Reportagens

Sem caça, índio krahô quer ser vaqueiro

Pressão de caça e desmatamento ao redor da Terra Indígena Kraolândia (TO) reduziram fauna em área de reserva. Agora, índios querem criar gado.

Leilane Marinho ·
27 de outubro de 2010 · 14 anos atrás
A carne está para os mehin (índios) como o ouro para os cupen (brancos) (foto: Leilane Marinho)
A carne está para os mehin (índios) como o ouro para os cupen (brancos) (foto: Leilane Marinho)

Quando os caciques Krahô escolheram o nordeste do estado do Tocantins para se fixarem, a abundância relativa à população de animais silvestres foi o quesito mais importante na demarcação dos 302 mil hectares que compreende a Terra Indígena Kraolândia – localizada nos municípios de Goiatins e Itacajá (TO). Naquela época, a população não chegava a mil índios e a fartura de caça garantia a segurança alimentar deste povo. 

Hoje, 70 anos depois, cerca de três mil índios vivem em 26 aldeias espalhadas na reserva. Em tempos de seca, as tradicionais caçadas só são revividas nas histórias contadas pelos anciãos.  O desmatamento ao redor da área e o choque entre as aldeias por conta das regiões delimitadas para a caça e a alta taxa de natalidade  – em 1989 eram 1.198 índios (Funasa) – resultaram no declínio de animais silvestres. Com a caça cada vez mais rara, os índios discutem a possibilidade de introduzir a criação de gado “curraleiro” e outras espécies que garantam o alimento nas comunidades. De grandes caçadores, um sonho antigo renasce entre os krahô: o de serem vaqueiros.

Movidos pela carne

A “fome de carne”, termo usado pelo antropólogo e indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai), Fernando Schiavini, na 8ª Feira Krahô de Sementes Tradicionais, acompanha este povo nômade desde que desceu do Piauí para o Maranhão levado pelas atraentes expedições de caçada. A feira, que abriu a discussão sobre a segurança alimentar indígena, reuniu mais de 1500 índios de etnias tocantinenses e do restante do país no final de setembro, na Terra Indígena Kraolândia.

A incessante busca pela proteína animal rendeu-lhes a fama de povos carnívoros e foi uma das justificativas dos fazendeiros maranhenses para o massacre de 1940, que matou cerca de 70 índios num só dia. Além da disputa de terras, movida pela expansão da fronteira agropecuária, um dos motivos foram os contínuos furtos de gado nos rebanhos pelos índios.

Empurrados para as terras tocantinenses, os caciques demonstraram sabedoria ao escolherem o local onde fica a reserva. “Eles optaram por uma área cercada por dois rios (Manoel Alves Grande e Pequeno), sendo que no centro existe um vale onde nascem todas as águas que escorrem para a periferia”, conta Schiavini, que morou 35 anos com os krahô. Dos 302 mil ha, 100 mil são mantidos intocados, destinados somente para a reprodução dos animais.  “Bem no coração da terra, os antepassados fixaram uma reserva permanente e firmaram um acordo para que nenhum índio entrasse lá para caçar. Este seria um local de proteção”, completa o indigenista.

Feliciano Tephot lamenta o fim das tradicionais caçadas. (foto: Leilane Marinho)
Feliciano Tephot lamenta o fim das tradicionais caçadas. (foto: Leilane Marinho)

Nos últimos anos, o desmatamento ao redor da reserva para pastagem e plantações de soja e milho encurralou os animais silvestres, que encontraram na Kraolândia o verdadeiro “Jardim do Éden”. A fuga da fauna assegurou tempos de fartura para os krahô, mas hoje, mesmo com um local seguro para a reprodução, as espécies que ainda povoam a região não são suficientes para o consumo das famílias.
Animais na lista de extinção como o tamanduá-bandeira e a arara-azul são iguarias raras, que quando encontradas não escampam do cardápio. A paca, a anta, a capivara, o veado mateiro, o quati, o macaco guariba, a raposa e a cutia e aves como a seriema, o perdiz, o tucano, o gavião e a ema também fazem parte da dieta dos índios.

