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Ascarel

Descoberta, em prédio no Rio, de um produto tóxico proibido desde 1981, mostra que o país ainda não sabe que fim deve dar a ameaças químicas deste tipo.

30 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

O assunto na ordem do dia neste balneário é a descoberta de Ascarel no prédio no qual já funcionou o Jornal do Brasil. Ascarel não é um tema novo e chega a ser surpreendente que ele ainda mereça destaque na imprensa. Se tivéssemos um pouco mais de memória coletiva veríamos que há pelo menos vinte anos a matéria vem sendo debatida. Existem normas legais para disciplinar a questão. Até a Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) – que só aparece quando câmeras e microfones estão a postos e se aproxima o chamado período eleitoral – se meteu no assunto, embora ele não lhe diga respeito (1), visto que a sua competência legal está vinculada à apreciação de projetos de lei em tramitação perante o legislativo estadual. Entretanto, a Comissão, ou alguns de seus integrantes, preferem o brilhareco fácil ao trabalho duro, constante e responsável. Mas, não gastemos vela boa com mau defunto.

Ascarel é um dos nomes comerciais de um fluído dielétrico organoclorado de grande teor tóxico, usado para a refrigeração de transformadores e capacitores elétricos. As bifenilas policloradas (PCBs) são “distintos compostos químicos, cuja composição difere somente quanto ao número e a posição dos átomos de cloro substituídos na molécula da bifenila” (Moriarty, F. Ecotoxicology, London: Academic Press, 2ª ed., p. 12). Quanto às bifenilas policloradas, ainda se pode acrescentar que são substâncias que consistem em uma molécula bifenila, com ou sem substituintes alquila ou arila, na qual mais de um átomo de cloro é substituído no núcleo bifenila. Os produtos comerciais são misturas de compostos clorados em vários graus, de acordo com o uso pretendido, também podendo conter baixos teores de impurezas altamente tóxicas como clorobenzotioxinas e policlorodibenzofuranos.

Os óleos que contêm PCBs são conhecidos sob denominações comerciais, como Ascarel, Arocclor, Clorophen, Phenoclor, Kaneclor, Pyroclor, Ineerten, Pyranol, Pyralene e outros. São óleos que apresentam PCBs em sua composição química, combinados com solventes orgânicos… Os PCBs podem se apresentar como óleo ou sólido branco cristalino, tendendo a sedimentar-se quando em mistura com água, em função do seu maior peso específico. Os efeitos tóxicos dos PCBs nos seres humanos, a partir da ingestão ou contato, passaram a ser observados através do acompanhamento de inúmeros acidentes, o pior deles ocorrido em 1968 no Japão, quando mais de 1.500 pessoas foram afetadas com óleo de arroz contaminado (2).

Os PCBs foram proibidos no Brasil pela Portaria Interministerial n° 19, de 29 de janeiro de 1981. Desde a publicação da referida portaria, está proibida a instalação de qualquer equipamento que utilize o Ascarel ou qualquer elemento congênere. Igualmente, foi proibida a fabricação do produto químico em território nacional, assim como o uso e a comercialização de PCBs, em todo estado, puro ou em mistura, em qualquer concentração ou estado físico, conforme prazos estabelecidos na própria norma. Usando uma linguagem tipicamente burocrática, foi proibido “terminantemente” o despejo de PCBs, direta ou indiretamente, nos cursos e coleções de água ou em locais expostos a intempéries.

Os fatos que estão nos noticiários demonstram que se engana quem acredita que a Portaria Interministerial n° 19/81 solucionou o problema dos PCBs. Ao contrário, ela própria foi uma complicadora para toda a questão, como se verá. Em primeiro lugar, deve ser adiantado que a Portaria n° 19/81 não proibiu a utilização dos PCBs, pois pelo item III da mesma, foi determinado que:

Os equipamentos de sistema elétrico, em operação, que usam bifenil policlorados – PCBs, como fluído dielétrico, poderão continuar com este dielétrico, até que seja necessário o seu esvaziamento, após o que somente poderão ser preenchidos com outro que não contenha PCBs.

Ora, a vida útil dos equipamentos é de cerca de 20 anos ou mais. Assim sendo, somente a partir de 2001 teve início o processo de substituição em massa dos equipamentos em questão.

É de se considerar, ainda, que a portaria não estabeleceu uma solução final para o resíduo contaminado resultante não só do Ascarel, como dos diversos equipamentos que, gradativamente, vão sendo postos fora de uso. O fato é que, hoje, existem toneladas e toneladas de equipamentos infectados e que não têm qualquer solução para as suas destinações. A própria destruição é problemática, pois a incineração só recentemente começou a ser realizada no Brasil e, mesmo assim, a queima dos organoclorados é um tema polêmico entre os químicos e outros técnicos. Alega-se que a referida queima gera dioxina (3), que é uma substância altamente nociva à saúde, além de contribuir para a depleção da camada de ozônio ao liberar cloro para atmosfera.

O Conama, através da Resolução n° 6, de 15 de junho de 1988, reconheceu a total falta de informação governamental quanto à estocagem e à armazenagem dos PCBs. A mencionada resolução determinou prazo para que as indústrias geradoras de resíduos, nos quais a presença dos PCBs fosse notada, apresentassem ao órgão de controle ambiental as informações sobre a geração, características e destino final de seus resíduos. A resolução estabeleceu um critério definidor das empresas que, na forma do artigo 2°, deveriam apresentar o referido relatório. A relação é constituída por:

a) indústrias siderúrgicas com mais de 100 funcionários;
b) indústrias químicas com mais de 50 funcionários;
c) indústrias de qualquer tipo (grupo 00 a 30) com mais de 500 funcionários;
d) indústrias que possuem sistema de tratamento de águas residuais do processo industrial;
e) indústrias que gerem resíduos perigosos como tais definidos pelos órgãos ambientais competentes.

As concessionárias de energia elétrica mereceram uma menção especial, pois tais empresas são grandes utilizadoras de aparelhos refrigerados por óleos em cuja composição os PCBs são muito importantes (4). É importante observar que a resolução do Conama que se vem de mencionar é basicamente voltada para o objetivo de conhecer os estoques de PCBs e outros produtos tóxicos, e determinar algumas medidas para o seu armazenamento que, na maioria das vezes, ocorre in situ e, o que é pior, em condições bastante precárias. Seis anos após a resolução recém-citada, o Conama expediu a Resolução nº 19, de 29 de setembro de 1994, autorizando a exportação de PCB, com vistas a facilitar a destruição do produto, em função da então pouca capacidade instalada no país para dar um destino final razoável para os resíduos tóxicos e para o próprio óleo.

O quadro normativo acima descrito, evidentemente, era extremamente frágil para enfrentar as graves questões colocadas pelos chamados poluentes persistentes orgânicos (POPs), no caso específico as bifenilas policloradas. A matéria em sua complexidade somente poderia receber tratamento adequado em nível internacional, como de fato ocorreu. Assim é que foi firmada a Convenção de Estocolmo, em 22 de maio de 2001, sobre Poluentes Orgânicos Persistentes – POPs, que foi incorporada ao Direito Brasileiro pelo Decreto Legislativo nº 204 de 2004, e promulgada pelo decreto nº 5.472, de 20 de junho de 2005.

Em termos judiciais, a questão dos PCBs já foi enfrentada três vezes pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo). Nas oportunidades o TRF assim decidiu:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SUBSTÂNCIA TÓXICA. PROGRAMA DE DESCARTE DE PCB “ÓLEO ASCAREL”. EFEITO SUSPENSIVO NA APELAÇÃO.
– Agravo de instrumento impugnando a decisão de 1º grau que recebeu o recurso de apelação, nos autos da ação civil pública, somente no efeito devolutivo.
– O recurso visa obstar a execução da sentença que julgou procedente o pedido, “para condenar a Ré a incinerar todo o PCB (Bifenila Policlorada) que mantém estocado, bem como todos os capacitores e transformadores infectados pelos PCB, além de todo o material e equipamento que esteja infectado pelo PCB, e determinar que a Ré proceda à substituição de todos os equipamentos que ainda se utilizem de PCB, incinerando-os”.
– Não se vislumbram os alegados danos irreparáveis à operação e funcionamento do sistema de energia elétrica à cidade, caso não seja concedido o efeito suspensivo à apelação, uma vez que a própria Agravante atesta vir desenvolvendo o cronograma de descarte dos transformadores e capacitores utilizadores do material tóxico, desde o ano de 2001. Prejudicado o agravo interno. Recurso desprovido (5).

Nos casos mais antigos:

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ÔNUS DE PROVA A CARGO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – INTELIGÊNCIA DO ART. 8º DA LEI N.º 7.347, DE 24.07.1985, E DO ART. 333, I, DO CPC.

– Em que pese o art. 8º da Lei da Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347, de 24.07.1985) dedicar atenção especial à instrução do respectivo processo pelo Ministério Público, autorizando o parquet a instaurar inquérito civil público e a requisitar, de organismos públicos ou particulares, certidões, informações, exames ou perícias com o fito de apurar adequadamente fatos a serem levados a juízo, disso não se infira que, ajuizada a ação civil pública, detém o Ministério Público, autor, tratamento jurídico-processual privilegiado no que tange aos ônus de prova.
– O Ministério Público, autor da ação civil pública, deve, sim, desincumbir-se do encargo genérico de demonstrar os fatos constitutivos do direito, como alegados na inicial, notadamente à vista da regra do art. 333, I, do Código de Processo Civil, plenamente aplicável mesmo em sede de tutela jurisdicional de interesses e direitos difusos e coletivos.

ADMINISTRATIVO – PORTARIA INTERMINISTERIAL N.º 19, DE 29.01.1981 – DISCIPLINA, LIMITAÇÃO E/OU PROIBIÇÃO DO USO DE BIFENIL POLICLORADOS (PCB’S) COMO FLUIDO DIELÉTRICO – LICITUDE DA CONTINUIDADE DE OPERAÇÃO DOS SISTEMAS ELÉTRICOS – INCOMPROVAÇÃO DO DESRESPEITO DA NORMA ADMINISTRATIVA PELA PETROBRÁS.

– Se, por um lado, é bem certo que a Portaria Interministerial n.º 19, de 29.01.1981, proibiu e restringiu o uso e comercialização de bifenil policlorados (PCB’s, v.g., Askarel, Phenoclor, Pyranol etc.) em todo o território nacional, por outro lado, do mesmo diploma se observa que lícita era a continuidade de operação dos sistemas elétricos que se utilizassem das aludidas substâncias químicas, como fluido dielétrico, até que fosse necessário seu esvaziamento, momento no qual, então, deveriam ditos sistemas ser preenchidos com outra espécie de fluido que não contivesse PCB’s. (6)

Em sentido contrário:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DANO AMBIENTAL – SUBSTÂNCIAS QUE TRAZEM RISCO A SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE – MATERIAL INFECTADO PELO PCB – INCINERAÇÃO.

1 – Trata-se de Ação Civil Pública objetivando seja a Ré condenada a incinerar todo o PCB (Bifenila Policlorada) que mantém estocado, incinerar todos os capacitores infectados pelos PCB, além de todo o material e equipamento que esteja infectado pelo PCB; que seja condenada a substituir os equipamentos que ainda se utilizem de PCB, incinerando-os.
2 – Há prova cabal a respeito da Apelante manter equipamentos que utilizam da substância conhecida como “Bifenilas Policloradas” (PCBs) de reconhecida nocividade diante de ser altamente tóxica.
3 – A norma geral da referida Portaria Interministerial nº 19 é a proibição do emprego da substância como fluído dielétrico em transformadores e capacitores. Entretanto, ciente da grande utilização do óleo askarel (substância Bifenila Policlorada), principalmente nas instalações elétricas de concessionários em capacitores e transformadores, a Portaria nº 19, por via de seu inciso III, possibilitou que a adequação das empresas se desse ao longo do tempo, de forma a não representar problemas ao funcionamento das empresas.
4 – É forçoso reconhecer a auto-aplicabilidade do inciso V, do § 1º, do art. 225, da Constituição Federal, na tutela do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no controle de substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Nos termos da regra constitucional, cabe ao Poder Público controlar o emprego de substâncias nocivas à vida, à integridade físico-psíquica e o meio ambiente, não havendo necessidade de norma infraconstitucional para estabelecer mecanismos na atuação estatal.
5 – O referido dispositivo constitucional é peremptório ao estatuir que “incumbe ao poder público (aí incluído, por óbvio, o Judiciário): controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Portanto, a decisão ora atacada seguiu estritamente os cânones estabelecidos pela Carta Magna, ao proceder ao seu dever de zelar pelo meio ambiente.
6 – Ademais, não houve qualquer ato legislativo por parte dos magistrados prolatores do v. acórdão. Tão-somente aplicaram a lei ao caso concreto, função essa precípua do Poder Judiciário. Só porque se aplicou a lei de forma diferente ao entendimento do Recorrente, não quer dizer que se praticou ato legislativo. Por fim, ao contrário do sustentado pela apelante, a sentença não contraria a Lei nº 6.938/81, já que não possui o condão de obstacularizar o prosseguimento das atividades da apelante.
7 – Recurso conhecido, porém desprovido. (7)

Enfim, este é o quadro sobre a questão no direito brasileiro.

(1) Art. 26 – Compete às comissões permanentes: I – discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do Regimento, a deliberação do Plenário, salvo recurso de um décimo dos membros da Assembléia Legislativa; II – realizar audiências públicas representativas da sociedade civil e convocar obrigatoriamente, na forma do § 2º do art. 43 deste Regimento, o “Fórum Permanente de Participação Popular no Processo Legislativo” , para as reuniões que tenham por objetivo a apreciação de processo legislativo de sua iniciativa ou que haja sido distribuído; III – convocar, na forma do art. 100 da Constituição Estadual, Secretário de Estado ou Procurador-Geral para prestar informações sobre assuntos inerentes a atribuições de sua pasta; IV – receber petições, reclamações, representações ou queixas contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; V – solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI – apreciar programas de obras, planos estaduais, regionais e setoriais de desenvolvimento, e sobre eles emitir parecer; VII – converter, se considerar necessário, em diligência qualquer proposição, para comprovação ou juntada de requisitos legais…………§ 18 – À Comissão de Defesa do Meio Ambiente compete se manifestar sobre: a) assuntos referentes à política e sistema regionais do meio ambiente e legislação de defesa ecológica; b) recursos naturais renováveis, fauna, flora e solo, edafologia e desertificação; c) incentivos ao reflorestamento, preservação e proteção das culturas populares e étnicas do Estado.

(2) Moreira, Iara Verocai Dias. Vocabulário Básico do Meio Ambiente, Rio de Janeiro: FEEMA/Petrobrás, 4ª ed., 1992, p. 40.

(3) Braile, Pedro Márcio. Dicionário inglês/português de termos técnicos e ciências ambientais. Rio de Janeiro: Serviço Social de Indústria, 1992, p. 119: “São chamadas de ultravenenos, pela sua alta toxidez. As dibenzo-para-dioxinas policloradas (PCDD) e os furanos são duas séries de compostos com ligações tricíclicas aromatizadas, involuntariamente sintetizadas de forma plana com características físicas, biológicas, químicas e tóxicas semelhantes. Os átomos de cloro se ligam nestes compostos criando possibilidades de um grande número de isômeros: 75 para a dioxina e 135 para os furanos. A dioxina tem um DL/50 de 0,001 Mg/Kg.

(4) São os transformadores e capacitores que utilizam os PCBs como líquidos refrigerantes. As novas gerações de tal tipo de aparelho elétrico utilizam diversas modalidades de óleos minerais.

(5) AI 104086/RJ. Relator: Paulo Espírito Santo. 10 de março de 2004.

(6) Apelação Cível 94.02.20240-4. Relator: Sérgio Schwaitzer. 25 de junho de 2002.

(7) Apelação Cível 1991.51.01.049782-7. Relator: Poul Erik Dyrlund.

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