Em 1980, atendendo aos anseios de uma crescente massa de cidadãos preocupados com o acúmulo de lixo tóxico em seu território — e com os seus efeitos na saúde e no meio ambiente — o Congresso dos Estados Unidos criou um fundo, destinado especificamente a limpar essas áreas contaminadas. Nascia, assim, o Superfund, que atualmente recebe em média US$ 1,5 bilhão por ano.
Com tanta riqueza, e objetivos tão nobres, o Superfund — ainda bem — lançou uma moda que foi adotada por diversos países, inclusive o Brasil. Por aqui, a criação desse fundo coube à Lei nº 7.797, de 10/07/89, que criou o FNMA – Fundo Nacional de Meio Ambiente, ao qual se destinam, além de verbas de convênios nacionais e internacionais, 10% de todas as multas por crimes e infrações ambientais arrecadadas pelo Ibama (valor que em 2004 foi de aproximadamente R$ 15 milhões, no total). O FNMA, hoje, conta com um patrimônio líquido de cerca de R$ 2,75 milhões. Como não poderia deixar de ser, e considerando-se que no Brasil a proteção do meio ambiente cabe tanto à União quanto aos Estados e Municípios, estes dois últimos também criaram seus próprios fundos.
No estado do Rio, esse fundo se chama FECAM – Fundo Estadual de Conservação Ambiental, autorizado pela Lei Estadual 1.060 de 10/11/86 e criado pelo Decreto 10.973, de 09/02/88, com a missão de financiar a Política Estadual de Controle Ambiental.
Seus recursos provêm, principalmente, de royalties e participações especiais derivados da exploração de petróleo e gás natural (até 1996, o fundo recebia 20% dessas receitas; desde então, por força de lei, esse percentual caiu para 5%), de multas aplicadas pelos órgãos ambientais estaduais e de condenações pecuniárias em ações civis públicas ambientais.
Desde a sua criação, o FECAM, bem ou mal, vinha tendo suas normas cumpridas pelos sucessivos administradores do Estado.
Virada de mesa
Em 2004, a 1ª Promotoria de Meio Ambiente do Rio de Janeiro concluiu uma investigação feita com base em uma denúncia de que estaria havendo o desvio dos recursos do FECAM que, por lei, deveriam ser aplicados em projetos de recuperação ambiental.
A conclusão foi assustadora: tanto a investigação quanto o Tribunal de Contas do Estado (TCE) constataram que R$ 841.756.178,88 dos recursos devidos ao FECAM, desde 1995 até julho de 2003 — período apurado pela investigação — haviam sofrido desvio de finalidade, não sendo aplicados em projetos de recuperação ambiental, aprovados pelo Conselho Superior do FECAM.
O desvio ocorre na falta de repasse do percentual dos royalties do petróleo a projetos de recuperação ambiental já aprovados pelo Conselho do FECAM. Ou seja: por ano, o Governo do Estado tem desviado cerca de R$ 100 milhões de projetos ambientais, para alocá-los sabe-se lá onde. Se essa média foi mantida até os dias de hoje, são mais de RS 1 bilhão roubados da natureza para fazer fechar contas que, em realidade, não fecham (uma das razões pelas quais o TCE, em 2003, rejeitou a prestação de contas do Governo do Estado).
Com base nessas constatações, o Ministério Público do Rio de Janeiro propôs, em 2004, uma ação civil pública com duplo objetivo: condenar o Estado do Rio a repassar ao FECAM os recursos devidos, aplicando-os exclusivamente na execução de projetos ambientais aprovados pelo Conselho Superior do FECAM e, nos próximos exercícios financeiros, a aplicar efetivamente o percentual mínimo dos recursos vindouros dos royalties , como exigido pela Constituição Estadual, em projetos ambientais aprovados pelo Conselho Superior do FECAM.
Ao responder a ação, curiosamente, o Estado do Rio não negou o desvio das verbas. Ao invés disso, simplesmente alegou que a lei que criou o FECAM seria inconstitucional por um suposto vício formal e que, portanto, ele não estaria obrigado a destinar aquelas verbas a projetos ambientais.
