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Como aprendemos a andar no mato

Andar no mato a passeio não é tão natural. É uma invenção do século XIX, que ficamos devemos a um francês chamado Claude François Denecourt.

21 de janeiro de 2010 · 14 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

 

Caminhar no mato parece a coisa mais natural do mundo, pelo menos desde que nossos ancestrais desceram das árvores e adotaram esta postura instável, que nos condena a problemas de coluna e, em troca, libera os membros superiores para tarefas mais elevadas – como estapear mosquistos ou empunhar o telefone celular para fotografar cada passo da jornada.

Mas, apesar dessa aparente naturalidade, andar no mato é uma invenção recente, que talvez por isso no Brasil ainda depende de empresas especializadas e guias meio fanáticos, para apontar aos desavisados o caminho das trilhas como se elas fossem a estrada de Damasco. Basta um dia de enchente humana num parque nacional para ver o bom serviço que eles prestam. Sem seu fervor quase evangélico, as picadas estariam às moscas. Ligando geralmente o nada a lugar nenhum, elas dependem, para ter algum tráfego, da “caminhada romântica”, moda que, segundo o historiador Simon Schama, nasceu no século XIX e tem autor conhecido.

Chamava-se Claude François Denecourt. Antes dele, só se ia ao mato para derrubar árvore, matar bicho ou fugir da cadeia. Ele mudou isso radicalmente. Denecourt foi retratato pelo literato Theophile Gauthier como “um homenzinho vestido com simplicidade, portanto um chapelão e óculos, segurando o galho de azevinho que lhe serve de bastão para subir a encosta”. Ninguém se iluda. Seu despojamento era grife, sua fantasia de “Le Sylvain”, o gênio da floresta. A Nike, a Columbia, a Patagonia e outras etiquetas do ramo só viriam aprimorar o figurino dos caminhantes muitas décadas depois.

Denecourt foi, basicamente, um comerciante de conhaque em Fontainebleau, nos arredores de Paris. Ferido nas guerras napoleônicas, coxeava. Embora manco, era um andarilho infatigável, treinado em marchar por anos a fio de um lado para outro na Europa, arrastado com as campanhas do imperador como soldado do 88º Batalhão de Infantaria Ligeira. Ao dar baixa, conheceu a floresta de Fontainebleau quando ela caía aos pedaços. Fora uma reserva de caça real, e passou a ser tratada como terra de ninguém na França revolucionária – mais ou menos como por aqui, à falta de governo, fazem os grileiros da Amazônia.

Desmatada, defaunada e invadida, Fontainebleau sobreviveu aos tropicões da história francesa porque Denecourt promoveu sua reciclagem como lugar de passeio. Ele abriu pessoalmente 300 quilômetros de picadas na floresta. Batizou itinerários, árvores e pântanos. Transformou em refúgios rústicos as cavernas que antes tinham fama de abrigar bandidos.

Sua influência foi, literalmente, incomensurável. Chegou até a concepção original do Central Park em Nova York ou, para ficar mais perto, à Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro. Aliás, todo jardim do paisagista Auguste François Glaziou, que reinou na corte de D. Pedro II, não deixava de ser uma espécie de miniatura da Fontainebleau de Denecourt.

Fontainebleau, onde Deneccourt é nome de rua e tem estátua en praça pública, continua cercada por 24 mil hectares de velhos bosques, preservados desde que, no rastro de Denecourt, foram parar lá, de carruagem, os grã-finos do Império. Com eles vieram os pintores, toda uma geração pré-impressionista que arranchou no vilarejo de Barbizon, na beira do bosque, e cevou ali uma escola de paisagismo e um culto da natureza que serviu, nos Estados Unidos, para inspirar a decretação dos primeiros parques nacionais.

Em resumo, os guias de ecoturismo são apóstolos de Denecourt mesmo que não saibam. Como ele, acreditam que caminhar no mato não é coisa que se nasça sabendo. É algo que se aprende. Como todo passo civilizatório.

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