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Cenários para áreas protegidas

Não adianta apostar na sustentabilidade em tudo que se produz ou diz. Sem mudança na educação e no valor político, essa palavra não garantirá recursos naturais daqui a 50 anos.

27 de setembro de 2007 · 17 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

No último Congresso Mundial de Parques, como muitos outros especialistas no mundo, recebi um questionário razoavelmente inteligente sobre como víamos o futuro das áreas protegidas. No resultado que foi publicado, como é natural quando se resume múltiplas respostas, não vi bem refletidas as minhas. Lendo-as novamente, achei que algumas delas merecem ser recicladas para sua discussão nestas páginas. A primeira pergunta, que dá a tonalidade às demais, era mais ou menos a seguinte: Se você puder consultar um clarividente, o que perguntaria sobre a situação futura das áreas protegidas? Que horizonte de tempo você consideraria mais relevante? O que é importante, mas incerto no futuro imediato? Quais são os problemas realmente críticos? O questionário continuava solicitando que se desenvolvesse uma visão otimista e outra pessimista e concluía como é usual, solicitando dicas de ação para evitar o cenário pior.

Meu primeiro bloco de respostas incluía que, para estas especulações, o horizonte mais apropriado seria de uns cinqüenta anos, ou seja, mais ou menos até o ano 2060 porque, então, a população humana, que gera a pressão sobre as unidades de conservação, estaria alcançando seu equilíbrio, inclusive em países muito pobres. O risco de uma guerra de caráter mundial com armas nucleares não se pode descartar durante o século XXI, mas suas conseqüências seriam tão graves e imprevisíveis que é melhor nem se considerar essa hipótese. Se não houver uma guerra catastrófica, as perguntas iniciais, todas bastante óbvias, são: sobreviveriam as áreas protegidas? As que subsistirem serão como são hoje? Que valor atribuirá a sociedade do futuro à natureza? E, que é o que essa sociedade entenderá por “natureza”?

É de se esperar que, apesar das pressões econômicas e sociais crescentes e, dos impactos quase incontroláveis das mudanças climáticas, uma parte das áreas protegidas consiga sobreviver nos próximos 50 anos. Com certeza todas elas sofrerão muito como conseqüência do aquecimento global e que, nos países menos desenvolvidos, a maior parte, ademais de maltratada e reduzida no seu tamanho, perderá porções consideráveis do patrimônio natural que conserva. Mas, de outro lado, também é de se esperar que na mesma medida em que aumente a destruição dos últimos redutos naturais, aumente a pressão da sociedade em favor do manejo efetivo das áreas protegidas. Esse processo foi e é evidente nos países desenvolvidos e, provavelmente, aconteça também nos outros. Mas, os impactos humanos e climáticos podem degradar tanto algumas das áreas protegidas mais vulneráveis, tornando-as até irreconhecíveis.

Neste ponto da resposta ao questionário, o clarividente não pode fugir de levar em conta um tema da atualidade que é aquele referente às categorias das áreas protegidas. Ocorre, e que me perdoem os sócio-ambientalistas, que não existe dúvida que as áreas protegidas de uso direto, as eufemisticamente denominadas de “uso sustentável”, vão ter muito menos probabilidades de sobreviver nas próximas décadas que as verdadeiras áreas protegidas, onde não se explora nem destrói, legalmente, a natureza. Nelas o problema virá tanto do exterior como do interior, o que é muito pior e bem mais problemático. Consequentemente é previsível que as unidades de conservação que mais mudarão e sofrerão serão as de “uso sustentável”. Poderia parecer que isso não importa, mas importa muito devido à tendência atual de favorecer abusivamente essa categoria em detrimento das outras, até no caso de se decidir “proteger” amostras únicas e insubstituíveis de natureza.

Porém, o mais difícil de responder daquele primeiro grupo de perguntas é antecipar a atitude das sociedades com relação à natureza. Já na atualidade e, paradoxalmente, muito mais nos países pobres que nos ricos, a natureza transformou-se em virtual. Com o tempo, o barateamento e aprimoramento das tecnologias da virtualidade, de uma parte e; de outra, o provável aumento do custo relativo de se deslocar até uma área protegida, poderiam provocar que naquele futuro a natureza só seja conhecida, visitada e apreciada por poucos. A maioria ficaria com uma visão irreal da natureza que bem poderia resultar em desinteresse ou até medo. Nesse caso a situação das áreas protegidas, especialmente nos países menos desenvolvidos, pode se tornar crítica.

Um cenário desejável e moderadamente possível para as áreas protegidas incluiria alcançar prontamente, nesta ou na próxima década, o mais tardar, o objetivo de manter pelo menos 10% de cada bioma e ecossistema sob proteção integral, sem nenhuma interferência de residentes humanos, nem de exploração dos recursos naturais. Esta será provavelmente a única opção para a qual a biodiversidade possa resistir às mudanças climáticas previstas. Outros 20% dos biomas e seus ecossistemas, neste caso áreas submetidas a um regime que pode aceitar certo nível de intervenção econômica, deveriam ficar estrategicamente localizados para assegurar conectividade através de corredores ecológicos e outras formas contíguas, que atenderiam as necessidades de mobilidade das espécies, em resposta às mudanças climáticas. Mas, deve se insistir que estas últimas áreas, se não tiverem a conservação da natureza por função principal, determinante e, no caso de conflito, excludente, teriam pouca utilidade e que não deveriam nem ser denominadas “unidades de conservação”.

