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A lei se fez cumprir em pleno Carnaval em Ilha Grande e campistas foram mandados para casa mais cedo. Um passo importante que precisa ser seguido de outros.

2 de março de 2006 · 18 anos atrás

Desperta de manhã cedo, toma café, dá um mergulho no mar, sai para uma trilha na Mata Atlântica. Volta para o acampamento, come um prato-feito, toma uma cerveja, descansa um pouco, mergulha de novo, faz outra trilha para aproveitar a beleza da luz do entardecer, volta para a base, come uns belisquetes e aninha-se no saco de dormir, dentro da barraca. Esse foi o programa escolhido por mais de 800 turistas que decidiram passar o carnaval nas praias do Cachadaço, Santo Antônio, Aventureiros e Palmas, na Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro.

Tudo perfeito, a não ser por um pequeno detalhe. Esses veranistas, amantes da natureza, foram acordados em plena madrugada por uma tropa de fiscais que incluiu gente da Polícia Militar Florestal, do Instituto Estadual de Florestas, da Prefeitura de Angra dos Reis e da Capitania dos Portos. Apesar da escuridão da noite, barracas foram desarmadas e os turistas “convidados” a se retirar da Ilha.

Não faltaram protestos. Os visitantes espernearam chamando os fiscais de ecofascistas e mandando a polícia “prender ladrão em vez de estragar o feriado de cidadãos de bem”. Proprietários de campings ilegais esbravejaram e caiçaras choramingaram o prejuízo. Uma dona de restaurante caseiro chegou a desesperar-se com a perda de 170 caixas de cerveja e incontáveis sacos de arroz e de feijão. Realmente é triste tomar ciência da sina dessa gente desafortunada. Que maneira de terminar o feriado!

Dito isso, bata-se palmas para a operação, batizada pelos fiscais de Angra Legal. Ecoturismo tem definição. Trata-se de qualquer atividade de recreação realizada em ambiente natural, com retorno econômico para as populações do entorno, respeito à cultura local e feita em bases ambientalmente sustentáveis. Aí é que está o elo quebrado na corrente, que de outra maneira estaria intacta. O pessoal que foi obrigado a se retirar das praias da Ilha Grande nesse carnaval estava relaxando em comunhão com a natureza e, com certeza, gerava grande retorno financeiro para os caiçaras. O problema é o meio ambiente.

Como gerir os dejetos e o lixo de 350 turistas acampados em um só lugar, localizado em Unidade de Conservação, onde não há recolhimento de lixo nem esgotamento sanitário? A resposta é simples: não há como. A conseqüência da farra descontrolada é a degradação da área protegida, seja ela o Parque Estadual da Ilha Grande ou a Reserva Biológica do Aventureiro. Numa situação dessas, o desmatamento para que barracas sejam armadas, o excesso de lixo e a poluição por dejetos humanos são inevitáveis.

Claro está que a solução não é proibir pura e simplesmente, mas disciplinar, estabelecendo áreas específicas para o campismo e fazendo um zoneamento da área de modo a permitir o funcionamento de restaurantes rústicos onde houver condições mínimas de infra-estrutura de esgotamento sanitário.

Bons exemplos

Na Austrália, são raros os Parques sem trilhas, e quase não há trilhas sem locais onde o campismo é permitido. A escolha, contudo, é criteriosa. Privilegia espaços já degradados e evita o acúmulo de barracas em um mesmo sítio. Em muitos lugares, provê o visitante com instalações sanitárias e restringe o número de pessoas que podem pernoitar do local. Cada turista precisa comprar uma autorização de pernoite, muitas vezes na própria internet, e carregá-la sempre consigo. Raríssimas são as vezes em que tem de mostrá-la aos guardas-parque, mas operações de fiscalização acontecem e os infratores são retirados da Unidade do Conservação – no meio da madrugada se for o caso – além de serem obrigados a pagar pesadas multas.

Mas não precisa ser rico para ser organizado. Aqui mesmo abaixo do Equador, a África do Sul mantém várias dezenas de trilhas e Parques Nacionais onde é possível pernoitar. Nelas, o número de caminhantes por dia também é restrito à capacidade de carga das áreas de pernoite ao longo do percurso. Com efeito, em muitas trilhas há abrigos com banheiros. Se as construções são impactantes, o impacto é um só, concentra os dejetos humanos no sanitário e evita a tentação de se armar a barraca um pouco mais para cá ou para lá em busca de maior privacidade, atitude que acaba aumentando o pisoteamento e a degradação da vegetação.

Vários outros países aprenderam a receita e têm modelos de gestão de campismo semelhantes aos citados acima. Em todos eles, o básico é fazer cumprir a Lei. Nada de mais. Assim funcionam os ônibus de Amsterdam, os Parques da Costa Rica e empreendimentos privados ao redor do mundo. De fato, sem cobrança não há lei que resista. Mesmo os mais esclarecidos às vezes sucumbem à tentação. Nesse sentido, o caso da Floresta da Tijuca é exemplar. Apesar de proibido é comum o pernoite na Pedra da Gávea e na Pedra Bonita. A Mata Atlântica da Guanabara já proveu cama a um dos mais combativos montanhistas cariocas que, malgrado sua membresia atuante no Grupo Ação Ecológica (GAE), conta com prazer e nostalgia uma noite passada com sua filha pequena no topo do Morro do Archer, atitude vedada pelo plano de manejo do Parque Nacional da Tijuca.

No Brasil, se ainda não temos a infra-estrutura, pelo menos ao que parece estamos acordando para a necessidade de fiscalizar. Afinal, se lei existe é para ser cumprida. Caso operações como a Angra Legal fossem parte de nossa história, as favelas e condomínios irregulares do Rio de Janeiro não teriam chegado ao ponto em que estão e o Conama não precisaria alegar veladamente o fato consumado para mudar sua deliberação, liberando certas atividades de “utilidade pública ou interesse social” em Áreas de Preservação Permanente.

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