Nas últimas duas semanas, tenho me dedicado ao Parque Nacional da Bocaina, mais precisamente à história da centenária Estrada Cesárea, ou Trilha do Ouro, como é popularmente conhecida.
Há poucos relatos de viajantes que a percorreram no século XVIII. Em 1717, todavia, o futuro Conde de Assumar subiu às Gerais pela trilha de Paraty, que devia ser em tudo semelhante à Estrada Cesárea. Assumar deixou algumas impressões de sua viagem registradas para a posteridade:
Sahimos com sucesso da bahia, e fomos jantar à villa de Paraty em casa do Capitão Lourenço Carvalho que nos regalou magnificamente. Elle he muy rico e poderozo; porque se acha com trezentos negros que lhe adquirem grande cabedal com a condução das cargas, em que continuamente andão pela serra acima, q — vay a Villa de Guaratinguetá; que por ser tão áspera não podem subir cavallos carregados, e lhes he precizo aos viandantes valer-se desse meyo para poder seguir a sua viagem, para as Minas.
Mais tarde, em 1729, Frei Agostinho de Santa Maria, em viagem para Paraty, fez referência a Mambucaba:
Depois de sair do rio Mambucába, & caminhando para o sul outras sete légoas de costa, ou de mar, se chega à Villa de Paraty, que dista do Rio quarenta légoas, ao presente pequena povoação, mas virá a ser muyto populosa pelo muyto trato, & commercio, que nella há: porque he o porto de mar onde acode a gente de todas aquellas Villas do Certão, como são a de Guaratinguetá, a de Pendà, Munhangába, Thaubathé & Jacarehy. Todas essas Villas da serra asima descem ao porto daquella villa a buscar o necessário, como he o sal, o azeyte, & vinho, & tudo o mais. Aqui descem varios moradores das Minas de ouro com ele a fazer negocio, & por aquy sobem Muytos dos que vão do Rio de Janeiro para as mesmas Minas.
Interessante é o relato do Frei Agostinho, pois mostra o fato pouco divulgado de que, mesmo em tempos remotos, havia uma trilha litorânea ligando Itaguaí e Sepetiba a Paraty e Angra dos Reis. Realmente, a preferência dos viajantes era seguir por via marítima, mas, no caso dos sertanejos que transitavam pela estrada Cesárea, a opção por essa trilha terrestre, malgrado suas precárias condições, era freqüentemente imperativa, visto ser muito irregular o serviço marítimo do Rio e de Paraty à vila de Mambucaba.
Em março de 1818, o cientista austríaco Johann Emanuel Pohl aventurou-se por essa picada até Angra dos Reis, deixando escritas para a posteridade algumas observações sobre esse atribulado percurso. Valioso é o registro de Pohl, pois, quase dois séculos depois de redigido, continua impressionantemente atual. Fácil será a todo excursionista que, no último dia da Travessia do Ouro, descer a encosta da Serra da Bocaina com condições meteorológicas de chuva contínua, compreender a veracidade e o peso das extenuadas frases daquele sábio austríaco:
Quando, na manhã do dia 29, quisemos continuar a viagem, os caminhos estavam tão ruins por causa da chuva incessante, que tivemos que desistir desse propósito… Diante de nós surgiu a Serra de Angra, alta montanha coberta de sombria selva. Teríamos de escalá-la. O caminho era extraordinariamente difícil. Subimos árduos rochedos de quase setenta centímetros de altura, entre os quais as chuvas haviam rasgado calhas. Depois vieram massas ásperas alternadas com cascalho graúdo. Grossos galhos e ramos pendentes dificultavam mais a travessia. Nesse caminho horrendo os animais não tinham marcha segura. Todavia, vencemos todas as dificuldades e, cerca do meio dia, chegamos ao cume. Fascinou-nos aqui, naturalmente, a esplêndida vista sobre a montanha e o mar, mas o encantamento esmoreceu quando deitamos o olhar para baixo, sobre o caminho que nos devia conduzir ao outro lado da serra. Severa e terrível se abria diante de nós a imensa profundidade que teríamos de descer. A trilha era extremamente escarpada e em pouco se tornou tão perigosa que tivemos de apear de nossas montarias para não nos ferirmos nas curvas pedregosas do caminho. Os animais caíam uns após outros e os incômodos de toda espécie aumentavam de modo quase insuportável… Nem bem havíamos dado cem passos, colheu-nos uma selva tenebrosa. Nenhum raio de sol transpunha a densa cúpula de sua folhagem e o chão era um pântano, com profundos buracos em que os animais tropeçavam a cada passo, deixando cair a carga… Foram mais duas horas rompendo por charcos, que os nossos pobres animais, extenuados atravessavam atolados até o peito… Não víamos fim para nossa desesperada situação… Desde muitos anos nenhum europeu havia chegado a esta terra montando burros e cavalos. Todos os viajantes costumavam preferir a viagem por mar, que é mais confortável.
