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Pesadelo carioca

Um pesadelo louco provoca reflexão sobre a história do urbanismo no Rio de Janeiro. Algumas obras, como o Aterro do Flamengo, foram benéficas. Outras nem tanto.

25 de maio de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Sempre que temos feriadões na quinta ou na sexta-feira, o pessoal da editoria pede que as matérias sejam enviadas mais cedo. Assim, na falta de assunto mais “palpitante”, relatarei para os amigos um pesadelo que tive, recentemente, após ter comido uma porção alentada de Würstchen que, como já havia advertido o saudoso Kid Moringueira, me fez ter um sonho em alemão, o que comprova que, à noite, salsicha não faz bem à digestão.

Entre as contorções da nefanda indisposição, subitamente vi-me atacado por um pesadelo ecologicamente incorreto. Nele, milhares de operários, em um trabalho frenético, produziam uma grande construção à beira-mar. Não, sobre o mar!!! Algo na casa de 1.200.000 m² de área construída. O problema não era só a construção. Como fazer para conseguir a quantidade de material que fosse suficiente para aterrar tanto mar assim? Bem, já que estamos no campo do devaneio, tive um insight que, sem modéstia, classificaria como genial. Nada mais fácil e simples do que retirar a pedra necessária para enxugar o mar de uma montanha que fosse um dos símbolos da Cidade Maravilhosa. Que tal o Morro do Corcovado, sobre o qual está instalado o Cristo Redentor? Assim foi feito. Com máquinas, pás e picaretas, parte da pedra necessária para o babilônico projeto foi sendo retirada do Corcovado. Mas a pedra era pouca. Vamos para o Centro da Cidade e derrubemos algum morrete por lá. É, parece interessante.

Nada disto estaria completo se, nesse sonho pós-lisérgico não aparecesse a idéia de atrapalhar a vida de uma cidade vizinha e destruir mais algum morrinho por lá. Como pedras que rolam não criam limo, toda a pedra recolhida deveria ser transportada para beira-mar e, se possível, lançada muito próxima ao Pão de Açúcar. Em uma tacada o Doutor Silvana ambiental prejudicou dois símbolos da Cidade do Rio de Janeiro: o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar.

O ideal do Gengis Kahn ecológico seria a construção de cerca de oito pistas de alta velocidade em cima de todas as pedras, de forma que pudesse ser gerado trânsito bastante intenso na área e transformá-la em “passagem” entre bairros da cidade. Mas como em todo pesadelo, o sono acaba e a realidade se coloca de forma inexorável diante de nossos olhos. The dream is over. Sim, the nightmare is over. Cinicamente, poderíamos dizer que o importante não é o fato, mas a versão do fato. Uma versão mais palatável seria a transformação do pesadelo em sonho, de forma a considerar que tudo o que falei podia ser uma idéia visionária para a construção de um grande parque público.

Ora, se neste mesmo amontoado de pedras “plantado” – essa doeu – às margens da Baía de Guanabara, adicionássemos um belo projeto paisagístico, estabelecêssemos equipamentos culturais e urbanos capazes de levar lazer para a população, nós teríamos o Aterro do Flamengo que, hoje, é um dos maiores símbolos de nossa cidade e, também, um belo exemplo de solução urbanística para vários problemas de uma cidade grande e moderna. Com efeito, “do Aeroporto Santos Dumont à Enseada de Botafogo, o parque oferece as mais diversas atrações. Um roteiro interessante, por exemplo, pode ser iniciado no Museu de Arte Moderna, passando-se para o Monumento aos Pracinhas, a Marina da Glória, o Museu Carmem Miranda, até o Monumento a Estácio de Sá – fundador da cidade.”

O pesadelo me fez perceber que problemas urbanos requerem soluções que, de uma perspectiva puramente “ecológica”, podem parecer absurdas e sem sentido. A cidade do Rio de Janeiro, não obstante as suas notórias dificuldades, é dotada de algumas soluções urbanísticas bastante interessantes e que merecem ser examinadas como exemplos a serem adotados para os nossos atuais problemas. Vejamos a Praia de Copacabana.

No fim da década de 60 ela sofreu uma profunda transformação com vistas à ampliação de suas faixas de rolamento. Foram feitos aterros que afastaram o mar das pistas e foi construído o calçadão que hoje serve de passarela para o turismo sexual, infelizmente, sob os olhos complacentes de nossas autoridades constituídas. Na verdade, grande parte das atrações “naturais” do Rio de Janeiro foi obra da atividade humana. Em especial não se pode deixar de citar a Floresta da Tijuca que, na minha opinião, deveria ser rebatizada para Floresta da Tijuca Major Archer em uma tardia e justa homenagem ao homem que comandou o grupo que “plantou” a floresta.

Grandes cidades como o Rio de Janeiro têm grandes problemas e para enfrentá-los é necessário que se pense grande, como foi o caso de Lotta Macedo Soares que foi a principal idealizadora do Aterro do Flamengo. Uma idéia que se materializou de forma magistral com o auxílio de grandes arquitetos e urbanistas, que souberam dar uma resposta genial para graves problemas de trânsito que a Cidade enfrentava na década de 60. Hoje, os problemas são mais complexos e as soluções também devem ser apresentadas com ousadia, e nem sempre se pode contar com soluções geniais vindas de uma equipe particularmente bem capacitada. O Metrô do Rio de Janeiro, por exemplo, é o único do mundo que cresce com ônibus. Algum metrólogo (estudioso do metrô) sabe informar qual é o tempo médio gasto para a construção e inauguração de uma estação de Metrô no Rio de Janeiro? Até a transformação de obras de estações em estacionamento já aconteceu no nosso.

Na década de 60 não existiam tantos carros e era mais simples administrar essas questões. As soluções que passaram a ser adotadas para resolver o problema dos carros são sofríveis. Veja-se, por exemplo, a auto-estrada Lagoa-Barra que penetra no interior de um edifício, praticando uma violência simbólica contra os seres humanos que não seria aceita em nenhum lugar no qual se respeitasse a dignidade humana. Não quero falar do elevado da Paulo de Frontin. Em São Paulo temos o absurdo Minhocão construído pela Malufiana megalomania, por favor não confundam com cleptomania, pois não quero ser acusado injustamente de estar prejudicando a honra alheia.

Naquela década, ao mesmo tempo que se construía o aterro, entretanto, os dirigentes não perceberam o colossal erro que cometeram ao acabar com os bondes. Acreditando-se no modelo da civilização do automóvel, os bondes foram postos de lado. Até hoje pagamos um preço caro por isso. O transporte de massas não pode ser feito sobre ônibus ou carros. É necessário que existam trilhos. Hoje com os modernos Trams nós teríamos uma cidade menos poluída, um trânsito menos caótico e uma vida mais confortável. É interessante que as grandes obras de engenharia do Rio de Janeiro nas décadas de 60 / 70 como as duas acima citadas, o belo elevado do Joá e o próprio Túnel Rebouças tenham sido feitas para servir Sua Majestade, o automóvel. O ex-Prefeito Luiz Paulo Conde andou ensaiando enfrentar os automóveis – torci fortemente para que ele conseguisse demolir o elevado da Praça XV – , entretanto, ao que parece, jogou a toalha.

Enfim, espero ter atendido à urgência de nosso editor.

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