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Questões sociais e questões ambientais

As reivindicações sociais cada vez mais pegam carona nos problemas de licenciamento, como se cuidar delas também fosse atribuição dos órgãos ambientais.

7 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Uma das grandes dificuldades encontradas nos procedimentos de licenciamento ambiental é a chamada questão social. Não desconheço que, por trás da designação questão social existe um universo de matérias inteiramente diversas entre si e que, certamente, não podem ser colocadas no mesmo saco. Por questão social, para a finalidade deste artigo, entendo a repercussão do projeto sobre o modo de vida das populações que habitam o seu entorno. Exemplificando, se vamos construir uma barragem a questão social será definida como a repercussão do empreendimento sobre as populações locais, a sua necessidade de deslocamento, a perda de empregos, bens, atividades produtivas, etc.

O exemplo das barragens é o mais dramático e, certamente, é aquele que tem alcançado maior repercussão. Existe uma importante organização civil cuja finalidade é, exatamente, a defesa dos “atingidos por barragens” . Existe, ainda, a relevante questão do conflito de uso entre pescadores e as áreas destinadas à exploração e produção de petróleo e gás. Diversas outras interferências de usos podem ser apresentadas como exemplo. Qual o papel do licenciamento ambiental em tais conflitos de uso? Este é um tema que tem merecido pouca atenção das partes envolvidas.

A prática administrativa adotada até hoje pela maioria dos órgãos ambientais brasileiros demonstra que eles se atribuem o papel de árbitros entre as partes em conflito. Muitas vezes, o procedimento de licenciamento ambiental é paralisado, pois o órgão ambiental estabelece como uma das condicionantes do licenciamento que a questão social seja solucionada, com um novo assentamento de populações, pagamento de indenizações, ressarcimento de perdas e danos e demais medidas compensatórias que não dizem respeito diretamente aos danos ao meio ambiente. Assumindo uma posição politicamente incorreta pergunto: isto é tarefa do órgão ambiental?

Respondo de forma ainda mais politicamente incorreta. Não. Infelizmente, ou felizmente, dentre as inúmeras atribuições dos órgãos ambientais não está a de solucionar problemas sociais e econômicos. Na medida em que tais órgãos estejam bem conscientes deste fato, a vida lhes parecerá mais agradável. Aliás, os órgãos ambientais ao buscarem, ingenuamente, resolver problemas que não criaram e que, evidentemente, não têm qualquer capacidade de resolver, acabam servindo de inocentes úteis, pois acabam propiciando a oportunidade para que os órgãos públicos que, de fato, são os responsáveis pela administração e gestão de problemas sociais, se omitam discretamente.

Com efeito, a cada vez que o órgão ambiental estabelece uma cláusula social nos seus procedimentos de licenciamento ambiental ele acaba buscando sarna para se coçar, pois se coloca condições que não pode atender. Várias são as origens para a inserção das cláusulas sociais no licenciamento ambiental. A primeira e mais forte delas é o fato de que, com todas as deficiências que possa ter, o licenciamento ambiental é aberto à participação comunitária e, portanto, suscetível às legítimas demandas sociais. Ocorre que, em função do baixíssimo nível de transparência dos órgãos públicos nacionais e do caráter essencialmente autoritário de nossa sociedade, as mais diferentes reivindicações são carreadas para o interior do licenciamento ambiental, manifestando-se nas audiências públicas e outras formas de consulta. É muito comum que no procedimento de licenciamento ambiental de uma estrada seja reivindicado pela população local a construção de um hospital, ou de uma escola. Reivindicações que, em geral, são justas mas que, em si mesmas, nada têm a ver com a construção de uma estrada. Este modo de proceder – inclusão de cláusulas sociais – é maléfico por vários motivos: (i) traz para o licenciamento ambiental uma fonte de tensão desnecessária; (ii) permite que assuntos diferentes sejam tratados de forma igual, ou seja, proteger meio ambiente não é mais, nem menos do que construir escolas: são aspectos diferentes e igualmente relevantes da vida em sociedade; (iii) rebaixa o nível de proteção ambiental dos projetos em função de pressões sociais.

Os órgãos ambientais, por um motivo ou por outro, acabam aceitando a posição de mediadores dos conflitos sociais de natureza econômica, educacional e outros que tais, desperdiçando precioso tempo e energia de forma equivocada. O mais grave, no entanto, é que o órgão ambiental acaba atraindo para si um nível de expectativa de todas as partes envolvidas que ele não tem como atender, seja pela pouca disponibilidade de recursos materiais e financeiros, seja pela própria inadequação do órgão à tarefa para a qual ingenuamente se propôs. Por outro lado, a atuação do órgão ambiental, muito além de suas atribuições legais, gera uma situação de muito conforto para os reais responsáveis pelas questões sociais que, simplesmente, lavam as mãos ante os problemas concretos.

Hoje, quando se discute amplamente sobre o licenciamento ambiental, parece-me que a questão social deveria merecer um pouco mais de atenção no debate geral sobre licenciamento.

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Comentários 1

  1. Juliana Fernandes diz: