Neste mês, duas conquistas ambientais fazem aniversário. Na lista está a quase cinquentona Lei de Proteção à Fauna de 1967, responsável pela proibição da caça no Brasil. O regime foi quebrado pela novíssima liberação da caça em todo o território nacional, que está prestes a fazer seu primeiro aniversário. O momento de comemoração se tornou uma oportunidade de avaliação das lacunas deixadas depois de quase meio século sem caça. A implementação desta história foi acompanhada de perto em Santa Catarina, onde ocorre a mais longa experiência de regulamentação desta atividade no país, não muito diferente da novidade ambiental federal. O tempo perdido expõe nossas deficiências em gestão de fauna com implicações relevantes para o futuro da conservação da natureza no país.
Depois de quase meio século de proibição, a Instrução Normativa (IN) nº 03 de 31 de janeiro de 2013 regulamentou a caça para controle de uma espécie exótica em todo o território nacional. A caça agora envolve caçadores registrados no nosso principal órgão de gestão de fauna, o IBAMA, responsável pela medida. Regulamentações regionais semelhantes existiam anteriormente, mas não com tamanha abrangência. A novidade passa para a sociedade a responsabilidade do manejo de fauna, antes exclusiva do estado por falta de regulamentação desde 1967.
A nova regra está carregada de grande responsabilidade e expectativa. Ela também substitui a IN nº 8 de 2010, considerada “uma das mais contraditórias e absurdas jamais escritas sobre o tema” segundo Maria Tereza Pádua (O Eco em 02/12/2010). Além de regulamentar a caça, o IBAMA agora se comprometeu em criar e gerir um sistema on-line da atividade, com autorizações e recebimento de relatórios, como um órgão típico de gestão de fauna. Só assim será possível avaliar se a medida funcionou ou se precisa parar, continuar ou melhorar.
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A sociedade logo entendeu como liberação da caça, mas vale ressaltar que não foi bem assim. Para tornar a medida legal, em nenhum momento foi escrito “caça”. No rigor jurídico é comum usar a palavra caça quando se quer proibir e abate ou controle quando se quer regulamentar. A mesma estratégia também foi usada em todas as medidas semelhantes emitidas por órgãos estaduais para o mesmo fim. Portanto, todas as regulamentações regionais anteriores, incluindo a de Santa Catarina, sofrem do mesmo problema, embora a sociedade, jornais e reportagens Brasil a fora divulguem o sentido real. Aqui também se usa a palavra caça no bom português para aquela atividade que envolve métodos de perseguição, captura, apanha ou lançamento de projéteis (e.g. por arma de fogo) para ter acesso a animais de vida livre.
Todo este esforço de jurisdiquês foi para liberar a caça do javali, o porco selvagem de mais de 100 kg das histórias do Asterix e Obelix. |
Todo este esforço de jurisdiquês foi para liberar a caça do javali, o porco selvagem de mais de 100 kg das histórias do Asterix e Obelix. Grandes varas deste bicho exótico destroem com facilidade lavouras anuais, como milho.
Em pouco menos de 10 anos, foi espalhado javali em boa parte da Mata Atlântica e Cerrado, cerca de 10% dos municípios em pelo menos 8 estados brasileiros. De repente, tivemos uma fantástica explosão de porcos nas florestas e áreas rurais do país.
Pouquíssimo tempo para uma expansão geográfica de uma espécie de grande porte, mas um longo período de espera para os atingidos pela invasão. Outros estados nem esperaram a medida do IBAMA, que só veio em 2013. A liberação de caça em Santa Catarina ocorreu em 2007 e é hoje a mais longa experiência contínua entre todas as vigentes, como no Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. Uma baita dor de cabeça para agricultores e agora também para administradores de fauna que precisam fazer a gestão da caça e caçadores.
Gestão de fauna
A discussão produtiva por detrás desta história é a gestão de fauna, onde a caça é um pacote completo. O manejo de animais selvagens com métodos de caça existe em qualquer lugar do planeta onde tem bicho grande e agricultura. Caçador e arma de fogo são elementos chaves e inerentes neste processo. A gestão de tudo isso passa a ser essencial quando há interesse em mediar o conflito da melhor forma possível. Esta é a gestão de fauna, uma área muito desenvolvida da conservação da natureza nos país com legislação ambiental atuante. Afinal, animais deste porte geram conflito, mas também são os mais populares que queremos conservar, como onça, veados, porcos do mato, capivara etc.
