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A Chapada dos Ovos de Ouro

As belezas naturais da Chapada dos Veadeiros melhoraram a economia do nordeste de Goiás. A população reconhece, mas em se tratando de interesses econômicos, sempre há conflito.

15 de julho de 2008 · 16 anos atrás
  • Reuber Brandão

    Professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília. Membro da Rede de Especialistas em Conservaçã...

Devido à distância das maiores cidades, ao relevo acidentado e a inexistência de boas estradas, o norte e nordeste do estado de Goiás sempre foram as regiões mais pobres do Estado. Apesar da existência de surtos exploratórios de minérios, estes sempre foram de curta duração ou geograficamente restritos, não representando a redenção econômica da região. Nem mesmo os maciços investimentos recentes na região para a instalação de usinas hidrelétricas nos rios Tocantins e Paranã causaram mudanças importantes na economia dos municípios.

Na verdade, a atividade econômica mais promissora, para diversos municípios na região, é a indústria do turismo, notadamente do turismo na natureza ou ecoturismo. Esta atividade é especialmente relevante para os municípios vizinhos ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Não é exagero afirmar que esta Unidade de Conservação mudou econômica e socialmente as cidades e vilas da região. Um exemplo contundente é o Distrito de São Jorge. Este pequeno povoado foi formado originalmente por pessoas que dependiam economicamente da exploração do cristal de rocha e tinham nesta atividade a principal forma de sobrevivência. A população vivia com grandes dificuldades, como a falta de emprego e o isolamento Hoje, São Jorge vive basicamente do turismo, que sustenta pousadas, restaurantes e a visitação em propriedades particulares, gerando emprego e levando a uma mudança radical no perfil econômico desta comunidade nos últimos 20 anos. O mesmo ocorreu com a cidade de Alto Paraíso de Goiás, onde a proximidade com o Parque gerou um notável fluxo imigratório e um incremento das atividades imobiliárias.

Apesar dos esforços, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros está sendo sufocado aos poucos. Com apenas 62 mil hectares, o fragmento de Cerrado representado pela Chapada dos Veadeiros é pequeno para a manutenção dos serviços ambientais, para a conservação de sua biodiversidade singular e para suportar a pressão crescente em seus limites, que partem dos diversos interesses que se estabeleceram em seu entorno.

Não é à toa, portanto, que outros municípios da região também estão buscando atrair turistas para conhecerem e desfrutarem dos fantásticos atributos naturais que estão distribuídos por uma região bem mais ampla que os limites atuais do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Por outro lado, tais atributos só existem devido ao estado de conservação da região, o que garante a manutenção destes benefícios. A beleza cênica da região, as magníficas cachoeiras e a riqueza da fauna, são continuamente disponibilizadas pelo estado de conservação de toda região, onde o Parque Nacional ocupa uma posição de fundamental destaque neste aspecto.

Os atributos ambientais foram os elementos responsáveis pela melhora da qualidade de vida de toda a região, criando opções econômicas para uma região com poucas saídas. A população local reconhece isso. Como resultado, é fácil falar sobre a importância da conservação do meio-ambiente e dos benefícios gerados para toda a região.

Mas, em se tratando de interesses econômicos, sempre existem conflitos. O valor da terra na região aumentou muito nos últimos anos e a densidade de ocupação é cada vez maior. Nos últimos dez anos, o parcelamento de propriedades tornou-se corriqueiro, e diversos deles estão localizados justamente nos limites do Parque Nacional, O processo de ocupação regional acarretou no o crescimento da Distrito de São Jorge e da cidade de Alto Paraíso. A rodovia que liga Alto Paraíso a Colinas do Sul está sendo asfaltada, o que irá aumentar o número e a velocidade dos veículos, levando a mais atropelamentos de animais. Esta estrada, que margeia o limite sul do Parque, deveria incorporar uma série de estruturas, visando minimizar impactos, tais como redutores de velocidade, sonorizadores e radares, mas esta proposta ainda não foi acatada. A exploração do cristal de rocha para fins de artesanato está sendo intensificada. Barraquinhas de artesanato com cristais estão sendo instaladas em diversos pontos, e diversos buracos estão pipocando aqui e ali na paisagem. Alguns desses buracos são inundados pela água das chuvas e se tornam armadilhas fatais para anfíbios, répteis e pequenos mamíferos.

