Encontrar caminhos para preservar a Amazônia, ou parte substancial dela, já seria bastante difícil se a discussão se limitasse aos fatos. Quando os mitos começam a prosperar, o trem sai de vez dos trilhos.
A tal da cobiça estrangeira pela Amazônia é um exemplo. Aquela história dos supostos mapas nos livros escolares americanos onde a região supostamente aparece como território internacional já foi exaustivamente desmentida, mas a paranóia persiste. Sua mais recente vítima é o ex-comissário europeu e candidato a diretor da OMC Pascal Lamy. Em conferência na sede das Nações Unidas em Genebra ele se atreveu a mencionar as florestas tropicais como possíveis <AHREF=”HTTP: target=”_blank” Public_good? wiki en.wikipedia.org>bens públicos mundiais. Questionado por jornalistas, ele disse ainda que se essas florestas forem definidas como bem público, então poder-se-ia implementar certas regras para a sua gestão.
Ora, no jargão dos economistas bem público é qualquer bem que gera grandes externalidades positivas, e portanto tende a não ser rentável para o produtor privado. Um exemplo: iluminação pública. Como é impossível cobrar pelo benefício que a iluminação traz, o serviço geralmente é provido pelo governo. Serviços ambientais também são um ótimo exemplo, e parece ser esse o sentido das declarações de Lamy: que o meio ambiente tem um valor que não pode ser apropriado diretamente. Se foi essa a sua intenção o seu discurso deve ser aplaudido, pois reconhecer a existência desses bens públicos é o primeiro passo para discutir a remuneração por serviços ambientais.
Parece uma idéia extremamente interessante. Em troca de concordar com alguns princípios de gestão, o Brasil poderia ser remunerado pelo trabalho de preservar o que resta de suas florestas. Aos fetichistas da soberania, previsivelmente escandalizados pela idéia, resta perguntar: soberania é um fim ou um meio?
Esse mito da cobiça internacional é antigo e não parece muito vulnerável à exposição dos fatos. Talvez seja mais produtivo tentar evitar o surgimento de novas fantasias. Como essa idéia, por exemplo, de que a responsabilidade última pelo desmatamento da Amazônia estaria com os compradores de madeira do sudeste, e mais especificamente de São Paulo, dado que a maior parte da madeira retirada da Amazônia teria seu mercado aqui.
Felizmente existem estudos de qualidade sobre o assunto. Na página de downloads do Imazon é possível encontrar dois pequenos livros elaborados por aquele instituto, o Imaflora e a Amigos da Terra. O primeiro deles, publicado em 1999, se chama Acertando o Alvo: consumo de madeira no mercado interno brasileiro e promoção da certificação florestal. Esse estudo procurou estimar os destinos e as amplitudes dos fluxos de madeira originários dos estados da Amazônia legal. A conclusão foi que o maior consumidor de madeira tropical do mundo é o próprio Brasil, que fica com 86% da madeira amazônica, e que uma em cada cinco árvores cortadas na Amazônia acabava em São Paulo. Os autores avaliavam, com base em extensa pesquisa de campo, que os consumidores não davam atenção à origem da madeira dos produtos que compravam, e que os intermediários eram muito céticos com relação ao conceito de madeira certificada.
Em 2002 as três organizações publicaram um novo estudo: Acertando o Alvo 2: Consumo de madeira amazônica e certificação florestal no estado de São Paulo. Os autores procuraram aprofundar a análise do primeiro Acertando o Alvo, identificando os usos de madeira amazônica em São Paulo, tanto a certificada quanto a de origem incerta. Eles entrevistaram 861 revendedores de madeira e 119 industriais consumidores de madeira. São Paulo foi escolhido por ser o maior destino da madeira amazônica. Não o destino final, vale dizer, pois uma boa parte dessa madeira é consumida por indústrias que vendem seus produtos para o resto do Brasil e para o exterior, como a de móveis, por exemplo.
A maior parte da madeira amazônica vendida no estado passa pelos depósitos de madeira, e tem por destino final a estrutura de telhados de casas (42%) e os andaimes e formas para concreto (28% do consumo total). A madeira certificada já domina alguns segmentos do mercado como casas de madeira, pisos e esquadrias. Os autores apuraram ainda que havia grande ignorância sobre o tema certificação entre os operadores dos depósitos de madeira.
As duas pesquisas revelam que o consumo de madeira amazônica é em grande parte explicável por razões econômicas. As variedades mais baratas são utilizadas em funções nada nobres, como as formas para concreto na construção. Usa-se madeira amazônica porque foi a que sobrou, depois da destruição dos estoques do Sul e Sudeste do país. André Freitas, secretário executivo do Imaflora, acredita que será muito difícil para a madeira certificada competir nesse segmento, por uma questão de custo. Não o custo da certificação, mas o custo de ser empresa organizada no Brasil. Os fornecedores de madeira sem origem são informais, não pagam impostos, não respeitam direitos trabalhistas, e não arcam com os custos da destruição que promovem. Logo têm todas as condições de oferecer preços mais baixos.
Isso não quer dizer que os esforços de conscientização são inúteis. A Amigos da Terra, em particular, conduz um projeto junto a compradores de madeiras e de outros produtos florestais que parece fazer diferença. O projeto Compradores reúne uma série de empresas e órgãos públicos que se comprometem a oferecer produtos fabricados com matéria prima certificada pelos padrões do FSC. Para Karina Aharonian, coordenadora do grupo de compradores do ramo madeireiro, o trabalho tem encontrado boa receptividade, na divulgação não só dos métodos de certificação, mas também de práticas florestais menos predatórias, como o uso de madeiras de outros tipos além dos tradicionais. Para uma boa parte desses compradores, o uso da madeira certificada é parte de uma estratégia de marketing, buscando atingir um consumidor esclarecido.
O grande desafio é levar a conscientização a um grupo mais amplo de consumidores; fazê-los perceber que ao comprar aquela madeira ilegal ele está financiando o desmatamento, a pistolagem, e o trabalho escravo. Mas o trabalho não acaba aí. O comércio de madeira ilegal é parte de uma vasta economia informal que cresceu onde o estado não quer ou não pode chegar. Não dá para imaginar que a conscientização de consumidores e intermediários por si só será suficiente para acabar com ele. Há coisas que o setor privado não consegue fazer sozinho.
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