Quando chove forte no Rio de Janeiro o maior passivo ambiental do estado reaparece nas águas da Baía de Sepetiba em forma de zinco, cádmio, chumbo e outros metais pesados.
Um temporal no dia 27 de janeiro arrastou 15 milhões de litros de água contaminada para o ecossistema. A fonte do problema surgiu em 1969, com a instalação da empresa Ingá Mercantil a 800 metros do mar, em região de mangue, para extração de zinco a partir de calamina. Um processo que exige química e gera resíduos tóxicos. Com o passar dos anos, esses rejeitos foram sendo empilhados ao lado dos galpões da Ingá e, em 1998, quando a empresa faliu, foram abandonados a céu aberto em meio a uma bacia de contenção sem ter um destino final traçado pela massa falida ou pelo poder público.
A pilha é composta de 3 milhões de toneladas de rejeitos metalúrgicos classificados como Classe 1: altamente perigosos. Ali tem óxido de ferro (responsável pela cor avermelhada do morro), zinco, cádmio, magnésio, chumbo, arsênio e outras substâncias nocivas à natureza e à saúde humana. Cerca de 20% desses sais são solúveis em água e, sob chuva, escorrem para dentro da lagoa de contenção que, apesar de ter capacidade para 250 milhões de litros, transborda e tem pontos de vazamento. Ao ultrapassar a barragem construída sob o solo mole, a água contaminada atinge mangues, canais e encontra caminho para o Saco de Engenho – vizinho ao porto de Sepetiba – e para a baía.
“Há muito zinco e cádmio sendo levados pelas águas, contaminando o solo e o sub-solo”, confirma João Alfredo Medeiros, professor do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Projeto Emergencial Ingá, criado em 2003 a pedido da Justiça Federal. Segundo ele, cada centímetro de chuva na área forma 3 milhões de litros de novos efluentes. E, de acordo com regime de chuvas, 20 a 80 toneladas de sulfato de zinco escorrem, mensalmente, para o Saco de Engenho e a baía de Sepetiba pelo lado da pilha de rejeitos que não está cercado de água. Medeiros afirma que devido à falta de recursos, a recuperação das águas contaminadas teve que ser interrompida em dezembro, depois de dois anos de trabalho. Hoje elas vazam para o meio ambiente sem tratamento.”Não conseguimos evitar nem o transbordamento, o que evitamos é a ruptura da barragem.”
Barreira natural
Por obra da natureza, o mangue localizado entre a lagoa de contenção e o Saco de Engenho passou a formar uma barreira natural contra os metais pesados. Bactérias têm extraído oxigênio dos sulfatos de zinco e cádmio, altamente solúveis em água, e transformado os mesmo em sulfetos, que têm uma solubilidade menor. Esse processo evita que as substâncias cheguem ao mar ou ao Saco de Engenho.
Ainda assim, estudos apontam um nível alto de metais pesados no solo argiloso da Baía de Sepetiba. Eles repousam no fundo e entram na cadeia alimentar através de plantas que são devoradas por peixes e crustáceos e que, por fim, terminam na panela. Segundo Francisco Gerson Araujo, especialista em ecologia de peixes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a concentração de metais nos tecidos dos animais é aceitável para consumo humano, mas a quantidade de espécies na baía diminuiu.
Ele ressalta, contudo, que a culpa não recai apenas sobre a Ingá, mas em todo complexo industrial instalado às margens da baía e na ocupação desordenada de seus mangues, que servem, ou serviam, como berçário para as espécies.
Os mangues ficam localizados bem no interior da Baía de Sepetiba, onde correntes de água salobra depositam os sedimentos levados por rios para dentro do espelho d’água. Como a baía é bem protegida do mar pela restinga de Marambaia, as correntes correm em círculo, diminuindo as chances do sedimento contaminado deixar o local. Estudos feitos por Gerson mostram que na década de 80 a parte do meio da baía era mais parecida com a parte mais próxima do mar, portanto, mais limpa. Hoje ela se assemelha à parte interna, mais poluída.
Soluções
Enquanto a Baía de Sepetiba é atolada por poluição, a bomba-relógio imposta ao meio ambiente pelos rejeitos da Ingá continua exposta a sol e chuva. O caso já envolveu Ministério Público, sociedade civil e governos em escala municipal, estadual e federal, mas a solução continua no plano teórico.
