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Súmula 91 do STJ

Estimulado por comentários de leitores, o colunista escreve sobre o aparecimento e desaparecimento de leis federais a favor da proteção de animais no Brasil.

12 de julho de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Por motivos que fogem inteiramente à minha compreensão, o último artigo que escrevi suscitou uma certa marola sobre a Súmula 91 do Superior Tribunal de Justiça. Para o homem comum do povo, esse é um assunto extremamente esotérico, visto que envolve uma complexa questão sobre competências para processamento e julgamento de causas criminais e a organização federativa. Uma constatação que tenho feito é que os ativistas de determinadas causas acabam tendo uma excelente informação prática sobre a legislação que rege o tema objeto de seus interesses. Deve ser o caso. Bom, em primeiro lugar, é conveniente relembrar o conteúdo da famosa Súmula 91, ei-lo: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra a fauna.” Tal Súmula, na realidade, foi o aggiornamento das decisões do extinto Tribunal Federal de Recursos que, na súmula de sua jurisprudência predominante havia editado o verbete nº 22, cujo teor era o seguinte: “Compete à Justiça Federal processar e julgar contravenções penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, autarquias e empresas públicas federais.” É necessário entender o contexto no qual foi editada a Súmula 22 para que se possa compreender a Súmula 91.

Os delitos contra a flora e a fauna brasileiros, até recentemente, eram classificados como contravenção penal. A redação originária do Código Florestal estabelecia uma grande lista de contravenções penais, conforme o artigo 26. Por sua vez, a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/67), também instituiu uma contravenção penal em seu artigo 27 . Pela Lei nº 7.653, de 12 de fevereiro de 1988, as contravenções da Lei de Proteção à Fauna foram transformadas em crimes. É importante observar que o artigo 1º da Lei de Proteção à Fauna não sofreu qualquer modificação com as alterações produzidas na norma, assim sendo os animais permaneceram sendo considerados de propriedade da União. Antes de 1966 este problema não era relevante visto que, na inexistência da Justiça Federal, todas as causas eram julgadas pela Justiça dos Estados. A Lei de Proteção à Fauna se utiliza do termo Estado que, no contexto, tem sido interpretado como União, muito embora não se possa desconhecer que se o legislador quisesse dizer União teria dito. Provavelmente, o legislador tenha se utilizado da palavra Estado em sentido genérico, buscando identificar o termo com Poder Público.

É importante relembrar que, sob o regime da Constituição de 1946, não havia uma Justiça Federal, que somente foi reorganizada em 1966, mediante a edição da Lei nº 5.010 que, em seu artigo 10 definia a competência criminal da Justiça Federal não incluindo as contravenções no rol de delitos submetidos à jurisdição federal. Assim, em princípio, todas contravenções do Código Florestal e de Lei de Proteção à Fauna estariam fora da jurisdição federal. O Tribunal Federal de Recursos resolveu a questão com a Súmula 22, que levou para o foro federal o julgamento das contravenções que fossem praticadas em detrimento de bens e serviços da União, suas empresas públicas e autarquias. Desta forma, nem todas as contravenções do Código Florestal estavam submetidas à Justiça Federal, visto que nem sempre os bens florestais são de propriedade da União. Contudo, no caso da fauna, a competência, inequivocamente, era de ser fixada para a Justiça Federal, ante os termos do artigo 1º da Lei de Proteção à Fauna. Os irmãos Freitas, na 1ª edição de seu consagrado Crimes Contra a Natureza afirmaram: “Como se verá, de forma detalhada, na análise do art. 1º do Código de Caça, os espécimes da fauna silvestre pertencem à União Federal… não há dúvida alguma em dizer-se que a competência é da Justiça Federal.” (p. 19). Tal obra é de 1990 e, portanto, posterior à Constituição de 1988. A posição dos ilustres juristas foi mantida na 6ª edição da obra (p. 52). No que se refere à Pesca, hipótese concreta que deu azo ao cancelamento da Súmula 91, alegam que os peixes são res nullius, coisa de ninguém. Data vênia, discordamos da assertiva. Com efeito, o DL 221/67 determina que os peixes são de domínio público, desde que se encontrem em áreas dominiais. Posteriormente, a Convenção sobre o Direito do Mar, firmada pelo Brasil, define que os recursos marítimos pertencem aos Estados. Logo, os peixes, marinhos, pertencem ao Estado Brasileiro.

Mais atrapalha do que ajuda

A Lei nº 9.605/98 dita de “crimes ambientais”, como é evidente, não tem o condão de alterar a competência constitucional do Poder Judiciário. De fato, o artigo 109 determina que cabe à Justiça Federal processar e julgar as “infrações penais” praticadas em detrimento de bens e serviços da União, suas empresas públicas e autarquias. Entretanto, a Lei nº 9605/98 realizou uma certa unificação da legislação penal ambiental. Um dos efeitos da Lei nº 9.605 foi a ampliação do número de causas criminais ambientais de forma muito significativa, acarretando como contrapartida a produção de uma jurisprudência defensiva por parte do Poder Judiciário, que tem se materializado na necessidade de uma violação a interesse direto da União ou de suas entidades para que possa se materializar a competência federal. Tal interesse direto é um prejuízo concreto a seus bens e serviços e não uma simples alegação.

O cancelamento da Súmula 91 ocorreu em razão de decisão proferida pelo Ministro Fontes de Alencar, que em síntese, foi a seguinte: o enunciado dessa súmula 91 “antes atrapalha que auxilia a prestação jurisdicional”. O procedimento para cancelar teve origem no julgamento do conflito de competência envolvendo a 2ª Vara Federal de Ribeirão Preto (SP) e a Vara Criminal de Santa Rosa de Viterbo (SP), em que ambos assumiram a competência para processar e julgar ação penal versando sobre pesca com equipamentos proibidos. O réu Valdir Custódio dos Santos foi denunciado na Vara Criminal por ter utilizado tarrafa para pescar no Córrego Bela Vista, localizado na cidade de Santa Rosa de Viterbo. O ministro Fontes de Alencar sustentou a competência da Justiça Estadual com base nos artigos 34 e 35 da Lei 9.605, que define os crimes de pesca irregular e as penas de detenção de multa, sem que se mencione o juízo competente. Na verdade, a competência do juízo decorre, no regime constitucional brasileiro, do regime de titularidade do bem ou da natureza do serviço prestado. A Justiça Federal tem a chamada competência ratione personae.

O STJ tem entendido, como conseqüência de sua reiterada jurisprudência, que o artigo 1º da Lei de Proteção à Fauna não implica em que os animais silvestres sejam de propriedade da União, mas do Estado. De fato, se examinarmos o artigo 20 da Constituição Federal veremos que os animais silvestres não estão incluídos entre os bens da União, muito embora o inciso I do artigo 20 estabeleça que pertencem à União aqueles que atualmente lhe pertencem. Aí, na minha opinião, estariam incluídos os animais silvestres, por força do artigo 1º da Lei de Proteção à Fauna e os peixes. A orientação do STJ tem o mérito de descentralizar a prestação jurisdicional, o que sempre é positivo. Penso que, pós Súmula 91, a matéria referente à competência federal sempre estará condicionada à existência de um dano comprovado a bem federal. Assim, admite-se a competência federal sempre que, por exemplo, a caça tenha ocorrido em uma unidade de conservação federal.

A jurisprudência do extinto TFR deu interpretação ao termo Estado, como União. Tal jurisprudência, certamente, acompanha um momento centralizador em nossa vida político institucional. A nova jurisprudência, em meu entendimento, ao estabelecer a necessidade de dano direto a bem federal para a fixação da competência federal, deu ao termo Estado o sentido de Poder Público e possibilitou a descentralização do tema. Aqui se verifica uma importante questão para o direito, que é a evolução da interpretação de um mesmo texto de lei, sem que ele seja alterado formalmente. Não me parece que o STJ tenha afirmado que a defesa dos animais é um interesse difuso e, portanto, pode ser defendido em qualquer foro judicial. A competência da Justiça Federal permanece hígida e os animais silvestres continuam sob o domínio do Estado Brasileiro que, na visão do STJ não é apenas a União. Como sabemos, as leis se interpretam de acordo com a época de sua aplicação e não com a época na qual elas foram editadas, daí o valor da jurisprudência evolutiva.

Artigo por artigo

Art. 26. Constituem contravenções penais, puníveis com três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a cem vezes o salário-mínimo mensal, do lugar e da data da infração ou ambas as penas cumulativamente: a) destruir ou danificar a floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação ou utilizá-la com infringência das normas estabelecidas ou previstas nesta Lei; b) cortar árvores em florestas de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente; c) penetrar em floresta de preservação permanente conduzindo armas, substâncias ou instrumentos próprios para caça proibida ou para exploração de produtos ou subprodutos florestais, sem estar munido de licença da autoridade competente; d) causar danos aos Parques Nacionais, Estaduais ou Municipais, bem como às Reservas Biológicas; e) fazer fogo, por qualquer modo, em florestas e demais formas de vegetação, sem tomar as precauções adequadas; f) fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocar incêndios nas florestas e demais formas de vegetação; g) impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação; h) receber madeira, lenha, carvão e outros produtos procedentes de florestas, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto, até final beneficiamento; i) transportar ou guardar madeiras, lenha, carvão e outros produtos procedentes de florestas, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente; j) deixar de restituir à autoridade, licenças extintas pelo decurso do prazo ou pela entrega ao consumidor dos produtos procedentes de florestas; l) empregar, como combustível, produtos florestais ou hulha, sem uso de dispositivo que impeça a difusão de fagulhas, suscetíveis de provocar incêndios nas florestas; m) soltar animais ou não tomar precauções necessárias para que o animal de sua propriedade não penetre em florestas sujeitas a regime especial; n) matar, lesar ou maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia ou árvore imune de corte; o) extrair de florestas de domínio público ou consideradas de preservação permanente, sem prévia autorização, pedra, areia, cal ou qualquer outra espécie de minerais; p) (Vetado). q) transformar madeiras de lei em carvão, inclusive para qualquer efeito industrial, sem licença da autoridade competente (incluído pela Lei nº 5.870, de 26.3.1973).

Art 27. Constituem contravenções penais, puníveis com três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a dez vezes o salário-mínimo mensal do lugar e da data da infração, ou ambas as penas cumulativamente, violar os arts. 1º e seu § 2º, 3º, 4º, 8º e suas alíneas a , b , e c , 10 e suas alíneas a , b , c , d , e , f , g , h , i , j , l , m , 13 e seu parágrafo único, 14 § 3º, 17, 18 e 19.

Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha. § 1º Se peculiaridades regionais comportarem o exercício da caça, a permissão será estabelecida em ato regulamentador do Poder Público Federal. § 2º A utilização, perseguição, caça ou apanha de espécies da fauna silvestre em terras de domínio privado, mesmo quando permitidas na forma do parágrafo anterior, poderão ser igualmente proibidas pelos respectivos proprietários, assumindo estes a responsabilidade de fiscalização de seus domínios. Nestas áreas, para a prática do ato de caça é necessário o consentimento expresso ou tácito dos proprietários, nos termos dos arts. 594, 595, 596, 597 e 598 do Código Civil.

Art. 10. Estão sujeitos à Jurisdição da Justiça Federal: I – as causas em que a União ou entidade autárquica federal fôr interessada como autora, ré, assistente ou opoente, exceto as de falência e de acidentes de trabalho; II – as causas entre Estados estrangeiros e pessoa domiciliada no Brasil; III – as causas fundadas em tratado ou em contrato da União com Estado estrangeiro ou com organismo internacional; IV – as questões de Direito Marítimo e de navegação, inclusive a aérea; V – os crimes políticos e os praticados em detrimento de bens, serviços ou interêsses da União, ou de entidades autárquicas federais, ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; VI – os crimes que constituem objeto de tratado ou de convenção internacional e os praticados a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar; VII – os crimes contra a organização do trabalho e o exercício do direito de greve; VIII – os habeas-corpus em matéria criminal de sua competência ou quando a coação provier de autoridade federal, ressalvada a competência dos órgãos superiores da Justiça da União.

Art 3º São de domínio público todos os animais e vegetais que se encontrem nas águas dominiais.

Art. 109 – Aos juízes federais compete processar e julgar:…………..IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas…..

Art. 20 – São Bens da União: I – os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; II – as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; IV – as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; V – os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva; VI – o mar territorial; VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos; VIII – os potenciais de energia hidráulica; IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo; X – as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos; XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. § 1º – é assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração. § 2º – A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.

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