Sem caçador não há manejo de javali nem de outro bicho grande por uma simples questão de método e perfil pessoal. Não existe outra forma justa de retirar indivíduos desta espécie da natureza, vivos ou mortos, sem técnicas de caça, como captura com armadilhas grandes e pesadas, perseguição com cachorros e abate à distância com arma de grande calibre. Isso tudo não exige apenas equipamento, mas também experiência, tempo livre, gasto elevado, autorização para transporte de arma e uma enorme motivação pessoal. Nenhum estado tem condições de assumir tal demanda sozinho e investem na gestão compartilha de fauna com a sociedade através da caça regulamentada.
O personagem mais motivado desta história é sem dúvida o Obelix. O prato predileto dele é o javali que aparece em todas as histórias, vivo e/ou assado. O guloso gaulês é um exímio caçador e deveria ser o público-alvo de todas as regulamentações de controle da espécie no Brasil. Somente este tipo de pessoa consegue retirar indivíduos da população em quantidade e frequência satisfatória para podermos começar a chamar de manejo de fauna.
Somente este tipo de pessoa consegue retirar indivíduos da população em quantidade e frequência satisfatória para podermos começar a chamar de manejo de fauna.
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Personagens como Obelix não estão só nos gibis. Eles existem e são registrados de maneira oficial no Brasil como Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CAC) pelo Exército, que exige uma burocracia épica para este título, autorizações de transporte de arma e compra de munição.
O problema é que o Exército assim como a sociedade não entendeu muito bem esta história de abate e controle ao invés de caça. As regras foram seguidas à risca para emitir as devidas autorizações com diversos empecilhos, pelo menos, em Santa Catarina. Afinal, se não existe caça no Brasil desde 67, também não tem caçador nem área de caça para justificar transporte de arma.
No entanto, o principal personagem da história espera solução. O proprietário rural, com todo seu poder de pressão política, parece o astuto e respeitado Asterix. Ele é o maior parceiro de aventuras do Obelix, embora um tampinha ao lado do gigante comedor de javali.
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Em algum lugar, o caçador vai ter que caçar e quem abre a porteira é o dono. Lembrem que nem sempre o dono é caçador ou mora no local da caçada e que nem todo CAC é proprietário rural. Portanto, o transporte de arma é inevitável e a parceria tem que ser bem estabelecida, porque ninguém quer desconhecidos armados ilegais transitando em suas terras. Caçador e proprietário rural também são uma dupla inseparável que as novas regras deveriam fortalecer.
Tudo bem que isso pode ser superado com a grande motivação do interesse mútuo. De um lado, o proprietário querendo reduzir os prejuízos nas lavouras e, do outro, o caçador que não precisa nada mais que um simples convite – ele enfrentaria até o Exército para isso. No entanto, isso não acontece com facilidade. Falta caçador confiável e nem todo proprietário tem a mesma disposição para fazer a história acontecer.
Silvicultores e pecuaristas são exemplos de personagens menos motivados, já que o javali quase não afeta suas atividades econômicas. A adesão à IN como medida de controle de javali depende da aptidão agrícola da região. Numa das regiões de estudo do Projeto Javali em Santa Catarina, onde a silvicultura é dominante, a parceria entre os protagonistas principais desta história não funcionou tão bem como nos quadrinhos e não teve caça nestas áreas. Entre meia dúzia de proprietários que tinha um Obelix regulamentado para ajudar, existiam dezenas de outras propriedades em volta que a IN não conseguiu alcançar, mesmo com ocorrência de javali.
Tamanho é documento
Importante perceber que o tamanho dos parceiros faz diferença, ao contrário da dupla gaulesa.
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Importante perceber que o tamanho dos parceiros faz diferença, ao contrário da dupla gaulesa. No Brasil, existem pequenos proprietários rurais, mas também latifundiários com milhares de hectares. Dependendo do caso, seria preciso um Obelix ou um batalhão deles para resolver o problema.