No entanto, a maior ameaça à conservação dos ecossistemas regionais e da sua dinâmica é o estabelecimento de barragens na região. O potencial hidroelétrico de diversos rios, como o Tocantinzinho, o Preto e o São Miguel, está sendo avaliado e já existem projetos de aproveitamentos hidroelétricos em toda a região. Em muitos destes rios existem espécies criticamente ameaçadas, como o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), que necessitam de rios de médio porte e de águas cristalinas para viver. Esta espécie desaparece completamente em locais onde os rios são substituídos por reservatórios. Mesmo assim, tais projetos existem e muitos estão aguardando o momento certo para serem implementados. Devido a mudanças nos processos de dispersão, competição e predação acarretados pela profunda interferência nos ecossistemas, este tipo de empreendimento afeta as comunidades animais e vegetais localizadas em áreas bem distantes dos reservatórios e é uma real ameaça a toda região.

Toda pequena cidade que vive de turismo tem problemas para suportar a população flutuante, que aumenta enormemente nos períodos de visitação. Como resultado, a rede de água e de esgoto destas localidades é sobrecarregada e soluções de curto prazo são geralmente tomadas, mas raramente solucionando de forma definitiva o problema. No Distrito de São Jorge não é diferente. Todo o esgoto produzido está sendo direcionado a um córrego que flui para o interior do Parque Nacional e a captação de água da Cidade ainda é feita dentro do Parque Nacional. . O número de pousadas e de turistas na região tende a aumentar bastante nos próximos anos, incrementando os impactos do turismo nas áreas protegidas, caso não sejam tomadas soluções definitivas em termos de infraestrutura ou sejam respeitados os limites de capacidade de carga da região.. Existe pressão política para a abertura de novos portões no Parque para o uso turístico, o que irá ampliar o número de turistas, de pousadas e danos ambientais que este aumento do fluxo de turistas na Unidade de Conservação. Apesar dos inegáveis benefícios sociais que o turismo pode trazer para a região, devem ser estabelecidos limites claros para o uso do Parque no seu Plano de Manejo. O estabelecimento de tais regras e limites de uso não devem ser decididos de forma irresponsável ou para atender a interesses aquém da conservação.

As empresas e agências de turismo na região pressionam o órgão gestor da Unidade para que o número de turistas permitidos diariamente no Parque seja incrementado. Além disso, os gestores têm que lidar com as demandas para a abertura de novos portões, para o licenciamento de novos empreendimentos turísticos e de novos loteamentos. Não é uma posição confortável, pois o principal objetivo da unidade é a conservação da natureza e das paisagens cênicas. As atividades de turismo, visitação, educação e pesquisa, previstas nos objetivos da Unidade, só podem ser realizadas em níveis que não comprometam a conservação.

Apesar dos esforços, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros está sendo sufocado aos poucos. Com apenas 62 mil hectares, o fragmento de Cerrado representado pela Chapada dos Veadeiros é pequeno para a manutenção dos serviços ambientais, para a conservação de sua biodiversidade singular e para suportar a pressão crescente em seus limites, que partem dos diversos interesses que se estabeleceram em seu entorno.

Como na fábula, a galinha dos ovos de ouro, que gera riqueza de forma sustentada em longo prazo, está correndo o risco de ser morta devido ao imediatismo na geração de dividendos. No entanto, se o Parque Nacional fenecer, toda a região será prejudicada.

Para reverter este quadro devemos lembrar que as ações de conservação devem ser tomadas pensando-se, no mínimo, nos próximos 50 anos. Além da proibição das ameaças diretas e imediatas (p.ex. esgotamento em riachos que fluem para o Parque, mineração próximo aos limites da unidade, parcelamento irregular na zona de amortecimento, aproveitamentos hidroelétricos perigosamente próximos), deve-se minimizar a pressão causada pela exploração turística centrada principalmente no Parque Nacional. Apesar do aumento de opções de lazer no entorno do Parque aliviar o fluxo de turistas no interior da Unidade, o turismo na região está apenas se intensificando. Além disso, é inevitável a visita às cachoeiras do Rio Preto e outros pontos famosos de visitação.. Mas minimizar o fluxo turístico no Parque pode ser facilmente alcançado, visto que toda a região dos Municípios de Nova Roma, Teresina, Alto Paraíso, Cavalcante, Colinas do Sul e Campos Belos possuem atrativos naturais de grande beleza cênica e podem absorver o fluxo de turistas de forma a evitar a concentração de exploração de poucas áreas, diluindo os impactos.