Uma das sugestões mais conhecidas foi apresentada por Medeiros e batizada de Projeto Ingá Rejeito Zero. Pesquisadores da UFRJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF) propuseram a reciclagem química dos efluentes e rejeitos. Em uma nova unidade industrial instalada na área – já que não é possível aproveitar a da Ingá devido ao nível de sucateamento-, os rejeitos e efluentes seriam submetidos a um tratamento químico para extração de substâncias com valor de mercado. O resíduo final gerado não representaria nenhum perigo ao meio ambiente e ainda poderia ser utilizado na fabricação de cerâmica. O projeto custaria 20 milhões de reais e levaria 3 anos para consumir a pilha tóxica. “O projeto gera receita dos produtos de zinco e dos outros metais, bem superior ao investimento e às despesas”, garante Medeiros.
O projeto foi apresentado em julho de 2004, mas uma comissão criada pelo Ministério do Meio Ambiente e composta pelo Ibama e representantes do estado do Rio de Janeiro e de Itaguaí, município onde a Ingá está localizada, não consideraram a alternativa boa e decidiram analisar outras.
Segundo Rogério Rocco, que assumiu há três meses a gerência-executiva do Ibama do Rio, uma proposta bem cotada é transferir toda a pilha de rejeitos para dentro de um buraco aberto pela Mineradora Sepetiba num morro colado à Ingá, a menos de cem metros dos rejeitos. Segundo Ivan Carvalho, gerente da mineradora, a solução é possível, mas avisa que a pedreira ainda tem 25 anos de vida útil. Nesse caso, seria necessário indenizar a empresa, o que pode sair muito caro. Para o professor Medeiros a solução é inviável devido ao número de carretas necessárias para remover toda a pilha. Pelos seus cálculos, seriam necessárias 100 mil delas.
Outras alternativas para solucionar ou pelo menos diminuir os riscos ambientais oferecidos pela pilha tóxica surgiram nos laboratórios da UFRRJ sob a coordenação do professor Nelson Amaral Sobrinho, especialista em descontaminação de solos. A mestranda Rosiane Sales Pinheiro descobriu que é possível neutralizar a capacidade poluidora dos rejeitos ao misturá-los com o lodo extraído da cervejaria Kaiser (próxima a Ingá) e resíduos industriais alcalinos. A mistura reduz a solubilidade do cádmio e do zinco. Se o tratamento for feito com um nível de pH elevado é possível rebaixar os rejeitos da Classe I (perigosos) para a Classe III (inerte). Já a doutoranda Waleska Silva usou o pH para encontrar formas de aumentar a retenção de arsênio nos rejeitos e torná-lo menos disponível. O arsênio é um elemento extremamente tóxico que era utilizado pela Ingá na finalização do processo de extração de zinco a partir da calamina.
Outros perigos
A pilha de 3 milhões de toneladas de rejeitos é apenas um dos perigos ambientais oferecidos pela Ingá. Ao lado do morro vermelho há um preto, bem menor, contendo chumbo, arsênio e cádmio em dosagem muito mais tóxica do que a do montante vizinho. Esse material corresponde aos dejetos mais nocivos fabricados pela Ingá, que permaneceram enterrados até 2002, quando foram removidos e colocados ao lado da outra pilha de rejeitos. Um ano depois, ao trabalhar na área onde os dejetos estavam enterrados, um funcionário da Companhia de Desenvolvimento Urbano de Itaguaí teve sangramento pelo nariz e pela garganta – efeito associado à alta presença de arsênio.Dentro do galpão destelhado da Ingá há ainda galões fechados da substância.
Enquanto a Justiça, a massa falida e os governantes não conseguem decidir o que fazer com o passivo ambiental da Ingá, ele continua lá, empilhado e quase sempre esquecido, à mercê das chuvas de verão. Em 2003, a justiça condenou a União, o estado fluminense e o município de Itaguaí por omissão ambiental e exigiu que executassem um projeto emergencial para evitar um desastre. A decisão não inverteu a situação, que continua a se agravar a cada dia.
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