A questão fundiária atinge as Unidades de Conservação (UC). Elas funcionam como latifúndios, mas com imposições legais ainda mais restritas para a entrada de caçadores. Numa de nossas regiões de estudo, mais de 70% pertencia a duas empresas de reflorestamento e a um Parque Nacional. Nestes latifúndios não houve caça de javali pela regra catarinense nem com o reforço da nova regulamentação federal. Pelo contrário, as empresas, com todo direito, coibiram a caça dentro das suas propriedades, e o gestor da UC mal viu um javali por falta de condições para manejar sozinho um latifúndio.
Só os proprietários rurais tiveram algum êxito. Alguns tiveram tanto sucesso, com mais de 10 javalis caçados/km²/ano, que desbancaram os tradicionais países Europeus. Na Alemanha, do tamanho do Mato Grosso do Sul, os 350 mil caçadores registrados caçam mais de meio milhão de javalis anuais, mas dá uma média de dois por ano para cada Obelix experiente. Ou os brasileiros se tornaram excelentes caçadores de uma hora para outra ou temos uma abundância extraordinária de porcos em plena Mata Atlântica do século 21. No entanto, não se iluda. As propriedades com estes índices são pequenas e vizinhas dos latifúndios.
De nada adianta controlar javali numa propriedade se o vizinho também não o fizer. Nosso Asterix rural teria que caçar para sempre, pois o estoque populacional está do outro lado da cerca. Também não há cercado que segure o bicho, nem IN que forneça acesso a toda a população. Parece que essa barreira só pode ser vencida com uma legislação que favoreça a relação proprietário rural e caçador.
Depois que decidimos regulamentar a caça, ainda precisaremos em algum momento saber da situação e novas metas, como prega o figurino de qualquer gestão de fauna. O simbólico aniversário de um ano da IN talvez traga novidades. Contudo, até agora nenhum relatório transparente foi apresentado, nem mesmo em Santa Catarina com cinco anos adiantados em relação à IN federal. Se o javali desaparecer nestas condições, será um importante indício de que temos muito a fazer para administrar nossa fauna. As espécies vão desaparecendo sem deixar registro, seja exótica ou nativa.
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Certo mesmo é o trabalhão que o IBAMA terá para compilar todas as fichas de caça, pois o prometido sistema on line ainda não está funcionando e a papelada se acumula nas unidades regionais do órgão. Em Santa Catarina, estas fichas se acumulavam nas secretarias municipais de agricultura, que depois passou para a policia militar. Tudo indica que só mudou de endereço. Os dados apresentados aqui só foram possíveis com esforço de campo próprio e independente.
Apesar das limitações, a nova IN do IBAMA foi muito corajosa e supriu parte das demandas da sociedade. Foi possível perceber que influenciou, por exemplo, os métodos de caça, muito melhores do que as atrocidades dos caçadores clandestinos. Não dá para negar que os órgãos governamentais deram um grande passo, mas parece que não vão muito mais longe. Já devem estar no limite de atuação dentro da Lei e talvez seja hora do Legislativo entrar na história. Como alertou Maria Tereza Pádua, a falta de decisão pode acabar em pressão por novas Leis mais permissivas. O novo Código Florestal tem história parecida com os mesmos personagens astutos.
A existência de Asterixes e Obelixes tentando caçar javalis no oeste catarinense parece realmente ter saído das histórias em quadrinhos repletas de estereótipos e alusões, característica da obra de Goscinny e Uderzo. A Gália continua resistindo à invasão, mas não de javali. Pelo contrário, eles convivem muito bem até os dias atuais, mesmo com caça de verdade. A resistência é com os romanos, com suas leis da longínqua Roma, nada ajustada a realidade local. Segundo os gauleses, esses romanos são uns loucos. Já o javali diz o mesmo para ambos.
*Editado às 14h40 do dia 01/02/2014.
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A diferença é que o javali é nativo na França, e não tinha ibama, nem exercito pra controlar nossa poção magica, que são as armas de caça. E a caça existiu muito depois de 1967, inclusive naquela lei existe a regulação a ser expedida anualmente da cotas e especies caçadas.
E sim, devia-se abrir para o abate de algumas especies nativas que sem controle estão virando praga em alguns lugares, apesar de raras em outras.