Quem pratica esportes de montanha com freqüência sabe muito bem a importância da qualidade do equipamento que usa. Em uma escalada, uma boa corda e um mosquetão de primeira categoria podem ser a diferença entre a vida e a morte em uma situação de risco. Felizmente, também para os caminhantes que não se aventuram a trepar pedras verticais a tecnologia tornou a vida muito mais confortável do que há 28 anos, quando primeiro me aventurei nas matas da Serra da Bocaina. A lista de petrechos que foram desenvolvidos no período é longa. Colchões infláveis, sacos de dormir de pena de ganso, barracas leves e (verdadeiramente) impermeáveis, fogareiros portáteis, lanternas de cabeça confiáveis e mochilas anatômicas e bem projetadas talvez não cheguem a salvar a vida de um excursionista, mas certamente contribuem em muito para a qualidade da caminhada. Sobretudo se ela envolver muitos quilômetros e mais de um pernoite.
No que toca os pés, também houve muito progresso. Hoje as pesadas e desconfortáveis botas de couro já são calçadas apenas por um punhado de dinossauros. A tecnologia contemporânea nos proporciona pisantes com formatos para todos os pés, finos ou grossos, longos ou curtos, masculinos ou femininos. As boas botas de hoje são confeccionadas com gore-tex, material de última geração impermeável de fora para dentro e perspirante de dentro para fora, evitando que o suor se acumule no interior do calçado.
Ainda assim, botas não são tênis, muito menos sandálias. São desenhadas para proteger as solas dos pés, evitar entorses dos tornozelos, caminhar sobre pedregulhos pontiagudos, vadear rios, chafurdar na lama. Espera-se que dêm suporte a seu dono, mesmo quando vergado por 15 quilos de uma mochila cargueira às costas e caminhando em terreno inclinado e escorregadio. Fazer tudo isso e ainda prover conforto para os pés é tarefa quase impossível.
Pois bem, em dezembro de 2004, em uma das minhas visitas ao Brasil, ganhei de presente um par de botas de montanha. Era presente. Podia escolher o que quisesse pelo critério único da minha preferência pessoal. Preço não era preocupação. Sentei-me então com Ana Leonor e Bruno Lício Marques, ambos com larga experiência no setor, uma por caminhante inveterada, outro por proprietário da Rio Climbing, uma das lojas de montanhismo mais tradicionais da Guanabara. Meus consultores eram unânimes em aconselhar as importadas – preço não era algo que estava em questão e “além disso, nesse mundo globalizado não tem cabimento comprar botas por patriotismo”. Seus argumentos eram sólidos e racionais. Quase me convenceram: desde que, em 1995, me estrepei- no sentido físico do verbo- ao comprar uma bicicleta montanheira nacional, passei a escolher meus produtos pelo critério máximo da qualidade.
Mas, experimenta daqui, calça dali, testa dacolá e as botas americanas e européias foram sendo escanteadas. Meus pés e um par de brasileiríssimas botas Snake tomaram-se de amores. Custavam metade do preço da maioria do material que experimentara e um terço das mais caras. Mesmo assim, dentro delas meus pés sentiam-se em um par de sandálias ryder; não as legítimas- que nunca experimentei- mas as confortabilíssimas que Nelson Piquet calça no anúncio da televisão. Fiquei com as botas Snake.
Desde então passaram-se um ano e meio. Minhas Snake caminharam mais de mil quilômetros. Vadearam o canyon do Rio Grose na Austrália, atravessaram a lava endurecida do Vulcão Piton de La Fournaisse na Ilha de Reunião, submergiram nas águas salgadas da Ilha de Sainte Marie em Madagascar, enegreceram-se cobertas de sangue-sugas em Bornéu, levaram-me à altitude do ar rarefeito do Monte Quênia, chafurdaram nos pântanos do Delta do Okavango, treparam as encostas íngremes de Ruanda à cata dos gorilas da montanha, torraram no deserto dos Emirados Árabes, percorreram as margens do rio Nilo, subiram e desceram a infinidade de boulderes do Ilhote La Digue, em Seicheles, carregaram-me, com 16 quilos no lombo, nas trilhas de longo curso sul-africanas Otter e Whale e, como não podia deixar de ser, alçaram-me ao Pico da Tijuca, ao Bico do Papagaio e à Pedra do Conde, no Parque Nacional da Floresta da Tijuca.
Ao fim e ao cabo, as solas racharam, o couro descosturou e as laterais externas de ambos os pés rasgaram-se de modo a tornar a bota inusável. A meu lado, nas mesmas peripécias, Ana Leonor e suas botas australianas resistiram muito melhor. Minhas Snake vão para o lixo. Ana Leonor seguirá caminhando com seus eficientes calçados importados. Naquele longínquo natal de 2004 deveria ter ouvido a voz da sabedoria e escolhido o que havia de mais caro na loja. Deveria? Acho que não, pois nos últimos 18 meses meus pés estiveram de férias. Calçavam botas, sentiam-se vestindo as ryders do Piquet e isso não tem preço.
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