Colunas

Um caminho para a crise

Cheia de gente em busca de programa barato, uma picada na Patagônia argentina prova que parque nacional além de tudo é remédio para os males da economia.

28 de janeiro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A península de Quetrihué, no parque nacional de Nahuel Huapi, é o lugar de praxe para desenferrujar as pernas em San Carlos de Bariloche, antes de pôr os pés nas trilhas que levam, montanha acima, para dentro dos Andes. São 12 quilômetros até a ponta do ancoradouro, onde atracam os barcos que trazem os turistas à floresta de Arrayanes. E 12 de volta até o carro estacionado em Villa La Angostura.

Os quilômetros de ladeiras partem do lago e acabam à beira d’água. Mas sobem e descem à sombra de coihues centenários, entre amamcays amarelas, mutisias alaranjadas e o colorido anônimo das flores rasteiras. É espetacular. Mas até poucos anos atrás ainda dava para fazer Quetrihué em plena temporada de férias, gastando no trajeto meia dúzia de olás. Mal se via outra pessoa num dia inteiro de caminhada, por mais que os hotéis da região estivessem lotados.

Era como se houvesse dois lugares chamados Bariloche. O dos ônibus. E o das mochilas. Cruzar, num ponto de intercessão inevitável, com os grupos de excursão organizada era vantagem extra para a turma da caminhada. Quanto mais suja a bota e mais suada a camisa, maior o sentimento de superioridade para quem acaba de ver, naqueles 705 mil hectares de lagos azuis, rios verdes e picos brancos, coisas que janela de ônibus não enxergava.

Esse tempo passou. Quetrihué está fervilhando neste verão. Transitam pela picada grupos de bicicleta, mulheres de sandálias Havaianas, crianças descem do colo para aprender a andar chutando a poeira do chão, famílias que empurram carrinho de bebê, meninas de biquini prontas para pular no lago gelado e casais carregando, em sacos de supermercado, as compras do piquenique.

O preço ajuda. Ali, os 12 pesos da entrada compram um dia cheio. Mas Quetrihué já foi de graça e nem por isso enchia como agora. Sinal de outras mudanças, que tornaram a Argentina barata para o resto do mundo e o resto do mundo caro demais para os argentinos. O turismo interno e o intercontinental desembocaram juntos na Patagônia andina, onde antes ficava o fim do mundo.

Mas é também a prova de que a natureza intacta entrou na moda. Atrás delas, cerca de 700 mil turistas passam em Bariloche todo ano. Os refúgios de alta montanha do Club Andino, concebidos nos anos 50 para servir de base a escaladores, têm agora a maioria de seus beliches tomada por hóspedes que chegam a pé para dar uma olhada mais íntima na paisagem. E, fora dos meses mais chuvosos no outono, não há mais uma estação no parque que se possa propriamente chamar de baixa. O inverno emenda no verão passando pela primavera.

As cidades da região, com isso, estão crescendo. Ou pior, inchando mais depressa do que deveriam. Bariloche já bateu na porta dos 100 mil habitantes. Cheia de galerias e “paseos” comerciais, Villa La Angostura, do outro lado do Nahuel Huapi, não é mais o posto de fronteira que conseguiu ser até a virada dos anos 90. O crescimento acelerado é o resultado paradoxal das crises econômicas que sacudiram a Argentina nas últimas décadas. A classe média largou em Buenos Aires seus diplomas universitários para guiar táxi em Bariloche. O parque inchou.

O Nahuel Huapi vai bem, obrigado. Ao contrário das cidades serranas que no estado do Rio de Janeiro se renderam à feiúra terminal, na orla do grande lago argentino até as marcas da decadência têm sinais de civilidade. A favela de tábuas que nasceu nos anos 80 junto ao lixão de Bariloche tem, duas décadas depois, casas com telhados pontiagudos e janelas com floreiras, vagamente inspirados nos cânones do estilo andino que o arquiteto Alejandro Bustillo instituiu, no começo do século XX, para uma Argentina movida a prosperidade.

Talvez não haja no mundo melhor exemplo do que um parque nacional pode fazer por um país, mesmo nas horas de aperto – ou de Angostura. A região foi povoada há pouco mais de um século por estanceiros, agricultores e comerciantes – em suma, pioneiros de uma colônia agríola que tratavam suas montanhas como obstáculos, suas águas cristalinas como recursos hidráulicos e suas florestas de faias centenárias como incentivo à carpintaria. Mas acabou escapando da degradação graças a forasteiros providenciais.

Chegou lá na hora certa o naturalista Francisco Moreno, que deu à Argentina o empurrão para criar no Nahuel Huapi um parque nacional 15 anos antes que o Brasil resolvesse finalmente decretar sua primeira reserva em Itatiaia. Moreno foi o perito da comissão que demarcou nos Andes a fronteira com o Chile, em longas expedições que o faziam comer cru o fígado das éguas de carga, mas o converteram num devoto exaltado da natureza patagônica. Numa época em que o governo doava a colonizadores lotes de 200 mil hectares, Moreno devolveu ao país o pedaço que lhe coube no Nahuel Huapi, com a condição de que se transformasse em reserva.

Era o parque nacional del Sur, plantado no fiorde de Blest em 1922. O resto do lago continuaria entregue a serrarias e estâncias até meados da década de 30, quando se incorporou à herança de Moreno como parque de Nahuel Huapi. Só aí a região passou a ser, de pleno direito, um tesouro nacional em estado bruto, destino de imigrantes como Otto Meiling, o operário alemão que deu nome a seus picos nevados e aclimatou o esqui aos Andes.

Meiling explorou Bariloche – e cortou a própria lenha, posando como ancião barbudo para magníficos retratos – até passar dos 80 anos. Legou à posteridade uma tradição chamada “andinismo”, que é o alpinismo europeu feito nos Andes. O chalé de madeira onde morou é hoje o refúgio Berghof, do Club Andino. Ele serviu de modelo para as levas de refugiados que, depois da Segunda Guerra, tomaram de uma vez por todas aquelas montanhas das mãos dos agricultores e pecuaristas.

Quem percorre Quetrihué atualmente ainda costeia os troncos maciços que cercavam a estância Lynch. Seu gado pastava entre arrayanes, árvores tão preciosas que elevaram a parque nacional, dentro do outro parque nacional, aquele bosque de mil hectares na ponta da península. Os mourões dos Lynch merecem ficar de pé como monumento involuntário à imprevidência humana. Eles recordam que, de tudo o que já se pensou fazer com o lago Nahuel Huapi, o projeto que deu certo foi ao mesmo tempo o mais natural e o mais tardio: deixá-lo como está, para um dia levar os argentinos na travessia das crises econômicas.

Leia também

Salada Verde
24 de maio de 2024

Comissão da Câmara aprova projeto que aumenta pena para crime ambiental na Amazônia

Proposta também inclui penalização de servidores e agentes públicos que se omitirem diante de tais crimes. Ascema vai avaliar conteúdo do texto

Notícias
24 de maio de 2024

Desastres ambientais afetaram 418 milhões de brasileiros em 94% das cidades, diz estudo

Levantamento feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) mostra que cada brasileiro enfrentou, em média, mais de duas situações de desastre entre 2013 e 2023

Salada Verde
24 de maio de 2024

A despedida da flor-de-maio 

A bela floração dessa espécie endêmica da Mata Atlântica dura de 15 a 20 dias e ocorre somente uma vez por ano

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.