De fato, à parte Pohl, é quase impossível encontrar qualquer referência a algum europeu que tenha empreendido semelhante jornada. Por outro lado, ir do Rio aos portos da baía da Ilha Grande por mar era comum. Um desses viajantes marítimos foi o representante diplomático da Bélgica junto à Corte de Dom Pedro II, Benjamin Mary, que ao empreender essa travessia, em 1836, pintou três belíssimos quadros da enseada de Mambucaba. Infelizmente, tais obras de arte não estão acessíveis ao grande público, já que pertencem a coleções particulares.
Outro que singrou as águas da baía de Sepetiba foi John Luccock. O britânico esteve na vertente litorânea da Bocaina, em 1813, antes de Pohl. Nas notas que redigiu sobre seu passeio, Luccock deixou uma explicação sobre o nome daquela seção da serra do Mar, bem como sua conseqüência para a alcunha peculiar que se dava aos piratas que infestavam as cercanias da Ilha Grande:
A noroeste de Paratí estende-se a serra da Bocaina, ou Bucaina, que antigamente transmitiu seu nome aos bucaneiros, devendo-o, por sua vez, a uma prática de seus habitantes que usavam assar a carne sobre trempes de pau, de que a gordura escorria alimentando o fogo. (Prática do “boucan”, também comum nas Antilhas Francesas)
Antes de ser conhecida por Serra da Bocaina, o nome usual daquela montanha, no tempo do ouro, era Serra do Facão. Alcunha que Ana Miranda, utilizando-se de um diálogo entre dois personagens, explica em o Retrato do Rei: “Porque se chama assim esta serra? Perguntou Mariana. Porque é íngreme, esguia, longa como uma lâmina, disse Montanha. Cuida-vos para não escorregarem aos infernos”. Com o passar das décadas e especialmente após o fim do ciclo do ouro, os condutores dos milhares de animais que por ali transitavam carregados de café todos os anos (160 mil em 1822), ao comer seus “boucans”, foram os principais responsáveis pelo rebatismo da serra.
Tanto se falou aqui da trilha do Facão, porque a estrada Cesárea é em tudo semelhante a ela, só que menos importante. O esmero do seu traçado e a largura de sua pavimentação, entretanto, sugerem ter sido esta trilha mais que um simples caminho auxiliar. Mesmo assim, são muito escassas as referências a ela feitas na grande maioria das fontes primárias que tratam da questão viária no Brasil Colonial e Imperial.
Seja como for, com a conclusão do Caminho Novo, por volta de 1724, ligando o Rio de Janeiro diretamente às Minas Gerais, houve uma ordem da Coroa para que as demais trilhas tivessem seu trânsito proibido: “Quantos mais forem os caminhos mais difícil será a defesa da cidade e maiores os descaminhos lesivos à fazenda Real”.
Isso pode explicar a relativa ausência da Trilha nas fontes históricas. Afinal, com a proibição de 1724, somente revogada em 1816, oito anos após a chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, a estrada Cesárea, ao que consta, teria sido usada apenas por contrabandistas e contraventores que a procuravam para evitar os pesados pedágios do caminho monopolista. Essa seria, contudo, uma empreitada das mais audaciosas; pois a pena para tal delito, além do confisco de todo o carregamento contrabandeado, implicava em pagamento de multa equivalente a três vezes o valor do material apreendido. Além disso, todo o ouro transportado tinha que ser previamente cunhado em alguma casa de fundição Real, sendo condenados à morte os fabricantes e falsificadores de cunhos.
Semana que vem eu conto mais.
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