e a explicação dos moradores para o fenômeno é a violência dos municípios vizinhos.

Mas a corrida pela paz tem seu preço. Cresce em Mauá a ocupação ilegal. A mais antiga, já considerada oficiosa, fica na beira d’água, à esquerda da praia da Figueira. Quando chove ou a maré sobe além do normal, a água invade os quintais.

Já a ocupação mais absurda fica ao redor da primeira estação de trem do Brasil. Onde o imperador Dom Pedro II esteve pessoalmente em abril de 1854 para estrear a locomotiva Baronesa, hoje existem dezenas de barracos, erguidos por 26 famílias no ano passado. Segundo os ocupantes do terreno, a invasão foi feita a mando do deputado federal e ex-ferroviário Carlos Santana (PT/RJ) às vésperas das eleições municipais. Ele teria dado três dias para as pessoas construírem as casas. No fim do prazo, Walmir de Lemos, presidente do sindicato dos ferroviários da Central do Brasil, apareceu por lá dizendo que estava indo a Brasília buscar o documento de posse. Nunca voltou. Quem foi lá este ano foi Mário Dias do Santos, um dos invasores, que retornou com um documento assinado por Raquel Rolnick, secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério da Cidade. A carta, endereçada à prefeita de Magé, responsável por Mauá, defende a regularização fundiária de invasões ilegais em imóveis abandonados da Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA). Segundo os ocupantes, há outras 50 famílias morando em casas alugadas na cidade e redondezas esperando uma oportunidade para construírem no terreno.

Enquanto a população de Mauá aumenta, um antigo problema persiste: a ausência de água encanada. A maioria das casas tem poços artesianos, o que aos poucos vai exaurindo os lençóis freáticos da região. Ellen Vinhaes, de 19 anos, ainda lembra da nascente que corria pertinho das pedras da praia de Olaria. Mas botaram tanta bomba lá que a fonte secou. “Esgoto, se não fizer o seu, corre a céu aberto”, conta Juliana dos Santos Costa Maia, professora formada que, por falta de emprego, trabalha como doméstica.

Ao ser questionada sobre a situação de Mauá, a assessoria da prefeitura de Magé respondeu que o distrito, que fica na beira da BR-463, é muito longe, e que uma pesquisa de opinião pública apontou a questão da saúde, e não do saneamento, como uma prioridade. Para eles, as duas coisas não estão associadas. Esta lógica explica o fato de a Secretaria de Meio Ambiente de Magé não ter nenhum projeto ambiental para Mauá, cidade conhecida também como Guia de Pacobaíba e que há duzentos anos espera o progresso alardeado pelo apito da primeira locomotiva do Brasil.

* Colaborou com esta reportagem Juliana Tinoco.

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