Por outro lado, a garantia de manutenção destes atrativos turísticos e a diversificação da atividade dependem da conservação efetiva destas áreas, o que pressupõe a presença de áreas protegidas. Unidades de Conservação de Proteção Integral são especialmente desenhadas para garantir a perpetuidade destes atributos e, como propriedade da União, distribuir benefícios para a coletividade. Foi exatamente esse papel que o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros cumpriu. É evidente então que a replicação desta experiência nos demais municípios é da melhor saída para multiplicar os benefícios gerados por um instrumento legal voltado para garantir a conservação efetiva da região. Desta forma, a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, que iria garantir a viabilidade ecológica dos serviços ambientais gerados pela conservação, seria a ação mais relevante para toda a região desde a assinatura do Decreto de criação do Parque Nacional do Tocantins pelo Presidente Juscelino Kubitschek em 1961. Este Parque foi sucessivamente reduzido em 1972 e em 1981, de 750 mil hectares originais para os atuais 62 mil hectares do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

O problema é conciliar os diferentes interesses. A ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, realizada por Decreto Presidencial em 2000, foi recebida com grande descontentamento por políticos, grandes fazendeiros e empresários dos municípios da região, muitos dos quais se denominam “ambientalistas” apaixonados pela Chapada dos Veadeiros. O incremento da área do Parque foi tomado como uma má notícia por afetar interesses pessoais.

No entanto, a relevância do turismo na região depende da conservação da área. Caso as medidas de conservação tomadas na região falhem, caso a galinha dos ovos de ouro finalmente sufoque e caso o turismo na região se torne insustentável, todos os municípios serão afetados. Enquanto empresários, políticos e fazendeiros podem abandonar a região em busca de locais mais interessantes para as suas atividades, a maior parte da população não terá esta opção, restando o retorno às sua antigas atividades econômicas ou a emigração.

A situação da Chapada dos Veadeiros ilustra a problemática de conciliar interesses particulares e interesses coletivos. Além disso, demonstra que instrumentos legais, como as consultas públicas nos processos de criação/ampliação de unidades de conservação, podem ser usadas de forma politiqueira, especialmente quando há facilidade de manipulação da comunidade.. A realização de consultas públicas apenas nas comunidades locais, ao invés de legitimar o ato de criação/ampliação da unidade, significam na verdade, priorizar interesses locais em detrimento do direito constitucional de um meio ambiente equilibrado para a coletividade. Instrumentos de oitiva de alcance nacional, como consultas pela internet, acabam sendo criticados com o argumento que são pouco acessíveis e anti-democráticos, enquanto sabemos que existem computadores conectados em localidades isoladas e que, na verdade, a consulta eletrônica tem alcance mais amplo a todos setores da sociedade.

As unidades de conservação podem e devem ser usadas para melhorar a qualidade das comunidades em seu entorno. No entanto, essa melhora não deve ser feita em detrimento da “saúde” da unidade. Muitos empresários não enxergam como suas atividades podem estar prejudicando seu próprio negócio e diversos grupos não aceitam que parcelas do território sejam convertidas em unidades de conservação devido a interesses pessoais no uso da terra, mesmo que este uso fragmente e isole ainda mais as unidades já existentes.

Esta situação não é diferente em diversos outros Parques Nacionais onde os interesses pessoais e a exploração desordenada dos atributos naturais está em oposição direta às recomendações de manejo ou a mais simples lógica conservacionista, colocando a viabilidade da unidade em risco. O mais grave é perceber que a maior parte da sociedade assiste impassível à instalação de ameaças severas às Unidades de Conservação, parecendo que nada está acontecendo. Será que apenas a conscientização é suficiente para uma mudança na postura das pessoas?

Os atributos naturais e, por conseqüência, as unidades de conservação de proteção integral, são o nosso maior patrimônio natural e devem ser tratados como assunto de segurança nacional. A tragédia do bem comum, que se reflete no trato com os atributos naturais e na maneira na qual esta riqueza é encarada, é também a tragédia da coletividade. Quando a galinha parar de colocar ovos de ouro, o que será dos que precisam deste ouro para viver?

*Esse texto foi editado em 24/04/2024 para repaginação

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