O resto do território, portanto uns 70%, poderiam ser dedicados a atividades econômicas diversas, como agricultura, exploração madeireira, mineração ou desenvolvimento urbano, embora respeitando plenamente a legislação ambiental. No caso das Américas, onde no norte, ou no sul e no centro existem vários países que dispõem de extensas áreas que são propriedade de indígenas, as tais terras não devem formar parte do computo dos 30% exceto na parte que seriam declaradas e manejadas formalmente como áreas protegidas pelos próprios indígenas. Neste ponto alguém poderia dizer que essa já é a realidade atual em muitos lugares, por exemplo, no Brasil. Porém, esta afirmação faltaria completamente à verdade, ainda mais se considerar que a pergunta se refere à situação dentro de 50 anos. As tendências de estabelecimento de verdadeiras áreas protegidas e, em especial, da qualidade do manejo das mesmas, assim como as de uso da terra, no Brasil, por exemplo, não permitem esperar que um cenário como aquele seja possível.

O último elemento de um cenário desejável, na segunda metade deste século, que será incomensuravelmente mais artificial que o atual, seria que as áreas protegidas sejam consideradas pela sociedade, nem tanto ou unicamente como provedoras de indispensáveis e valiosos serviços ambientais, que podem ser medidos nas contas nacionais; mas, principalmente, como os templos ou santuários que preservam a memória de nossa origem e que brindam aos visitantes um breve retorno vivencial pelo longo caminho percorrido pela humanidade.

O que deve acontecer agora para que o cenário desejável e possível seja realizado? Muitas das respostas a esta pergunta são óbvias e já foram respondidas indiretamente em parágrafos anteriores. Mas, é pertinente enfatizar que o maior impedimento para esse futuro desejável não é a construção de estradas novas ou a expansão dos cultivos desmatando florestas e, nem sequer, a falta de recursos públicos para o manejo das áreas protegidas já estabelecidas. O risco maior e, o obstáculo principal, é a falsidade intrínseca do conceito de desenvolvimento sustentável, hoje popularmente aceito como panacéia. O conceito é furado, tanto em termos ecológicos e econômicos como filosóficos. Mas, o pior é que seu caráter mentiroso é muito bem aproveitado para enganar ao povo e fazê-lo acreditar que “tudo está bem se é sustentável”, coisa que ninguém pode sequer provar que é materialmente viável. Este conceito respalda a proliferação de unidades de conservação de “uso sustentável” em detrimento das de verdade e ainda está detrás da propaganda política de que os biocombustíveis são ecológica, econômica e socialmente perfeitos. É evidente que, acreditando ser possível proteger a natureza, ao mesmo tempo em que é destruída, fica justificado fazer isso mesmo e não se complicar a vida com questões difíceis. Por isso, a primeira resposta ao que fazer é que a sociedade e, em especial, cada indivíduo utilize mais sua própria máquina de pensar para julgar a “sustentabilidade” das propostas e das respostas governamentais ou empresariais. Sempre há alternativas melhores que outras e estas devem ser adotadas. Mas, caia na real, isso não é necessariamente sustentável. Em geral é, modestamente, o melhor possível.

A pergunta de “que fazer” tem também outras respostas, mais simples e concretas. As áreas protegidas verdadeiras de muitos paises da América Latina padecem da enfermidade da “clausura”. Enquanto as dos EUA ou do Canadá recebem, a cada ano, muitos mais visitantes que toda a população desses países, os sistemas da maior parte da América do Sul nem sequer são visitados por 1% da suas populações nacionais. Pior ainda, a maior parte dos seus visitantes nem vão lá para ver a natureza. Parques nacionais fechados só têm inimigos e nenhum amigo. A escusa dos responsáveis é sempre a mesma, baseada na falta de recursos e de pessoal, porém isso é apenas uma meia verdade. A verdade completa é que muitos desses parques têm custosos centros de visitantes, residências e equipamentos, mas, não têm simples trilhas na mata para se observar a natureza e que não há vontade de receber visitantes, que é uma das suas razões de existir. Essas unidades de conservação são museus eternamente fechados. Assim, nunca ganharão a simpatia da opinião pública nem, menos ainda, a tão necessária prioridade política. Não é possível continuar presenciando como os latino-americanos pagam fortunas para visitar o Louvre ou o Bristish Museum ou, os parques nacionais norte americanos, como Yellowstone ou os africanos, como Amboseli e Kruger, embora nem sequer pensem em olhar os igualmente extraordinários parques nacionais da própria região onde moram.

Também, em um mundo tão economicista ou utilitarista como o da sociedade global atual, as verdadeiras contribuições das áreas protegidas decorrentes dos serviços ambientais devem ser mais bem evidenciadas. Uma valorização feita por economistas e não por ambientalistas, dos benefícios diversos das unidades de conservação peruanas, revelou que aportam a cada ano 1,1 bilhões de dólares à economia desse país. Não obstante, o governo do Peru gasta apenas 1,4 milhões de dólares por ano para seu manejo, o que é dramaticamente insuficiente.

Finalmente, como para tudo, o futuro das áreas protegidas depende superlativamente de uma melhoria significativa da qualidade da educação pública. Se isso acontecer até o ponto de oferecer a cada cidadão do futuro uma capacidade adequada de análise e discernimento, de formar opinião própria sobre os fatos e as propostas, então, haverá esperanças. Isso parece longe da realidade atual e das tendências. Na assembléia das Nações Unidas deste ano, como todos os anos, se escutam os discursos radicalmente ambientais de governantes que, nos seus próprios países, não dão a mais mínima atenção real ou efetiva ao tema ambiental ou, pior, que fazem tudo o que podem contra o entorno natural. E os cidadãos desses países ficam orgulhosos de escutá-los ao invés de protestar pelas mentiras descaradas que proferem. Assim sendo, no final, nenhum clarividente realista poderia negar que são muito poucas as probabilidades de que se cumpra um cenário sequer moderadamente desejável.

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