A mariquita-de-perna-clara ou Blackpoll Warbler Setophaga striata é uma entre várias espécies de warblers norte-americanos da família Parulidae, um grupo que também ocorre na América do Sul, onde pia-cobras (Geothlypis spp.) e pula-pulas (Basileuterus spp.) são espécies comuns nas florestas e capoeiras de quase todo o Brasil.
As Blackpolls (perdão, mas o nome “inventado” para essa espécie no Brasil perde para o nome pelo qual todos a chamam na América do Norte) nidificam nas florestas boreais dominadas por pinheiros, abetos e ciprestes entre o Alasca, a maior parte do Canadá, a região dos Grandes Lagos e a Nova Inglaterra, no nordeste dos Estados Unidos. São aves pequenas, com um comprimento de 12,5 a 15 cm, 20 a 25 cm de envergadura e peso entre 9,7 e 21 g, uma ave média pesando 12 a 15 g. Estas estatísticas são importantes para compreender a proeza que estes gigantes realizam a cada ano.
As warblers norte-americanas, muitas com cores que rivalizam com aves tropicais, são um grupo heterogêneo de pequenas aves insetívoras que nidificam nos habitats temperados e boreais daquele continente, mas migram para as latitudes mais amenas da América Central e América do Sul durante o inverno boreal. Quem visita países como o México e a Costa Rica entre outubro e abril pode observar uma porcentagem considerável da avifauna norte-americana entre as espécies nativas residentes.
Dentro deste multicolorido grupo de turistas gringos, as Blackpolls destacam-se por realizar a mais longa migração feita por qualquer pássaro norte-americano, uma viagem que, entre ida e volta, cobre entre 17 e 19 mil quilômetros.
Pense agora. Você pesa o mesmo que uma caneta. Suas asas abertas equivalem a uma folha de papel A4. E você tem que cobrir uma distância equivalente a quase 6 vezes aquela entre Boa Vista e São Paulo. Isso já seria incrível, mas como as Blackpolls realizam sua migração é mais interessante ainda.
Em agosto, com o fim da temporada reprodutiva, as Blackpolls deixam o oeste do Alasca e voam para leste através do Canadá rumo à costa das Províncias Marítimas daquele país e à Nova Inglaterra. Ali, às margens do Atlântico, esses passarinhos decolam rumo ao sul voando sobre o oceano, batendo suas asas 20 vezes por segundo, cada vez mais distantes da terra firme.
Voando a cerca de 43 km por hora, mais ou menos na altura da ilha de Bermuda, os ventos dominantes gradualmente empurram os passarinhos para oeste e os levam em direção à América do Sul. Após uma viagem sem paradas de 3.000 km sobre o mar que pode levar de 72 a 88 horas, as Blackpolls chegam à costa norte da América do Sul, entre as Guianas e a Venezuela.
E dali continuam para sua área de invernada na Amazônia ocidental, embora alguns entusiasmados cheguem à Mata Atlântica do Rio de Janeiro e São Paulo e mesmo mais ao sul. Você pode ver um mapa mostrando a rota migratória das Blackpolls aqui.
Para realizar esta façanha as Blackpolls engordam o máximo possível, chegando ao peso máximo de 20 g antes de iniciarem sua travessia marítima. Durante o voo, os warblers perdem 4 ou mais gramas de peso, calorias queimadas mantendo-as vivas e longe da água. Não é surpresa que aves que não conseguem atingir o peso ideal, por exemplo, devido ao colapso das populações de lagartas e insetos de que se alimentam, simplesmente morrem no caminho.
O estudo das rotas migratórias de aves tem sido tradicionalmente realizado através do anilhamento, marcando aves e recapturando-as ao longo das rotas migratórias, da observação direta em áreas de parada e alimentação (no litoral do Brasil, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul, é um exemplo) e observações com radar (um subproduto da tecnologia de defesa aérea).
Mais recentemente foi desenvolvido o geolocalizador, um gadget minúsculo que pode ser fixado mesmo às aves mais pequenas e que, com base em cálculos que relacionam a duração do dia com a data e hora, conseguem registrar as coordenadas de onde a ave passou com precisão suficiente para produzir um mapa da rota percorrida.
O uso de geolocalizadores já produziu surpresas, como a migração radical entre o Ártico e o Saara realizada pelo Northern Wheatear (Oenanthe oenanthe), outro passarinho do hemisfério norte, e a descoberta de que três aves migratórias nunca documentadas em território brasileiro na verdade ocorrem regularmente por aqui. Uma destas espécies é o American Black Swift (Cypseloides niger), um andorinhão do oeste norte-americano que migra para a Amazônia.
As outras são duas aves marinhas, a freira-de-bugio Pterodroma deserta e a freira-da-madeira Pterodroma madeira, ambas nidificando em ilhas do arquipélago português da Madeira, no Atlântico Norte.
Espécies ameaçadas com populações de poucas centenas de adultos (120-150 casais de P. deserta e apenas 65-80 no caso da P. madeira), os pesquisadores foram surpreendidos quando descarregaram os dados dos geolocalizadores e descobriram que essas aves não só realizam uma longa migração para o Atlântico Sul como utilizam extensamente águas brasileiras onde a poluição por petróleo e a sobrepesca (estas aves dependem parcialmente de presas trazidas à superfície por atuns e outros peixes predadores) são ameaças reais.
Isso me lembra de como, durante minhas últimas férias, minha tentativa de observar Aquatic Warblers (Acrocephalus paludicola) na Hungria foi frustrada pela extinção da população daquele país devido a alterações no habitat ao longo do rio Niger, na África ocidental, sua principal área de invernada. Aves migratórias mostram como o mundo natural sempre foi globalizado e o que se faz em um local pode causar impactos em áreas muito distantes.
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