“Quando se colocam questões ambientais e sociais acima de seu direito de propriedade, o usual é que o pecuarista “feche o tempo” e solte logo que ali é ele quem manda, ali ninguém dá palpite, sempre foi e assim será…. A civilização da pata do boi é a civilização do ferro de marcar, do medo, do açoite, da escravidão, da violência velada”.
João Meirelles Filho em “O Livro de Ouro da Amazônia” |
Em seu livro Tábula Rasa (todo sociólogo ou antropólogo deveria ler) o neurocientista Steven Pinker discute como sociedades baseadas na pecuária desenvolvem culturas de violência que persistem mesmo depois que seus descendentes se tornam urbanos. Este seria um tema interessante para pesquisa em um país onde reis do gado e vaqueiros são proeminentes nas raízes nacionais.
Desde que os senhores feudais da Casa da Torre de Garcia D’Ávila iniciaram o processo de destruição da Caatinga aos frigoríficos e fazendeiros que hoje destroem a Amazônia, a pecuária fez mais do que marcar a cultura nacional a ferro, ela tem causado desastres indeléveis na nossa natureza.
É curioso que hoje se faça tanto barulho sobre o Código Florestal quando é o setor agropecuário que tem o que justificar.
Estamos vendo a legislação ambiental e unidades de conservação já existentes ou projetadas sendo sabotadas sob os auspícios de Lula e Dilma, irremediavelmente presos ao passado e linha de frente do desenvolvimentismo a qualquer curso dos generais dos anos 1970. Enquanto isso o mundo está mudando. Sabemos o que as mudanças climáticas em curso nos reservam, mas nossos iluminados líderes tocam o país como se não fosse com eles.
Secas como as que vemos agora no Pantanal, oeste de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e as enchentes no norte e nordeste, são amostra do que se tornará mais comum. Conforme o pêndulo climático oscila cada vez mais, o que hoje inunda amanhã sofrerá secas, e vice-versa. Eventos extremos serão cada vez mais comuns, mas também é evidente que tragédias seriam menores se encostas e várzeas não tivessem sido “produtivamente” ocupadas por pastos ou lavouras.
É mais que prudente, exceto para os ruralistas em geral, os deputados catarinenses em particular, os gênios que conduzem nossa política energética e o Sapo Barbudo (que agora confessou sua antipatia pelas pererecas) que devemos embarcar em um esforço intensivo para mitigar os estragos das mudanças climáticas, tanto cortando emissões como retirando carbono da atmosfera.
Uma política energética que seja minimamente inteligente e desmatamento zero são fundamentais para isso. Assim como plantar muitas árvores, por exemplo para a recuperação de áreas de preservação permanente (APPs) que foram ocupadas. O fato destas tenderem a ser sinônimo de áreas de risco (várzeas, margens de rios e encostas) mostra a previdência de quem bolou nosso Código Florestal.
Enquanto ruralistas batem na tecla de que “o código ficou obsoleto, dissociável da realidade rural brasileira”, a verdade é que a realidade da agropecuária brasileira é que está dissociada da realidade do planeta.
Este é o setor que capitaneia o atraso do país, mantendo vivas instituições como o trabalho escravo, a grilagem de terras e o espírito dos robber barons do capitalismo selvagem do século XIX. É o mesmo setor cuja representação no Congresso pode ser acusada de tudo, menos de compromissada com o futuro e torna verdadeira a máxima de Maquiavel de que mesmo as leis mais bem ordenadas são impotentes diante dos costumes.
Antes de questionar o Código Florestal, deveríamos questionar especialmente o desempenho e responsabilidade da pecuária, que ocupa 250 milhões de ha do país e abriga tanto o de mais moderno como o de mais arcaico no setor. Em particular a pecuária feita na Amazônia, Caatinga e partes do Cerrado, com sua patética produtividade de, quando muito, uma vaca/hectare/ano.
Deveríamos cobrar a responsabilidade de um setor que, segundo o Cepea/USP, produziu 115 milhões de ha de pastagens degradadas e já ocupa 15% da Amazônia Legal (para dar uma idéia, Terras Indígenas ocupam c. 20%). Deveríamos cobrar por que no Centro-Oeste, região onde a atividade domina e fornece boa parte dos agropolíticos, 80% das pastagens mostrem algum sinal de degradação.
Boa parte desta desgraceira é atrelada a uma política imbecil bancada com dinheiro do contribuinte e recursos do Basa, FNO, Banco do Brasil e BNDES. A indefectível plaquinha do Basa adorna todas as porteiras em áreas de desastre ambiental, do sul do Maranhão e Bico o Papagaio a Rondônia.
