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Lição de jornalismo no front da onça parda

A tragédia das suçuaranas, que invadem até cidades na serra catarinense, à medida que desaparecem seus redutos naturais, está muito bem contada num livro do estudante Leo Branco.

30 de outubro de 2008 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Primeiro, a má notícia: dias atrás, morreu um filhote de onça parda em Painel, no planalto de Santa Catarina. O bicho teve uma vida breve, mas um vasto currículo. Em julho do ano passado, aos três meses de idade, escapou por pouco dos cachorros que o acuaram no terreiro de uma chácara, à beira da estrada para a cidade de Lages.

Derrubado aos solavancos de um galho de guabiroba e laçado no chão, livrou-se dos dentes da matilha para entrar numa jaula de passarinho. Entregue pela polícia ambiental à  base de pesquisa avançada do Ibama, acabou não resistindo um ano e meio depois a uma cirurgia na pata traseira, feita no Centro de Ciências Agroveterinárias da universidade estadual. Morto, foi posto na geladeira, à espera da decisão final sobre o passo seguinte – a incineração ou o empalhamento, se for escolhido para prestar serviços póstumos à memória da fauna nativa, representando-a junto aos brasileiros que não tiverem mais chances de encontrar uma suçuarana ao vivo.

Dito isso, aí vai a boa notícia: quase todos os detalhes que constam nos parágrafos acima vêm do livro “Leão Baio”, feito por um estudante de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina – de onde, é bom lembrar, saiu no ano passado o livro “A Peleja do Eucalipto”, do aluno João Werner Grando, também comentado aqui no site. Alguma coisa muito especial deve estar acontecendo numa escola de jornalismo onde os estudantes produzem dois bons livros em menos de um ano.

Grande reportagem

O autor de “Leão Baio” se chama Leo Branco. Pelo nome que tem – Leo – presume-se que traga do berço o pendor para tratar do assunto. Mas, não. Escolheu-o à última hora, quando precisava definir, em outubro de 2007, um projeto viável para seu trabalho de conclusão do curso. Seu ponto de partida era fazer uma reportagem. E ele queria que a reportagem fosse “grande”.

Conseguiu. Escreveu 119 páginas. Ou melhor, 130 mil caracteres, sob a orientação de Daisi Vogel, sua professora de Redação VII, que lhe sugeriu o assunto. Para pesquisá-lo, entrevistou 46 pessoas, inclusive especialistas do calibre de Peter Crawshaw, a maior autoridade do país em onças. Na bibliografia, citou 20 títulos de livros e monografias. Na ilustração, encaixou 13 fotos coloridas. Ou seja, o que ele fez é um livro de pleno direito.

Para encarar de perto os conflitos entre as onças pardas e os fazendeiros nas bordas das últimas florestas de Santa Catarina, o estado que mais tem e mais derruba mata atlântica, Leo Branco transferiu-se durante um mês de Florianópolis para Urubici. E, viajando pela serra catarinense de ônibus, de carona com o pai ou dirigindo o Ford Fiesta emprestado pela mãe, juntou os capítulos dessa tragédia ambiental com um cuidado que mesmo os jornalistas profissionais raramente têm. Seu relato junta histórias bem narradas, informações relevantes e texto fluente, onde tudo tem começo, meio e fim, além de nexo.

A morte em cativeiro do filhote recolhido ao Ibama de Painel serviu-lhe de pretexto para me enviar agora o livro. E com isso ele mostrou, de quebra, um certo senso de oportunidade jornalística. O bicho morreu depois que o trabalho estava pronto. Mas sua vida está toda lá, assim como a da suçuarana que apareceu há quatro anos num quintal em Curitibanos, uma cidade de 37 mil habitantes, e da onça que quase virou atração turística num pesque-pague de Urubici.

A última onça pintada de Santa Catarina morreu de tiro em 29 de janeiro de 1972, derrubada por um capataz de fazenda e empalhada por um padre taxidermista, que a eternizou como material didático num colégio de Florianopolis. Menos exigentes em termos de dieta e mais adaptáveis a ambientes antropizados, as suçuaranas – chamadas regionalmente de leão baio, embora sejam parentes mais próximas do gato doméstico – resistem valentemente ao cerco da civilização. Prosperam ultimamente até em florestas comerciais de pinus. Espremidas, bateram de frente com um Brasil que vai rapidamente ficando pequeno demais para elas. Ainda bem que Leo Branco viu-as a tempo.

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