Sentença furada
Em fevereiro deste ano, a ação foi julgada improcedente em primeira instância, em uma sentença da 3ª Vara de Fazenda Pública que, no mínimo, deixa a desejar.
A decisão tem apenas dois fundamentos: o de que o FECAM seria um fundo meramente contábil (ou seja, seus recursos ingressam na conta genérica do Governo e não em conta própria), sem previsão na Constituição Federal sobre a obrigatoriedade de se aplicar percentual dos royalties do petróleo em projetos ambientais aprovados pelo fundo, e que a lei estadual que autorizou a criação o FECAM seria formalmente inconstitucional, por vício de iniciativa no processo legislativo. Alega o Estado que um ato de iniciativa do Legislativo não poderia criar despesas para o Executivo, esquecendo-se de que o FECAM, na verdade, foi criado por um decreto do Governador do Estado — a Lei 1.060 apenas autorizou a sua criação — e de que ele não cria qualquer despesa nova, apenas determina a destinação para as verbas.
A sentença não menciona — como se não existisse — a obrigação criada pela Constituição do Estado do Rio de Janeiro, em seu art. 263, § 1º, I, de repassar para o FECAM 5% dos royalties provenientes da exploração de petróleo e gás. Aliás, afirma, expressamente, que “como bem observado pelo réu, no caso do FECAM não há exigência constitucional (ou mesmo apenas legal) de aplicação mínima de recursos na área ambiental”. Eis aí um engano grave. O mencionado dispositivo diz, literalmente, que:
Art. 263 – Fica autorizada a criação, na forma da lei, do Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano – FECAM, destinado à implementação de programas e projetos de recuperação e preservação do meio ambiente, bem como de desenvolvimento urbano, vedada sua utilização para pagamento de pessoal da administração pública direta e indireta ou de despesas de custeio diversas de sua finalidade.
§ 1º – Constituirão recursos para o fundo de que trata o caput deste artigo, entre outros:
I – 5% (cinco por cento) da compensação financeira a que se refere o art. 20, § 1º, da Constituição da República e a que faz jus o Estado do Rio de Janeiro.”
O fim do FECAM
“A sentença, na prática, extingue o FECAM, colocando o Estado do Rio na vanguarda do atraso nacional e nos fazendo retornar aos primórdios do Direito Ambiental, na década de setenta, quando proteção ao meio ambiente era assunto exótico e sem amparo na legislação”, diz o promotor Carlos Frederico Saturnino, da 1ª Promotoria de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro. “É preciso que a sociedade se mobilize para impedir isso”, afirma.
Ainda segundo ele, a relevância do FECAM pode ser medida pela lista de projetos de recuperação ambiental que ele deveria financiar, mas que estão atrasados ou paralisados, em razão do desvio dos recursos para outras finalidades. Apenas para citar alguns, temos visto atrasos no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, na construção do Emissário e Estação de Tratamento de Esgoto da Barra da Tijuca, na revitalização da Lagoa Rodrigo de Freitas e na despoluição das praias cariocas.
Também aguardando a liberação de verbas do FECAM, há alguns enormes passivos ambientais, deixados por empresas privadas em situação falimentar, cuja recuperação deveria ser financiada pelo FECAM de forma emergencial (sem prejuízo da responsabilização civil e criminal de quem deu causa aos danos). É o caso, por exemplo, da lagoa de resíduos tóxicos da Ingá Mercantil, uma das maiores catástrofes ambientais iminentes do Estado, lembra o Promotor.
O MP já recorreu da decisão de 1ª instância. Torçamos para que a tarefa de julgar esse recurso caia nas mãos de gente esclarecida e não sujeita a pressões políticas. Caso contrário, vai ficar cada vez mais difícil tirar o Rio de Janeiro da masmorra ambiental em que ele vem sendo mantido pelo seu próprio governo.
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