A maior parte dos frigoríficos amazônicos é completamente irresponsável e não está nem aí para a procedência do gado que abate. Apesar de seu histórico, frigoríficos receberam R$ 6 bilhões, ou verba equivalente a todo o resto dos investimentos diretos na área industrial do banco, desde o setor automotivo até as usinas de etanol. Outros 3,7 bilhões devem ser destinados pelo mesmo BNDES para socorrer frigoríficos em dificuldades devido à crise financeira.
As prioridades para com o futuro do presidente que acha que “ler é chato” ficam evidentes quando esta generosidade ocorre ao mesmo tempo que corta o já minúsculo orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia e energias renováveis são esquecidas pelos pacotes de bondades fiscais.
O mínimo que deveria ser exigido, já que é o dinheiro público que faz os frigoríficos funcionarem, é que estes deixem de alimentar o desmatamento, passem a alimentar responsabilidade, comprando apenas de fornecedores que, no mínimo, cumpram a lei. O ministro Carlos Minc está no caminho certo, falta ver se terá a benção de seus chefes.
A pecuária brasileira tem um legado desastroso. Não precisaria ser assim. Enquanto há pecuaristas e frigoríficos que, para o bem maior, merecem antes a falência terapêutica que socorro de bancos oficiais, há a banda boa daqueles que têm mostrado que criar gado pode ser conciliado com conservação.
Na Espanha, a Extremadura recebe menos de 500 mm de chuva por ano, menos que muitas áreas em nossa Caatinga. Há séculos ali se utiliza uma das formas mais ecologicamente corretas de produção agropecuária no continente: as dehesas.
Estas, e seus similares portugueses, os montados, são pastagens arborizadas com carvalhos (encinas e alcornoques, estes famosos por produzir a valorizada cortiça) manejadas em rotação. No primeiro ano a área entre as árvores (sempre mantidas) é cultivada com grãos. Após a colheita cresce o pasto nativo que, ao longo dos anos dá lugar a arbustos que depois são usados como adubo para iniciar novo ciclo.
A paisagem das dehesas e montados é de rara beleza. Velhos carvalhos pontilham o terreno ondulado coberto de flores silvestres onde carneiros e antigas raças de gado pastam junto a simpáticos porcos negros que procuram comida ao ar livre e chafurdam em pequenos brejos.
Cervos, javalis, lebres, coelhos e perdizes vivendo com o gado são manejados como espécies cinegéticas e áreas enormes são mantidas como cotos de caza. Fonte de produtos que fazem a alegria de quem gosta de uma boa mesa, como quesos extremeños, jamones de bellota, terneras extremeñas e lomos de ciervo, e da cortiça utilizada em rolhas de vinho, as dehesas mantém os habitats e dão uso econômico a áreas que de outra forma poderiam ter sido destruídas pela agricultura intensiva.
Os carvalhos que dominam as dehesas produzem enormes quantidades de frutos (bellotas), que engordam os porcos ibéricos que são a matéria-prima de fantásticos jamones e são procuradas por vários animais selvagens, incluindo milhares de grous e pombos que para ali migram vindos de outras partes da Europa. Não à toa, as dehesas sustentam uma crescente indústria de ecoturismo baseado na observação de aves e conservacionistas dão todo o apoio aos produtores agrícolas que mantém estes sistemas.
As dehesas espanholas, mimetizando bosques nativos, se tornaram um dos principais refúgios para a fauna da Península Ibérica. Muitas aves nativas, que incluem uma diversidade notável de rapinantes e muitos migrantes vindos do norte da Europa, além de mamíferos que compartilham o habitat com o gado. Conservacionistas e proprietários rurais também formaram parcerias que tem ajudado a recuperar espécies ameaçadas, como a águia imperial ibérica.
Os espanhóis podem ter pastagens ecologicamente corretas há muito tempo, mas alguns de nossos pecuaristas também estão chegando lá.
Os Pampas (ou Campos Sulinos) estão entre os biomas brasileiros mais desprotegidos, como míseros 2,32% da área total de campo natural existente no Rio Grande do Sul estando no interior de Unidades de Conservação, e apenas 0,15% naquelas de proteção integral.
Campos naturais são o habitat de excelência para a criação de gado, ainda mais no Brasil, onde a extinção da megafauna pré-histórica deixou nichos ecológicos vagos que hoje podem ser preenchidos por bois, cavalos e carneiros domésticos.
Conservação de pastagens nativas, certificação de origem, manejo responsável sem pastoreio excessivo e exclusão do gado de áreas ecologicamente sensíveis, como brejos, são a receita que concilia o uso econômico com a conservação da biodiversidade do Pampa que está sendo promovida por pecuaristas da Apropampa, pesquisadores e organizações não-governamentais da Alianza del Pastizal, representada no Brasil pela Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil. Esta talvez a melhor esperança de conservação do Pampa, ameaçado de ser coberto por pinus para alimentar papeleiras.
