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O Que Fazer Para Pulverizar os Beques?

México descriminaliza o consumo de drogas e dá exemplo inteligente de como evitar os diversos problemas decorrentes do tráfico, inclusive ao meio ambiente.

13 de julho de 2006 · 18 anos atrás

Em meio ao polêmico lançamento do livro “Elite da Tropa”, produto da pena tríplice do antropólogo Luis Eduardo Soares e dos capitães da Polícia Militar André Batista, na ativa, e Rodrigo Pimentel, na reserva, outra notícia passou quase despercebida do grande público. Trata-se da decisão do governo mexicano de descriminalizar o consumo de drogas, anunciada em dia 29 de abril, o site No Mínimo.

No México, contou o colunista Pedro Dória, o governo ficou cansado de enxugar gelo prendendo pagadores de impostos que cheiram sua rapa e fumam seu beque. Chegou à conclusão, aliás óbvia, de que a repressão ao consumidor apenas erode a relação de confiança entre Estado e cidadão enquanto serve de combustível para a corrupção policial.

A interdição legal do consumo, em tese, serve para proteger a sociedade das mazelas sociais decorrentes do vício. Quando, entretanto, o Estado não consegue reprimir a oferta, todos os que desejam fumar ou cheirar o fazem. Se os viciados são parcela amplamente minoritária da sociedade, além do risco de serem presos, sofrem o estigma da condenação social. Por outro lado, se constituem fração significativa da cidadania, consomem tóxico sem precisar abrir mão do reconhecimento e do convívio de seus pares. Nesse caso sofrem apenas o medo imposto por uma legislação fora de compasso com a realidade social vigente, o que os obriga muitas vezes a terem que pagar pedágios a policiais corruptos.

Realidade do Rio

Esse último caso – do consumo em larga escala – parece ser o que se aplica à realidade do Rio de Janeiro. Dados oficiais de 2004 informam que 6,4% dos brasileiros entre 10 e 18 anos de idade fumam maconha. Extra-oficialmente, mocinhos e bandidos acham que os números são ainda maiores. Segundo declarações do Delegado Hélio Luz, ex-chefe de polícia daquele estado, “Ipanema brilha”. Já, em depoimento a Zuenir Ventura, o ex-todo poderoso dono do tráfico no Morro Santa Marta, Marcinho VP, afirmou que “50% dos motoristas de ônibus, taxistas e metalúrgicos são dependentes”.

Mais recentemente, Ricardo Hallak, atual chefe da polícia fluminense, declarou ao RJ TV da Rede Globo que “o que está ocorrendo hoje em dia é que a classe média não reprova o usuário dessas drogas sintéticas. E o traficante desse tipo de droga é um membro da classe média, um amigo, um parceiro, um colega de turma”.

“Elite da Tropa” desnuda o icebergue, cujo ápice Hallack, Luz e VP apontaram. O livro, ainda que auto-mascarado em ficção, expõe verdades que muitos brasileiros sempre preferiram fingir desconhecer.

Estamos em guerra e um dos combustíveis que mais incendeia as batalhas é o tráfico de drogas. O enorme volume de consumo de cocaína e maconha no Brasil permite aos traficantes a compra de pesados arsenais para garantir a continuidade lucrativa dos negócios. A proibição que visa salvaguardar a sociedade da desestruturação provocada pelo consumo de entorpecentes parece ter caducado. Mostrou-se remédio falho. Não nos livrou de nenhuma mazela e ainda resultou em uma polícia corrupta de alto a baixo, poderes legislativo, judiciário e executivo com claras evidências de estarem infiltrados pelo tráfico. E um estado de guerra civil, cuja face mais óbvia são os territórios “liberados”, onde o Estado não tem presença permanente, mas entra apenas como força de ocupação, que como o nome sugere é necessariamente temporária.

O tráfico e a floresta

Se a proibição é remédio, tudo indica que está matando o doente. Corrompe e desagrega mais do que o consumo liberado o faria, com a agravante de que o Estado, em vez de recolher impostos de pujante atividade econômica, os gasta aos milhões na vã tentativa de coibi-la. Hoje vivemos o pior dos dois mundos. Bancamos o custo social de um consumo desvairado, que se traduz em cidadãos desajustados, hospitalizados por overdose e viciados que entram para a criminalidade para comprar sua próxima rapa, e ainda por cima vivemos em um clima de guerra civil sem perspectivas de solução.

Mas o que tem isso a ver com o meio ambiente? Não vou nem entrar no mérito das plantações de maconha que estão tomando vastos hectares de parques nacionais estadunidenses; nem vou discutir o triângulo do ópio, nas montanhas do frágil ecossistema que demarca a fronteira da Birmânia com a Tailândia; e tampouco vou esmiuçar o desastre ambiental provocado pela fumigação das plantações de coca, que no processo acaba danificando grande parte da flora nativa das matas colombianas. Vou me ater apenas ao Rio de Janeiro, onde um antigo Comandante do Batalhão Florestal – posteriormente assassinado – chegou mesmo a redigir sua tese para o Curso Superior de Comando da Polícia Militar, sobre as ligações entre o tráfico e a Floresta da Tijuca.

No período em que dirigi aquele parque nacional (1999 a 2000) não foram poucas as incursões realizadas no âmago da mata para coibir a caça ilegal. Quando isso acontecia, as equipes do parque eram sempre acompanhadas de um pelotão do Batalhão Florestal, tropa – devo acrescentar – da maior competência. Mas havia limites. Não se descia às favelas. Ali, a questão deixava de ser policial e ganhava contornos de confronto militar. Se o caçador se evadisse para alguma favela limítrofe à Floresta, ganhava liberdade. O pelotão não tinha contingente nem poder de fogo para ir lá dentro fazer valer a Lei Ambiental.

Certa feita, uma patrulha de agentes do Ibama desceu à comunidade do Cerro Corá para averiguar uma denúncia de que havia passarinheiros atuando na área. Foi surpreendida pelos “donos” do morro, que os rendeu com revólveres na cabeça e os submeteu a toda sorte de humilhações. Analogamente, os “ecolimites” implantados pela prefeitura para balizar as favelas e evitar seu crescimento horizontal, em muitos casos, só podem ser fiscalizados com a anuência do tráfico.

O Projeto Mutirão Reflorestamento, que é referência internacional, também precisa entender-se com os narcotraficantes para garantir o vicejar das mudas plantadas. Uma tentativa de proibir o trânsito de carros na estrada das Paineiras à noite falhou. A medida visava dar uma folga à fauna daquela região, evitando os atropelamentos noturnos de animais. O tráfego, no entanto, foi reestabelecido pelo tráfico, que segundo relatos dos vigias do defunto hotel das Paineiras, rodavam com seus bondes por ali todas as madrugadas. A seqüência de cadeados rompidos, muitas vezes à bala, dá verossimilhança ao relato.

Como se vê, o consumo de estupefacientes, que foi proibido por razões atinentes à saúde pública, virou logo uma questão de polícia. Com o passar tempo foi mais além e enraizou-se na máquina do Estado e seus Três Poderes. Hoje, já começa a ter ramificações perniciosas no meio ambiente.

Vale a pena ler Pedro Dória e o trio de policiais e “policiólogo”. Os textos dão o que pensar.

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