Apesar da sabedoria dos mais antigos que pretendiam assegurar a carne silvestre para as gerações futuras, as caçadas entraram em decadência. “O peixe não sobe mais na cabeceira, porco-queixada a gente não vê mais, e o tatu também está difícil”, lamenta o cacique Zé Miguel Krahô, 65 anos. “Os mais novos não querem saber de caçar. Pouca gente caça hoje, e quando vai não encontra muita coisa. É mais fácil comprar tudo na cidade”, conta Feliciano Tephot Krahô, 47 anos.

1 kg de carne por mês

“Descobrimos que animais consumidos pelos índios não aparecem com tanta frequência na mata. Precisamos mapear a abundância relativa das espécies”, conta Ubiratan Piovezan, zootecnista e pesquisador da Embrapa Pantanal, que com o engenheiro florestal João Vieira Neto pretende fazer o monitoramento dos estoques naturais para então organizar as atividades de caça na comunidade.

Dentro da pesquisa, o zootecnista concluiu que atualmente se come mais carne comprada nos açougues do que proveniente de caça. “Entrevistamos 68 famílias krahô, cerca de 468 pessoas, e descobrimos que, por ano, são consumidos uma média de 28 toneladas de carne de caça. Extrapolamos essa margem para 2.500 índios e chegamos à conclusão que eles se alimentam com menos de 1 kg por mês, ou 33 gramas por dia. Valor aquém do recomendado pela FAO, (70 g diárias)”, diz Ubiratan.

Em roda de conversa, Cacique Getúlio Krahô defende criação de gado e outros animais da região. (foto: Leilane Marinho)
Em roda de conversa, Cacique Getúlio Krahô defende criação de gado e outros animais da região. (foto: Leilane Marinho)

Índio vaqueiro

“Estamos diante de um grande nó, que é a segurança alimentar dos índios. Mas o krahô vai ter que deixar de ser krahô para criar gado, para ter uma fazendinha”, sugere Schiavini. A proposta de introduzir um modelo de fazenda nas terras krahôs não é nova. Em 1967, houve uma primeira tentativa que logo definhou por falta de estrutura e manejo. Entre 1995 e 1997, outra vez a ideia foi posta em prática e novamente os índios desistiram. “O problema é que o manejo diário do gado não pertence ao modo de vida deles. Tocar gado, tirar leite, fazer partilha e esperar o gado engordar para matar e ter rendimento são da nossa cultura ‘branca’. Os índios não entendem bem esse sistema de acumular coisas”, explica Schiavini, que completa: “os krahôs são festeiros e a carne é artigo obrigatório. Se tiverem 10 gados no curral e eles decidirem que precisam matar para fazer uma comemoração que não pode ser adiada, eles vão matar com toda certeza”, brinca com tom de verdade.

Para Ubiratan, que deu a ideia de instalação de um projeto de criação de gado, é possível encontrar uma forma de produzir proteína animal suficiente para o sustento das aldeias sem que seja necessária a plantação de pasto. “Colocaríamos uma média de uma vaca para cada 10 hectares, o que não agrediria o habitat. Em mil hectares, por exemplo, com 100 vacas parideiras, teríamos uma média de 40 bezerros para serem consumidos por ano. Penso que cerca de 300 vacas pra começar seria o necessário”, esclarece. No debate, um dos caciques, Getúlio Krahô, propôs um modelo de “fazenda” que atenda todas as aldeias e que crie não somente o gado, mas outros animais como a ema e o porco-queixada. Neste caso, seria delimitada uma área onde animais, como o gado “curraleiro”, seriam criados livremente em campos naturais do Cerrado. Apesar de apresentar a proposta, Ubiratan desconhece algum estudo que avalie o impacto real da presença do gado na mata nativa, mas assegurou que a criação não agredirá o local fixado para a reprodução de animais silvestres, que permanece preservado.

Leilane Marinho é jornalista em Palmas (TO).

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