O Pantanal, com seu mosaico de campos naturais, áreas úmidas, cerrados e florestas, também é uma região onde gado e cavalos podem ocupar nichos vagos no ecossistema natural. Ali, uma pecuária mais consciente e menos destrutiva também está surgindo, alimentada pelo crescimento de um mercado consumidor que se preocupa em não comprar bifes que financiam um mundo pior. De forma significativa, pecuaristas estão se engajando em achar formas de convivência com predadores, tradicionalmente perseguidos por matarem o gado, e até ganhar dinheiro com isso.
O uso de pastagens sombreadas, como as dehesas e aquelas que raros pecuaristas têm implantado em São Paulo, Paraná, Triângulo Mineiro e Alagoas, é um tema recorrente na pecuária ecologicamente correta. Estas são algo muito distante do padrão usual no Brasil, onde em geral se passa o correntão, planta-se braquiária e deixa-se o gado cozinhar ao sol em constante stress devido ao calor.
O que qualquer zootecnista sabe diminuir a produtividade e ser, em última análise, algo muito idiota de se fazer. Afinal, vários estudos tem mostrado que vacas felizes produzem mais e melhor e é difícil ser feliz quando, dia após dia, se tosta sob um sol de 40 graus. Temos produtores que olham o futuro e se tornaram adeptos desta visão, mas o grosso prefere seguir pré-cozendo seu gado no pasto.
A pecuária extensiva em pastagens sombreadas, ou se preferirem, sistemas silvopastoris, apresenta uma série de vantagens que deveriam torná-las procedimento-padrão e estimular a criação e refinamento de modelos. No Cerrado, dever ser possível utilizar sistemas que mesclem forrageiras nativas, com espécies arbóreas nativas que dêem sombra e/ou possam ser exploradas economicamente (como o pequi e fruteiras nativas), beneficiando o bolso e a biota.
A discussão do Código Florestal deveria incluir como questão central o estímulo à agricultura e a pecuária manejadas de forma ambientalmente adequada. Os cafezais pendurados em encostas da ex-Mata Atlântica de Minas Gerais e Espírito Santo teriam os conservacionistas como defensores se fossem manejados como os da Colômbia, Costa Rica ou Kenya, onde cafeeiros mais felizes produzem os melhores cafés o mundo sob a sombra de árvores, formando um habitat tão importante para a fauna que existe um selo específico de qualidade.
Melhor do que as pastagens degradadas, com um boi aqui e outro acolá, que dominam lugares como o leste do Pará e o Maranhão ex-amazônico, melhor seria ter plantações de palma entremeados por APPs recuperadas fornecendo habitat para a biota nativa. Melhor ainda se estas plantações tivessem grupos de árvores nativas espalhadas na sua matriz ou fossem entremeadas com policultivos perenes.
Ao invés do INCRA, campeão nacional da irresponsabilidade governamental continuar sua política estúpida de assentamentos em florestas, melhor seria ter propriedades familiares dedicadas à permacultura em áreas degradadas longe de florestas mas próximas de centros consumidores.
É claro que nenhum destes sistemas pode se comparar em biodiversidade a uma floresta ou cerrado nativos, da mesma forma que as cabrucas baianas, mesmo sendo o melhor sistema para cultivo de cacau, não conseguem sozinhas manter todas as espécies. Manter áreas de habitats naturais, como unidades de conservação e APPs, é fundamental.
Mas também é fundamental promover uma agropecuária que vise não só produção, mas também crie áreas onde parte da nossa biodiversidade consiga existir, constitua matrizes mais permeáveis para as que não podem e mantenham serviços ambientais como absorção de carbono e a atração de chuvas (os fazendeiros catarinenses e gaúchos que hoje passam sede deveriam ler).
Ao invés de nos perder em porcentagens, deveríamos aproveitar a discussão do Código Florestal para forçar o setor agropecuário a se tornar de problema em solução. É salutar que a vasta maioria da opinião pública prefira o fim do desmatamento ao aumento da produção.
Incomodado, o ministro da agricultura Reinhold Stephanes distorceu a história dizendo que “se a sociedade achar que devemos parar de produzir para recompor todo os biomas do passado, então ela vai ter que pagar por isso”.
Não se trata disso, mas sim de fazer respeitar as leis e o bom senso e recuperar o que nunca deveria ter sido destruído. O que é um preço menor do que o que já pagamos por termos reis do gado, senhores de engenho e barões da soja, hoje ironicamente apoiados por quem ia mudar tudo que aí está, que há 500 anos tratam o país como sua fazenda.
Sugestão de leitura:
Ecoagricultura: alimentação do mundo e biodiversidade, de Jeffrey McNeely e Sarah Scherr
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